12.31.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- UM: POR PARTE DE PAI –

Ao invés de desenhar, Ricardo V começou a contar ao filho o que sabia da família:

- Nossa história só é conhecida a partir do meu trisavô, o violonista Ricardo Coração dos Outros, amigo de Policarpo Quaresma. Não sabemos ao certo quando ele nasceu, mas sabemos que desapareceu no final dos anos vinte do século passado.

- No final dos anos vinte do século vinte – observou o garoto.

- Isso mesmo. Ele e a mulher, sua tetravó Olga, desapareceram a caminho do Rio, vindos de Cavalcante. Olga era filha de um comerciante italiano, que migrara para o Rio. Não sabemos nada dos pais e avós de seu tetravô, como não sabemos o que houve ao certo com os dois, ele e a mulher, Olga; simplesmente sumiram, sem deixar vestígios.

Ricardo V bebeu um pouco d’água e tornou a explicar:

- Ricardo Coração dos Outros e Olga tiveram como filhos Ricardo II, seu trisavô, e Ricardina Olga. É comum, nas famílias do mundo todo, principalmente no Brasil - na América Latina de modo geral -, e, principalmente, naquele tempo, repetirem-se nomes; no nosso caso, Ricardo, Olga e Ricardina, além de algumas de combinações desses nomes entre si e com outros. Na nossa família, o hábito vem até hoje, sabe-se lá porque. Quem sabe você o interrompa, já é hora, não é? O livro mais famoso do colombiano Gabriel Garcia Marques, “Cem anos de solidão”, mostra muito bem essa tradição. Ricardina Olga permaneceu em Cavalcante, casada com o Coronel Eurípides Ovídio Tavares e Silva; ela morreu em 1982, aos...

Ricardo V continuou depois de consultar uma espécie de agenda:

- Oitenta anos. Do Coronel, não se sabe; não encontrei registros em Cavalcante, preciso pesquisar mais. Ricardo II morreu assassinado na Itália, tão logo terminada a Segunda Grande Guerra, aos quarenta e cinco anos. Sua viúva, Maria Cristina, viveu até os noventa anos. Isso mesmo – confirmou, após consultar sua agenda de registros da sua genealogia -, morreu aos noventa, em 1995, no Rio de Janeiro. Meu avô, Ricardo III, de quem tenho muita saudade – Ricardo V teve que fazer uma pausa -, foi arrimo de família.

- O que é isso? – quis saber Ricardo VI.

- Sustentou a mãe e os irmãos, Ricardo Maria, Ricardina Cristina e Olga Cristina, a partir da adolescência, ainda.

- Como?

- Com canções populares. É: outro músico na família, o mais bem sucedido de todos. Casou-se muito cedo, com Andréia Cardoso Moreno, sua bisavó Andréia, que mora em Petrópolis; ela está, agora, em 2010, com... Setenta e oito anos. Meu avô, Ricardo dos Outros, poeta e compositor, morreu aos sessenta e oito, no Rio.

Outra pausa; depois:

- O irmão dele, Ricardo Maria, morreu solteiro, aos sessenta, em 1996. Olga Cristina Bastos Coração dos Outros, a poetisa concretista, irmã de meu avô, morreu aos trinta e dois anos apenas, em 1972, solteira, como o irmão. Os dois, do coração, enfartos fulminantes, naquele tempo era assim, não se sabia muito como prevenir doenças comuns. E não venha fazer graça que os “Corações dos Outros” morreram do coração, porque não tem nenhuma graça, tá?

- O resto da história, você sabe: sua tia-bisavó Ricardina Cristina está bem viva, em São Paulo, com setenta e dois anos, casada com o embaixador aposentado Nereu Esteves da Fonseca; não tiveram filhos. Seu avô, Ricardo IV, casado com minha mãe, Sérgia, tiveram suas tias-gêmeas em 1974, Ricardina e Olga.

- Pra variar.

- O quê?

- Os nomes, né, pai?

- É. Olga vive com aquela pessoa e Ricardina continua solteira e um tanto devassa pro meu gosto.

- Isso é preconceito, pai.

- É. Seu avô, nascido em 1950, o pai e a mãe dele tinham só dezoito anos, depois que o pai se viu obrigado a se esconder em Petrópolis por causa da ditadura militar, foi impedido por ele, meu avô e seu bisavô, de participar de qualquer forma de protesto ou reação contra aquele regime e se sente meio culpado por isso. Já sua avó...

- Ela não tem árvore genealógica? E mamãe, também não tem a dela?

- Não. Brincadeira, claro. Claro que as duas têm.

- Sua brincadeira também foi sem graça.

- Foi.

- Você me conta as árvores genealógicas delas?

- Conto.

- Agora?

- Amanhã.

- Puxa, pai...

12.27.2005

O EXTRAORDINÁRIO AVANÇO DA TECNOLOGIA

Difícil encontrar expressão mais batida que esta: o avanço extraordinário da tecnologia. De tão batida, o avanço tecnológico já deixou de ser extraordinário faz tempo. Ainda que você se surpreenda com o fato de seu celular ser mais máquina fotográfica que telefone - ele gosta muito de dizer a você que a rede está ocupada ou, mais ainda, de deixar você com cara de tacho, falando com o éter, por um bom tempo, enquanto você pensava que sua amiga ainda lhe ouvia - ou desculpe, foi engano? -; mesmo que seja incrível o limpador de pára-brisa do carro de seu amigo funcionar com uma simples gota d'água - e pior: sem fazer aquele barulho que o do seu carro faz, rac-rac, bru-bru -; tudo bem que a máquina de lavar roupa da sua tia toque rock-and-roll dos anos cinqüenta, enquanto lava - e passa -, o fato é que tudo vai virando banalidade, a ponto de seu tio nunca mais ter dito "Não há mais nada que inventar", ou perguntar ao éter "Onde é que esse mundo vai parar?".

Procure aí na Internet por artigos de Engenharia, Medicina ou Culinária: 99,3,1416 começam pela expressão-título dessa crônica on-line, underground e muito mais out que in.

Pessoa de bom gosto que é, você vai mesmo é no antiquário, procurar por um abajur igual àquele que havia na casa da vovó, - ou a papeleira - escrivaninha com uma tampa que desaparece lá pra dentro, não há tecnologia capaz de explicar aquilo - parecida com a que você viu quando era criança, no sótão da casa da bisavó daquela garotinha que morava numa casa e não em apartamento; vai visitar cidade histórica, tropeça nas pedras de Parati. Acha o Fusca - aquele, com sobrancelhas nos faróis - um barato (sim, você usa essa expressão ultrapassada: um barato!), e se espanta: "Que carro é esse?" - "Um Puma" - lhe responde o primo, bem mais velho que você.

Pera aí, que agora chegou um e-mail pelo celular, exatamente quando você fotografava aquela coisa que acabou por achar horrorosa, aquele Puma cor de mamão, e sua mãe quer saber onde você anda que não aparece há três semanas, e começou a chover e você não trouxe um guarda-chuva. Pois não é que, desde a Idade da Pedra, chuva é muito boa pra lavoura, mas, pra gente, é uma incomodação danada?

Agora, o avanço tecnológico é impressionante.

12.24.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
- CAPÍTULO 40 -
O apelido "Macunaíma do Méier" foi, a um só tempo, ascenção e queda de Pedro Ramon Pereira. Foi o jeito simples, despojado e irreverente de Pedro, na sua primeira entrevista após e sobre o seu ato heróico, que o tornou imediata e mundialmente famoso, que inspirou o comentarista político Adalberto V.B. Martins a associá-lo ao "Herói sem nenhum carater", de Mário de Andrade. O fato de Pedro morar no Méier, bairro da Zona Norte carioca, o mesmo onde, muitos anos antes, Prestes e Olga foram encontrados e presos pela polícia de Filinto Müller, foi o assentar do cimento a juntar os tijolos do apelido irresistível, que ficou estampado na capa do principal veículo da mídia impressa de então e também no super-freqüentado site de Adalberto.
Usando uma camisa social com as mangas arregaçadas e parcialmente para fora da calça; ainda suado, das horas de cativeiro e negociação absurda com o sequestrador e sua cúmplice, tudo aquilo transmitido em rede, a princípio, local, depois, nacional e, em sua útlima hora e meia, mundial, ficou para sempre na memória de quem assistiu, com a aparência, ainda assim, tranqüila, Pedro, a declarar:
- Tive a impressão de que ele (o sequestrador) não queria sequestrar; aliás, ele não queria também resolver causa social nenhuma; pensando bem, deu pra perceber que ele não queria era resolver nada.
- Não, maluco ele não era; talvez um pouco entusiasmado demais; não sei.
- Não gosto de governos, governos deveriam trabalhar pra nós, são bem pagos pra isso, mas, ao invés disso, se disfarçam por trás de ideologias, supostas causas, programas, e nos traem, quase que invariavelmente. Nem que seja somente por megalomania, sede de poder, incompetência - mas sempre nos fazem mal.
- Não, não sou anarquista, porque sou incapaz de varrer a calçada em frente à casa onde moro.
- Tenho quarenta e sete anos, isso mesmo. É, sou casado. Em Deus? Claro que acredito nele, ué. Deve ter sido ele que me pôs nessa situação.
- Medo? Medo, não: pavor. Foi pavor, o que tive; o que senti. O camarada estava descontrolado, totalmente descontrolado, arrebanhou a turma toda na feira de susto, apontando a metralhadora, dando tiros para o ar. Todo mundo deve ter pensado: "É o tráfico.". Que nada! O cara queria era salvar o mundo, salvar a política, terminar com a pobreza. Depois, não sei, fico na dúvida, como já disse, sei lá, vai ver que ele só queria aparecer.
- Pois é, foi uma surpresa, ele ser racista. Foi aí que tive a oportunidade de virar o jogo: "Você não acha uma burrice, o racismo? Afastar em vez de aproximar, juntar, ter mais gente se dando bem, gerando oportunidade? Não é um tiro no pé, no pé dos poderosos, eles serem racistas? Não é ultrapassado, isso?" - eu perguntei. Aí ele abaixou a arma e a jogou no chão e ela matou ele e depois se matou, com o revólver.
- Descobri que quem estava com ele, encapuzado, era mulher, por causa do olhar. Mulher olha diferente de homem. E ela, às vezes, me olhava nos olhos, um olhar muito impressionante.
- Provavelmente dois malucos. É, eu sei, todo mundo viu, tava sendo filmado, né, pela fenda no telhado do depósito onde ele nos trancou, não é? Eu vi, deu pra perceber.
- Fui criado na religião católica, mas não vou à missa, não. Nem entendo nada de missas, padres, essas coisas. Prefiro as igrejas vazias, que nem o Nelson Rodrigues. O Nelson Rodrigues nasceu aqui no Méier, sabiam?
- Presidente da República? Eu? Só porque fui capaz de negociar com aqueles dois? Daonde você tirou essa idéia? Tá maluca?
- Que partido? Não tenho partido. Não acredito em política, já disse. Voto para que alguém cuide do que é público, só isso. O resto, deixa andar, porque anda por si, com ou sem governo, com ou sem ideologia.
Difícil de se imaginar que, três meses depois, Pedro Ramon Pereira, o Macunaíma do Méier, já estivesse em plena campanha pelo PAN - Partido Anarquista Nacional. O slogan da campanha foi: "Estado Mínimo, Responsabilidade Máxima". Disparou nas pesquisas de intenção de votos, quando havia uma total indiferença da população pela política em geral, uma generalizada sensação de frustração, de vontade de não votar em ninguém, sequer de comparecer às urnas para anular o voto.
Aí, começaram os que pareciam estar mortos, afastados, em absoluta condição de desprezo dos outros, em total ostracismo: "Lá vem de novo o neo-liberalismo!", "Quem é que quer anarquia no Brasil, quem é que quer uma bagunça generalizada?", "Fora, herói sem carater! Fora, mau carater!".
Venceu as eleições se sabe quem. Pedro Ramon Pereira, depois de, às vésperas do primeiro turno, estar disparado em primeiro lugar nas pesquisas, sequer ter chegado ao segundo, com a vitória de última hora, surpreendente para todos os analistas especializados, ainda em primeiro turno, se sabe de quem, desapereceu de cena. Dizem que se mudou para o interior do Paraná. Ou do Pará - ninguém sabe ao certo. O comentarista político Adalberto V.B. Martins se matou, jogando-se do vigésimo-quinto andar do prédio onde residia e trabalhava.
Assim que saíram os resultados das eleições, Ricardo V e o filho estavam sentados no sofá da sala. Olhando para a mangueira do quintal da frente pela abertura da janela - era uma tarde fresca; chovera de manhã, em Minaçu -, Ricardo VI propôs ao pai:
- Vamos desenhar nossa árvore genealógica?
Assim foi.

12.20.2005

BLAGUNÇOU O BLOGUE

Isto podia ser muito bem um samba de breque, mas virou um samba de blogue. Olha que seu autor persegue a disciplina que a si mesmo impôs e propôs aos seus adoráveis visitantes, qual seja, a de produzir dois livros ao mesmo tempo e em tempo real: um de crônicas e poesias, às vezes, mini-contos, cujas peças vão surgindo às terças; outro, um romance, que pretende - sem pretensão - recuperar, não o ufanismo, o otimismo de Policarpo Quaresma no começo da sua história, tão sensivelmente contada por Lima Barreto, contrapondo-se ao tom de desânimo e descrença que se caracteriza em seu triste fim, tão recorrente em cada um de nós, mais platéia que atores e atrizes desse espetáculo permanentemente contundente, chamado Brasil.
Pois que o autor do blogue, que começou por fazer blague, dando-lhe o nome de Diário de um Mario, veio a visitá-lo, para ver como andavam as coisas em seu jardim, onde planta e pouco sabe de suas mudinhas, se se viraram e desandaram a falar ou permaneceram mesmo mudas, para sempre mudas; e surpreendeu-se - como quem pisa no que ninguém gosta de pisar ou, mais distraído, vai pela rua e dá com a cara no poste -, ao perceber que sua disciplina havia ido pro espaço, espaço muito longe deste, o blogue, ele mesmo. Como última publicação (horrendamente chamada de postagem), uma de 18 de novembro - quando, hoje, Terça, é 20 de dezembro. Repetindo e sublinhando, sem sublinhar: Terça - e Terça-20-de-dezembro; não um dia qualquer de novembro, já ido, ultrapassado, remanescente na memória e olhe lá.
Protestar o que e contra quem? Contra o blogue? Um espaço virtual e, portanto, espaço que não há, ninguém mora nele, atende a campainha, manda dizer que não está? E de graça! Ora, nada a fazer, a não ser confessar que, além de tudo, é de graça.
E fazer a - com perdão da palavra feia - postagem, exatamente deste desabafo, com a única intenção de desblagunçar o blogue.
Aí vai. E seja lá o que Deus quiser. Mesmo porque, ano que vem, teremos eleições. Sinceramente, pela primeira vez dessa coincidência-mais-que-forçada, que bom se não houvesse Copa do Mundo!
Mas há.
Seja o que Deus quiser.
E que ele exista.
E que despache aí um anjinho principiante, cheio de boas intenções, para arrumar essa blagunça, Brasil incluído, quem sabe?

VIVEMOS A ERA DA INCERTEZA. TEM CERTEZA?

Vivemos a era da incerteza. E qual foi a era que não foi assim – da incerteza?

Houve um tempo em que se discutia se a Terra era quadrada, chata ou redonda. Descobriram mais tarde que era redonda – como também descobriram que, a depender de onde, em que companhia ou era, a terra pode ser chata. Quadrada ela costuma ser em outros lugares, onde se determina, a depender da era, que a saia não pode ser mini, o top, jamais less, Oscar Wilde, gay, Orlando, homem, Virginia Wolf, ela mesma.

Discutia-se mais: se era a Terra que girava em torno do Sol ou se este é que ficava dando repetitivas, monótonas e incendiárias piruetas em torno do planeta, cheio de água em suas entranhas e superfície.

A era, aliás, já foi do gelo. - E sem uisque! – diria Vinicius de Moraes.

A incerteza era tanta em outras eras que um trovão, seguido de um raio, era tido como castigo divino por se ter traído a mulher ou o marido. Só anos mais tarde é que a ciência provaria que era isso mesmo – embora, em alguns casos, a situação se enquadre é como divino castigo.

Ninguém sabe porque nasce, duvida um pouco de que pai foi mesmo, discorda às vezes de que mãe tenha sido; incerteza nova, por acaso?

Ninguém sabe quando, porque e como vai morrer. E jamais soube ou saberá, ainda que se tenha esmerado ou se aperfeiçoe na precisão do suicídio.

Ninguém escolhe filho nem filha. Ninguém escolhe pai, mãe, irmão ou irmã; nem tio, nem tia, avó, avô – e há vários casos de nascidos sem um ou todos eles. Quando muito, o que se pode fazer é comprar um cachorro, ou se deixar seguir por um, nas ruas, mendigando esmolas e sobras, para o cão e si próprio.

E nem o si é próprio: ou se tem um chefe, um cônjuge, um caso de amor, um sócio, e sempre que se tem um desses também se é tido; próprio, portanto, o si jamais o é. Nem o foi, nem o será – em era alguma.

Tanto melhor que se compreenda, pois, que essa história de era da incerteza é a coisa mais burra e banal de que já se teve notícia. Toda e qualquer era é da incerteza.

Fundamental é conjugar o verbo corretamente: não é “era da incerteza”, mas será incerteza.

A certeza, sim: era.

12.17.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E NOVE –

Os criadores das marcas e redes que substituíram a Internet - a 1012 e a Tera-portal Mundial (TPM) - já haviam percebido que sua estratégia em comum, de querer inspirar um certo saudosismo, um passo atrás da real potência e seu correspondente número de zeros em capacidade e velocidade de transmissão de dados, não havia sido percebida por uma quantidade considerável de usuários, ainda que minoritária. Exatamente essa minoria é que começava a se encantar com a marca concorrente das concorrentes, que nada oferecia a mais – apenas o marketing da realidade: o máximo de modernidade e potencial que se podia por à dispor da multidão e de cada usuário naquele ano, 2015.

Sabe-se hoje, em 2020, que a concorrente não conseguiu sobreviver à capacidade de reação e inovação implacável das duas grandes, que continuaram mantendo em comum a ultrapassada e supostamente emblemática e nostálgica potência 12 em suas marcas registradas. Mas, naquele ano, a ousadia da competidora das duas hiper-redes expuseram Ricardo IV a uma chateação: não a maior, mas fundamental cliente de seu escritório de advocacia era a TPM; pensar em buscar apoio – parceria! –, justo na concorrente Dez à Décima-segunda, era de arrepiar, ainda que parcerias entre concorrentes já não fossem havia muito tempo nenhuma novidade.

E daí? O que acontecia com ele é que, mais uma vez, havia uma mulher a lhe embaçar a realidade. Seu escritório, que cuidava, como cuida, muito bem de marcas e patentes, e de encontrar grandes possibilidades em imensas impossibilidades - como o faz, de maneira geral, a humanidade, desde que foi inventada -, saberia, como soube, enfrentar a crise, abraçar a parceria antes inimaginável com a Dez à Décima-segunda, até derrubar a concorrente das concorrentes e retornar ao mundo já conhecido, onde só havia uma concorrente a enfrentar e com ela dividir o mercado. Ele fazia parte da máquina vencedora, mas não era assim que se sentia. Uma melancolia lhe tomava a alma, sonhador demais, sofredor demais.

E que mulher era aquela? Amante? Não era. Mais que em qualquer tempo antes daquele, sentia-se apaixonado pela mulher, Sérgia. Desejo por desejo, ora, era homem vivido, experimentado; sabia que desejo é coisa de tão natural que animal.

O fato era que ela passara para a concorrente – não para a terceira, mas para a popular Dez-a-doze. O que, na verdade, funcionaria – ele sabia disso, antes mesmo que funcionasse – como facilitador da parceria com a tradicional concorrente, que já propusera à sua cliente, a TPM.

Mas, quem era aquela mulher? Sua irmã? Se assim a definisse, nada mais falso haveria no planeta da falsidade, ainda que não tivesse irmãs, pois achava que não precisava delas, suas filhas gêmeas lhes bastavam como companhia, senão fraternal, quase como se fosse, as duas com 42 anos, ele, 65.

Amiga? Ela não era mais, como não era menos, que sua amiga – mas assim não a conseguia ver.

Estaria apaixonado, sem o saber? Não! Não admitia essa hipótese. Teve interrompida sua angústia de encontrar melhor palavra que admiração, que descrevesse o que sentia por aquela mulher, por um de seus sócios minoritários, Renato Campos de Melo, que lhe perguntou:

- Que cara é essa?

- Não se descende de poetas impunemente.

Seu sócio estava preocupado demais para tentar decifrar a resposta de Ricardo IV:

- Toda história de “joint-ventures”, parcerias explícitas ou por debaixo do pano, como a que vamos fazer, fusões, aquisições, ainda que várias tenham sido bem sucedidas, todo casamento entre empresas, depois que se desfaz, como o da TPM com a Dez-a-doze será desfeito assim que engolirmos essa novidade perniciosa que surgiu, é como qualquer casamento: deixa uma seqüela, uma ferida, um estrago qualquer. Estávamos bem como estávamos, não sei se essa estratégia de aliança é uma boa idéia. Por que simplesmente não enfrentamos essa a mais e pronto; pra que casarmos escondidinhos com Dez-a-doze?

- Não há outra saída.

- E depois, como será?

- Será depois. Mais nada que isso.

- Você hoje está esquisito mesmo, hein?

- É que não sou poeta, como meu pai. Por não ser poeta, não encontro a palavra certa para o que não consigo definir. Fico nostálgico de meu pai e fico frustrado por mim.

- Não é melhor pensar no problemão que temos nas mãos, essa fusão falsa debaixo da mesa, que nem amantes em restaurante, na presença do marido de uma e da mulher do outro?

- São favas contadas, como diria meu pai. E logo se vê que você também não é poeta. Vamos lá?

E foram, ao encontro dela, no escritório da Dez-a-doze, levando com eles dois diretores da TPM. Daria tudo certo, como deu certo o descasamento, um ano depois, depois de devidamente falida a concorrente, assunto que sequer chegou ao hiper-noticiário, nem tanto porque este fica sob controle das duas hiper-redes, mais porque um ano depois foi o da Revolução de Mentalidade, matéria que dominou todo e qualquer noticiário durante seu acontecimento. Por causa dela, da revolução, esse tipo de fusão e disfusão, com o único propósito de destruir uma terceira concorrente, teria sido mais difícil; mas ainda assim ocorreria. Haverá sempre no mundo gente como aquela mulher, para a qual Ricardo IV não achou palavra capaz de descrever seu sentimento por ela. Filha da puta! – foi outra expressão que lhe ocorreu na mente, encerrada a reunião, que selou o acordo das duas hiper-concorrentes, tramado por aquela mulher.

Seria medo a palavra que não encontrava? Era isso que sentia por ela? Tinha medo daquela mulher?

Não! Isso ele não queria admitir.

12.13.2005

O ALFERES, OS DENTES E AS IGREJAS

TINHA IGREJA DE BRANCO
TINHA IGREJA DE PRETO
TINHA IGREJA DE MULATO.

A DE BRANCO ERA FEITA DE DIA
A DE MULATO ERA FEITA DE TARDE
A DE PRETO ERA FEITA DE NOITE.

DE DIA ERA PRETO
QUE FAZIA A IGREJA DO BRANCO
DE TARDE ERA PRETO
QUE FAZIA A IGREJA DO MULATO
DE NOITE ERA PRETO
QUE FAZIA A IGREJA DELE

PRETO.

O OURO
DA IGREJA DO PRETO
MALOCADO NO CABELO
NO DENTE NA UNHA.

NOSSA SENHORA
DO ROSÁRIO DOS PRETOS
TUA MEIA-LUA
TUA ESTRELA PRETA
DE OITO PONTAS
SÃO BENEDITO ASSISTINDO
À EXPLICAÇÃO

DO INEXPLICÁVEL.

SE FOI OURO DO BRANCO
NO DENTE DO PRETO
SE FOI DENTE DO PRETO
NO OURO PRETO DO BRANCO
O QUE FICOU.

O ALFERES
QUE TIRAVA OS DENTES
PODRES DAS BOCAS PODRES
POBRES DAS BOCAS POBRES
VIROU NOME DE CIDADE

TIRADENTES.

12.11.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005


- CAPÍTULO TRINTA E OITO –

Nesses tempos em que o dólar já não é mais referência nem moeda, quando a economia do Brasil, em tamanho, chegou ao terceiro lugar do segundo bloco de países, ocupando a décima-segunda posição do Produto Mundial Bruto pelo critério da Paridade do Poder de Compra – PPC -, e seu índice de Gini é de 0,302 - quando, por muito tempo, superou a marca 0,5, significando que, hoje, tem a distribuição de renda mais justa de toda sua história, ocupando a décima-quinta posição neste quesito, não mais a 117ª, como ocorria no início deste século -, fica difícil até de lembrar que, em 2008, quando foi proposto o projeto do acesso ao Oceano Pacífico, incrementando as possibilidades logísticas do intercâmbio Brasil-Japão e Brasil-China, o país estava prestes a enfrentar mais um colapso energético e também logístico, suas estradas e ferrovias em petição de miséria.
Foi naqueles dias que Rita retomou fugazmente seus estudos das etnias indígenas da América Latina, contratada para uma consultoria visando a estudar a barreira que se interpunha à ligação, formada pelas reservas indígenas existentes no trajeto que atravessava o Peru, os índios já governando a Bolívia, que, com o apoio do Peru, já cortara as relações e o fornecimento de gás para o Chile, a Argentina, sem poder continuar a adquirir gás boliviano para vendê-lo ao Chile – que se empenhava para desenvolver às pressas projetos hidrelétricos e de fontes alternativas – biomassa, eólica – que fossem capazes de suprir suas necessidades energéticas. Mais ainda: a Bolívia ameaçava invadir o Chile para ter de volta seu acesso ao Pacífico, por Arica, território perdido na guerra de 1879 a 1883 entre os dois países.
O continente sul-americano dera majoritária e acentuada guinada à esquerda.
Outra expectativa com respeito à Bolívia era se seus governantes iriam também querer de volta o Acre - o qual, pelo Tratado de Petrópolis, de 1903, teve seu território de 143 mil km² cedido ao Brasil, pelo valor de 2 milhões de libras esterlinas.
Também poluía o ar das relações sul-americanas a perspectiva de tentativa de recuperação, ainda pelos bolivianos, do território perdido na Guerra do Chaco, de 1932 a 1935, para o Paraguai, que anexou ao território paraguaio 249.500 km² da região fronteiriça, então cobiçada por empresas petrolíferas, principalmente inglesas, que supunham haver petróleo naquele subsolo e souberam muito bem fomentar o conflito por intermédio do governo britânico.
E, claro: em nada ajudava a região o estado das relações da Venezuela com os Estados Unidos.
Enquanto este era o cenário de 2008 do continente sul-americano, a China continuava crescendo a taxas assustadoras. O Brasil ainda pagava sua dívida externa, herdada em grande parte dos governos militares, que investiram em infra-estrutura a custa de empréstimos em dólares. Já o país-continente asiático guardava em caixa mais de 800 bilhões de dólares em reservas cambiais.
Rita mergulhava em mapas, livros, páginas da Internete, telefonemas, emails, viagens; Ricardo VI, com os avós e as tias, no Rio de Janeiro; Ricardo V passeava com sua camionete pela região do cerrado, escrevia um pouco, parava, ouvia o que diziam os camponeses, roceiros da região, ex-garimpeiros sem licença ambiental, o povo, seus anseios e frustrações. Assistia aos debates acerca da estrada para o Pacífico e da transposição do rio São Francisco, mais ainda sobre a eternamente mal-resolvida reforma agrária. Ricardo V era de opinião que a produção em massa deveria ficar nas mãos do tão então propalado agro-negócio, mas que, na região em que morava, minifúndios de sub-existência e pequeno escoamento local seriam uma das mais fortes possibilidades de sobrevivência, tão difícil para a maioria das pessoas no cerrado goiano daqueles tempos. A floricultura ainda não era explorada, a não ser muito timidamente, nos jardins municipais. O eco-turismo era ainda mais tímido, perdendo terreno e terra para a pastagem da pecuária extensiva, tão sujeita à sazonalidade e à fraca qualidade do solo.
Ricardo V se enchia de coragem e ideais quando conversava com Seu Josefino e Dona Luzia, uns dos poucos a vencer a sub-existência, a ignorar totalmente quaisquer regras, prognósticos ou receitas macro-econômicas, plantando, criando gado leiteiro, ampliando suas propriedades sem qualquer subsídio, produzindo mais, na contra-corrente do agro-negócio mecanizado, na contra-mão da reforma agrária, levada a duras penas pelo Estado.
É aqui que começa a Revolução de Mentalidade, é aqui e no teatro daqueles meninos e meninas que assisti há três anos, há de ser aqui, Ricardo V deixou gravado no Winchester de seu desk-top, então em uso, ainda - quando os nano-tubos ainda eram experiência de laboratório.

12.05.2005

NOITE DE ANTÔNIO MARIA

"Se eu estiver dormindo, deixe. Se eu estiver morto,me acorde."
(A.M.)
Deve haver no fundo da gaveta uma folha
De papel almaço
Para escrever alguma coisa
Que faça sentido amanhã.

Deve haver no fundo do armário do corredor
Uma garrafa de aguardente
Um vinho bem guardado
Um bilhete
Um retrato.

Deve haver na cabeceira uma agenda
Para não deixar de esquecer
Aquilo que parece importante
E não é.

Deve haver na geladeira
Uma fatia de pudim
Uma garrafa de leite
O telefone dela e também do corpo de bombeiros
Grudados na porta por irritantes ímãs
Que caem sempre que se abre a porta
Da geladeira.

Perto da cama não pode faltar uma terrina
Cheia de água
Embora uma garrafa também sirva.

A cabeceira
A parede da cozinha
A mesa de centro da sala
Deve ser o mais longínquo esconderijo
Do telefone.

À porta do prédio, o porteiro e um botequim
Senão uma boate
No mínimo um cão de caça.

Se nada disso houver
Se não houver ninguém
Melhor ficar atento
Acordado
Porque a morte
Deve andar perto.

12.03.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E SETE –

O tema de abertura foi o mesmo que Stanley Kubrick escolheu para uma das principais cenas daquele que viria a ser seu último filme, Eyes wide shut – na versão brasileira, De olhos bem fechados, com Tom Cruise e Nicole Kydman, quando ainda eram casados e viviam um outro casal, naquele roteiro.

Um ator representa a morte – menos que pela foice, o capuz e a vestimenta cumprida, muito mais pela expressão do rosto. (Que se desfez um pouco ao reconhecer alguém na platéia, não se sabe se a namorada, um amigo ou a irmã: foi o ensaio final, aberto a uns poucos convidados.)

Nessa Minaçu de 2005, – suas farmácias atropelando-se na Avenida Maranhão, esbarrando-se nas incontáveis lojas de tecidos e mercados que se querem fazer de super-mercados – nesse período úmido, numa noite de poucas estrelas, sem chuva, o ar, um pouco abafado, -ali, no Centro Cultural, onde a platéia ocupa cadeiras escolares que se usavam mais antigamente, com tampos basculantes de fórmica, todos para destros - Água, Terra, Fogo e Ar, representados por adolescentes, impressionantemente obstinados, idealistas, talentosos.

Isso de um ponto de vista preconceituoso: fosse Minaçu um grande centro, seriam vistos da mesma forma: obstinados, idealistas, talentosos; mas não “impressionantemente”.

Havia muito mais na trilha sonora como havia fumaça, luz estroboscópica, belos figurinos, costurados por uma associação de costureiras, algumas delas, mães de atrizes e atores no palco. Mas o melhor de tudo nos efeitos visuais ficou por conta de um ventilador, explicitamente exposto no palco a soprar as vestes da moça que vestia o papel do Ar, o Elemento Ar: sim, é tudo de mentirinha; sim, é tudo verdade - a mais concreta que há.

Idealistas, chamam-se de Agentes Ambientais. Organizaram-se por ocasião da implantação da segunda hidrelétrica e assim se mantém, com o apoio das empresas da região, principalmente pela responsável pela segunda hidrelétrica, mas, acima de tudo, por uma determinação e um talento que seriam impressionantes em qualquer grande centro do mundo – e, portanto, sem qualquer preconceito. Meninos e meninas de 15 até, sabe-se lá, 17 ou 18 anos. Estudantes, base sólida apesar de tão poucos recursos na região, postura firme, sorriso largo. Às vezes, uma timidez; e daí?

Freqüentemente, em diversos locais da região, apresentam peças sempre com o mesmo tema: o descuido para com o planeta. Depois do espetáculo (ainda em seu último estágio de experiências, para estrear na noite seguinte ainda para convidados especiais – prefeito, padre, juiz e juíza, entre eles), a convite do diretor, um dos comentários vindos da pequena platéia foi: tema batido, mas apresentado tão naturalmente, com espírito e graça. E não à toa: às tantas, surge um ator do meio da platéia batendo pratos metálicos, paramentado de poluição – uma peruca, roupa cinza, a voz, bem colocada, belo contraponto.

Monólogos de envergadura foram ditos desenvoltos, como se fossem todos eles atores e atrizes de grande experiência.

Caiu hoje de madrugada Zé Dirceu, um dia ícone e, hoje, indesejável do PT.

Caiu muito mais por terra hoje à noite em Minaçu, cidade que poucos conhecem e em muito menor número sabem que existe. Só não se sabe exatamente o que foi que caiu, que não foi o Zé Dirceu: foi coisa, atitude, - não gente, que ruiu por terra, hoje, no Brasil. Só se sabe que foi coisa ruim, que atravancava, impedia, afastava, excluía. Muito, muito pior que atos ou atitudes de políticos, e que se duvide mesmo que tenham sido ou não comprovados, sejam eles de esquerda, centro ou direita, o que caiu hoje em Minaçu – ou começou a cair - foi um monstro – e levará tempo para que se saiba seu nome e mais tempo ainda para se saber que foi em Minaçu que ele iniciou sua queda e seus efeitos transformadores que virão.

Esse foi o relato enviado por Ricardo Coração dos Outros V à universidade americana que patrocinava seus escritos acerca de possíveis transformações que poderiam ocorrer no Brasil, em 11 de dezembro de 2005, às 23 horas e 40 minutos.

Só muito recentemente foi que se soube que o texto foi escrito por sua mulher, a americana Rita.

11.29.2005

O TOMBO

Rala os joelhos
Rala as mãos
Rala os dedos
Faz um estrago muscular generalizado

Rasga as calças nos joelhos
Arrebenta o bico dos sapatos
Exige ataduras e mercúrio-cromo
Condena o tombado a mancar e dar explicações

Por uma semana às vezes anos.
Entretanto maior estrago é na alma
O descontrole da queda do tombo atemorizante

Ficar sentado no chão até que o susto e a dor diminuam e pior:
Como se tomar cuidado evitasse tombos separações falências
Ouvir de alguém Você deveria ter tomado cuidado.

11.26.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E SEIS –

As obras de construção da segunda hidrelétrica, nas mãos da iniciativa privada, seguiam aceleradas. As rodadas de negociação para indenização de proprietários e reassentamento de moradores e trabalhadores de terras que iriam ser alagadas não podiam seguir em ritmo diferente. A população não-proprietária atingida tinha que decidir para onde ser reassentada: reassentamento coletivo agrícola, uma casa na cidade ou um auto-reassentamento rural por carta de crédito? Dentro da casa, onde as salas serviam de escritório, assistentes sociais conversavam baixinho com as pessoas. Já o contratado para negociar a indenização de terras falava alto de se ouvir lá fora. Lá fora, a fila de quem esperava sua vez de ser atendido.

Luzia apoiou as mãos nas costas, muito cansada, mas sem cramá da vida. Na beira do rio, prantava o que desse, o marido fazia tudo que ela pedia. Na verdade, mandava. Mas ele fazia e de bom grado. A terra de Seu Ernesto já não estava dando era nada que prestasse. Para ela e a família, a idéia de se mudar para um lote de reassentamento que fosse seu era como um sonho que viria a se realizar de forma completamente diferente do sonhado todos os dias, todas as horas do dia e da noite.

10 hectar num é nada, num presta pra nada. 2 alqueire, o que é que se faz com 2 alqueire? Zininha de manhã tinha caído no buraco outra vez. Inferno de vida. Calor insuportável. Prantá se pranta em qualquer lugar, saiam dali e iam pra outro lugar, pra terra de outro, pra beira do rio, na beira do rio num tem seca, pranta e colhe e pronto, num tinha esse negócio de chegar uma empresa e tirar ela dali. Aquele buraco é que era um castigo, não sabia era do que, afinal, era castigada. Pecado todo mundo tem, o dela não era pior do que o de ninguém. Ninguém aparece, Deus do céu, pra me tirar daqui. Apareceu uma dessas moça da empresa, até que enfim, Moça, tira eu daqui, caí na disgrama desse buraco. Fica tranqüila, Zininha, me dê a mão, vá. Vamos pro escritório da firma, ocê precisa dizer praonde tu queres ir, Zininha, vamos, ajeita o cabelo, passa uma água no rosto, vai. O moço da camionete tá esperano.

O banco num vai emprestá dinheiro pra mim. Os fila da puta só qué sabê de papé. É só do queles querem: papé. Papé e mais papé. Essa hidrelétrica vai tirá muita gente das casa, o negócio é não sê idiota, tem que tirá vantage da situação. Se é pra mudá, se não tem jeito, mió que muda pra mió. Meu genro acho que tem os papé que o banco tá quereno, levanto o dinheiro no nome dele, pago pra ele, compro minhas cabeça de gado, umas vaquinha, vou tirano leite, vendo e pago a ele e pronto. Depois, compro outras vaca e vai se viveno. Já quebrei umas duas veiz, num vou quebrar de novo, nem fudeno. Seu Josefino aqui não é burro não, só de carga, êh êh.

Zequinha apareceu perambulando já totalmente bêbado, como era sua rotina. Queria cumprimentar os outros e ninguém lhe dava a mão, só o capanga do agiota que andava de chinelo de dedo, apertava a mão dele com uma nota de dez dentro e dizia, Vai-se embora daqui, Zequinha, vai pra casa da tua mãe. Vou me matá mais um pouco e depois eu vou, Zequinha respondia.

Essas negociação tinha que sê mais depressa, a fila tá grande demais. Dispois nós chega lá dentro e eles tem pressa, diz que o lago vai enchê, que a rente tem que escolhê depressa, senão as água vai cobri nossas terra. Mas o preço que eles tá pagano tá baixo, eu quero mais. Terra minha num tem ninguém que vai cobri de água se eu num quisé, num tem decreto nem revorve capaz de fazê isso não. Pelo preço que estão quereno pagá, num vendo não – dizia o agiota, proprietário de fazenda, pro capanga de chinelo de dedo. O revolver na cintura, tal e qual trazia o seu o segurança contratado, à porta das salas das assistentes sociais e do negociador de indenizações. Veio a moça com a garrafa térmica com café e copinhos de plástico, Dona Luzia lhe disse, Moça, quero café não, com esse calô, mió água. Traz água pra nós, moça do céu.

No Rio de Janeiro era um dia igualmente quente, apenas úmido, muito mais úmido que em Minaçu. Ricardo Coração dos Outros V visitava seu avô, muito doente. Enquanto esperava que a enfermeira saísse do quarto dele, olhava fascinado sua estante de poeta e compositor popular. Entre Vinicius de Moraes e Antônio Maria, Sheakspeare; ao lado de Paulo Francis, Caetano Veloso. Era um gozador. Não morre não, vovô, não morre não. Ricardo, seu avô faleceu, lhe disse a enfermeira, saindo do quarto do seu avô, mulata, forte, grande e doce. Era o ano 2000.

11.22.2005

GRAVAÇÃO TELEFÔNICA ANUNCIA

Há coisa que se ver por aí. Por aqui também. Florianópolis às vezes revela um por do sol que vou te contar. Muito interessante se ter o mar o tempo todo à volta. Aí muda-se para Minas Gerais bem no alto e o clima é o mais que perfeito, da temperatura ideal, pressão atmosférica baixa forçando a nossa pra cima, nada que um chope na pressão não atenue. Quem quiser que casse meu registro no Conselho de Medicina, e cassará o que jamais tive. Melhor que me prendam como charlatã, já vou sem defesa, para Leblon 1. Que fica no Bracarense. Melhor no sábado à tarde, mas pode ser na sexta à noite, não me importo. Desde que depois de uma rápida passada no beco da sardinha, na Rua Miguel Couto.

Há coisa que se ler por aí. Melhor deixar as novidades pra outro dia; se prescrevessem Rubem Braga e Manuel Bandeira pros dementes que posam de salvadores da raça da pátria do mundo pondo vísceras alheias à disposição de tiros explosões torres, haveria rejeição imediata de órgãos, todos os órgãos deles a eles os vomitariam de si, a se tornarem organismos vivos ativos ao invés de passivos órgãos dos abutres que os contém.

Há coisa para se assistir por aí. Canal Brasil / 66. TV por assinatura; não é barato não, mas a estação é boa. Ângela Rorrô entrevista músicos, Selton Mello, gente de cinema, Domingos de Oliveira, mulheres interessantes, Paulo César Pereio, quem há de interessante, Paulo Betti, atores e atrizes em início de já vitoriosa carreira. O diretor da programação se chama Paulo Mendonça, tenho um amigo que teve um amigo de infância com esse nome; ao terceiro sinal, grave sua mensagem. Passam filmes nacionais também, é essa a função primeira da estação; Chico Dias, a quem o amigo a quem me referi teve o prazer de conhecer pessoalmente faz um tempão, apresenta Cone Sul, com cinema latino-americano de nos fazer convidar o cachorro a assistir conosco depois de ter ido dormir quem estava com a gente e antes que começasse o filme, porque a tv do quarto estava aberta.

Não tem havido muito o que se ouvir, pelo menos cuja sintonia seja conhecida por gravações desavisadas como essa, que vem aqui propor o que se veja assista leia fora dessa mesmice constante onipresente ultimamente.

A você que me ouve, atenção: só dois descobriram o significado da palavra Lirismo – classificado pelas agências internacionais como investimento de altíssimo risco. Lirismo vive à beira da pieguice, mal maior que a breguice e mesmo a chatice, menor apenas que a imensafadeza. Manuel Bandeira e Rubem Braga souberam o que significa Lirismo, tentaram ensinar e ninguém aprendeu. Provavelmente ninguém aprenderá.

Mas há o que se ver e ler e assistir.

Ouvir é que anda um pouco difícil.

Ou foi engano?

Grave sua mensagem, por favor.

11.18.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E CINCO –

Adivinhar o futuro
ro
tu
fu
Será obra de análise

De
ca
da

De
Todas as possibilidades todas as possibilidades todas as possibilidades
Do

2°.

Este poema concreto de Olga Cristina, irmã do compositor Ricardo dos Outros (ou Ricardo III), publicado em 1972 (ano de sua morte, aos trinta e dois anos), foi minuciosamente examinado em 2002 por alguns dos mesmos patrocinadores da pesquisa – ou pseudo-pesquisa – que desenvolveria Ricardo V, acerca de perspectivas de revoluções na mentalidade brasileira, com conseqüências importantes no exercício da política no país, como afinal acabou ocorrendo, a partir de 2017.

Adivinhos nunca foram – nem serão – novidade. Ao longo da história, suas adivinhações sempre ficam em segundo plano em relação à expectativa que costumam causar. Previsões econômicas, muito em voga nos últimos trinta anos do Século XX e na primeira década do XXI, sempre se voltaram a platéias acostumadas a questionar e depurar o que lhes era dito; o problema é que eram veiculadas na televisão de então, para um público acostumado a questionar e duvidar sem a menor chance de questionar – o que gerou frustrações consideravelmente coletivas.

O que espantou aos patrocinadores de, primeiramente, Rita e, depois, seu marido, Ricardo Coração dos Outros V, ainda em 2002, quando os dois mal haviam chegado a Minaçu, para as pesquisas de Rita sobre a tribo Avá Canoeiro, então com seis representantes a caminho certo da extinção, foi o fato de que aquele poema, escrito havia trinta anos por uma tia-avó de Ricardo V, que falava de adivinhação, tivesse adivinhado (!) o processo de previsão – ou seja: um poema que falava da adivinhação adivinhara... a adivinhação.

Naquele começo deste Século XXI havia uma associação entre universidades americanas, francesas, italianas e alemãs especificamente para estudar o que se convencionou chamar de “A hipótese Deus”. Apenas para efeito de análise crítica, científica, os acadêmicos envolvidos na pesquisa partiram da premissa da existência de Deus. E questionaram-se:

- Por que Ele, que tudo sabe antecipadamente, não imprime profunda mudança de rumo nas coisas, sejam elas extra-terrestres, espaciais, próprias do Universo, ou as mais comezinhas, terrenas, às vezes supostas como grandes causas, mas que sempre costumam resultar em grandes ou, raramente, pequenos conflitos? Evitar catástrofes, pestes, fomes intermináveis, cobiças altamente predatórias do resto dos demais, porque não, se havia o dom da premonição, adivinhação, predestinação, e esse dom era um dom exclusivo de Deus?

Sem conseguir responder a essa questão, os “scholars” pesquisaram como poderia ser o processo adivinhatório ou premonitório dos fenômenos naturais, principalmente os humanos. Tomando uma hipotética vida humana como elemento de ensaio, aquele grupo de estudiosos da América e Europa concluíram que, se fossem conhecidas as características daquela vida - seu passado, hábitos, contatos, aspirações, amores, frustrações, limitações, anseios - e se a cada nova decisão que esse indivíduo tivesse que tomar fossem analisadas todas as suas possibilidades, várias previsões poderiam ser feitas – mas finitas; se for verdade que se tenham esgotado todas as possíveis opções para a decisão a ser feita por ele. Um processo de refinamento contínuo de cada hipótese do conjunto finito de hipóteses identificado e delimitado acabaria por reduzi-lo, até que se descobrisse – adivinhasse! - exatamente a decisão que a pessoa viria a tomar. Entretanto, seria necessário que se criassem softwares poderosos de levantamento e depuração das hipóteses de decisão, de modo que sua antecipação pudesse realmente acontecer, isto é, antes, evidentemente, que ela fosse tomada. Algo como costumam fazer os jogadores de xadrez, detetives particulares, centrais de inteligência das nações mais poderosas do mundo ou amantes que se supõem traídos – mas em velocidade muito maior, a ponto de que fosse possível modificar o próximo passo, seja a favor da pessoa que tem a indecisão à sua frente, seja daqueles que se beneficiarem da manipulação do destino alheio. Assim supuseram aqueles pesquisadores de mais de quinze, quase vinte anos antes deste 2020.

Por que Deus não faz isso, não interfere no destino dos homens, ou se o faz é de forma incompreensível a eles, os scholars não conseguiram responder; mas o desenvolvimento da informática e das comunicações é por demais veloz, dotando a ciência humana perfeitamente capaz de interferir na vida - na própria ou alheia, como se lhe aprouver, a depender do quanto se detenha de dinheiro e / ou poder. Talvez isso faça a diferença entre a divindade e a humanidade; mera especulação que constou da conclusão dos estudos daquele grupo de pesquisadores do início do Século XXI. Mas o poema de Olga Cristina persistia em intrigá-los; e era só um poema.

11.15.2005

MEUS CINQÜENTA ANOS

Quando foi a vez de Manuel Bandeira, ele disse ter feito cinqüentanos; mas era o Manuel Bandeira. Já Rubem Braga disse mais ou menos assim (não acho o livro dele com a crônica, porque o marceneiro não aprontou algumas prateleiras – pôr a culpa no marceneiro, só quem tem cinqüenta anos é que pode (e eu ainda não tenho)): “Cheguei à metade da minha vida sabendo que a segunda metade será menor que a primeira”.

Pois nem essa certeza eu tenho. Vivo no século XXI, os americanos até na lua já estiveram, provavelmente inventarão a pílula dos cem anos. Bem verdade que terríveis furacões mostraram algumas das suas deficiências, principalmente sociais. Quem sabe na África ou aqui mesmo essa pílula já não foi inventada e só eu não estou sabendo?

Pelo menos uma coisa é certa: a disputa entre a devastação e a descoloração permanece acirrada. Refiro-me ao couro cabeludo, claro; no meu caso, por enquanto está dando empate, mais ou menos de 5 a 5. Fios.

Não conheço Europa nem França, mas a Bahia, sim. Nasci no Leme e freqüentei Portela, Mangueira, Salgueiro e Vila Isabel. Conheço ainda Goiás, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e do Norte, Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Pará, Maranhão, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais. Pra que mais? Ouvi jazz em Nova Iorque, Chicago e Nova Orleans – eu conheci Nova Orleans! Estive em Dallas, Houston e uma outra cidade texana, onde comi o pior churrasco do mundo; Miami, Orlando, fui à Disney! Hartford, Connecticut. Em Saratoga Springs, na companhia de dois Carlos, comi sopa em prato de pão, e fomos os primeiros e últimos a deixar o bar daquela cidade, que parece de brinquedo, em uma tarde-noite de Domingo. Em Denver, conheci mansões de brancos e casarios de negros e um bode montanhês. No dia seguinte, um motorista de táxi, da Somália, me disse “Yesterday, we were completely East”. E eu completei: “Today, we are completely lost.”

E cheguei até aqui. Nascido no Rio de Janeiro, morando há cinco anos em Florianópolis, sim senhor, sim senhora. Casado, pai de uma filha – uma só filha – de onze anos. Aos quarenta e nove! O que eu poderia querer mais? Pois, por mais que eu me esforce em me esmerar na minha particular chatice, onde vou há gente generosa, que vira minha amiga.

Mais: saúde e doença, alegria e tristeza, riqueza e pobreza, são coisas ditas pelo Padre e que acontecem a qualquer momento, nada têm a ver com idade alguma. As mulheres continuam lindas, minha mulher ainda gosta de mim; sou um homem de sorte. Um homem de sorte, que nasceu em um país cuja probabilidade de se viver muito mal é muito grande – e eu, homem de sorte, vivo bem. Muito bem.

Muito bem. No próximo dia dezessete, vou fazer cinqüenta anos.

Preciso interromper agora, porque aqui, na praia, alguém me pergunta se tenho as horas. Não - eu respondo -, não as tenho, não. E nem as quero.

mariobenevides.blogspot.com 15 de novembro de 2005.

11.12.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance inédito de Mario Benevides
- CAPÍTULO TRINTA E QUATRO -

Manuel Bandeira, estrela da vida inteira, minha amada quer ficar solteira. Não me olha nem de baixo pra cima nem de cima pra baixo, me sinto objeto de puro esculacho, menos pra sapato que pra capacho. Meu caro modernista, me dai uma pista, me aconselhai. Parei na contramão, não tenho dinheiro não, estou mais pra chuchu que pra camarão. Farei das tripas coração, dizei a mim, meu irmão, se vou-me embora pra Passárgada ou se minha vida é beco, sem solução.
Com essa letra, do seu samba "Minha estrela quer ficar solteira", que fez muito sucesso nos anos cinqüenta do século passado, Ricardo Coração dos Outros III tocou o coração do grande poeta pernambucano, que o quis conhecer. Marcaram encontro em Petrópolis, a cidade imperial na região serrana do Rio. Ricardo VI encontrou, no fundo de uma gaveta, uma carta de seu bisavô paterno ao poeta que tantos anos viveu na Lapa, no Rio, que diz assim:
Meu caro Poeta, com P maiúsculo,
Que presente a vida me deu. Esse negócio de inspiração é privilégio de gente como você, Gente com G maiúsculo, de Generosidade. Meu g é minúsculo, de modesta gratidão. Inspiração, no meu caso, é coisa que o vento carrega com ele e o primeiro e mais rápido vai lá e pega e põe numa canção. Foi assim com meu samba, no qual eu só queria mesmo era homenagear você, meu nobre Poeta, sua elegância e fidalguia. Que muitas gerações ainda possam ter o privilégio do seu convívio e do convívio e afeto pela raça humana que guardam seus inspirados versos. Quanto aos meus sambas, chorinhos e marchinhas, ora, são mais passageiros que o próprio vento que os trouxe para mim, assim, de graça, a mim, que nem os mereço.
Houve pelo menos mais um encontro dos dois em Petrópolis, dessa vez na presença ainda de Vinícius de Moraes, pouco antes de acontecer sua mais famosa parceria, com Tom Jobim. Foi desse encontro, registrado em carta de Ricardo III a um amigo seu, Alfredo das Neves, que nasceu a marchinha de carnaval "A marcha do operário que diz não", censurada, no final dos anos sessenta do mesmo século XX, que dizia assim:
O operário em construção disse não, não, não. Hoje não vou trabalhar, não, não, não. O meu pai morreu na guerra, minha mãe ficou na serra, não, não, não. Hoje eu vou ficar em casa, do franguinho, quero a asa, não, não, não. Eu não sou nenhum malandro, vagabundo ou preguiçoso, não, não, não. Eu trabalho pra caramba, tenho orgulho do meu samba, não, não, não. Mas eu vou ficar em casa, do franguinho, quero a asa, não, não, não. O operário em construção disse não, não, não. Hoje não vou trabalhar, não, não, não. E aí o operário, que não era salafrário, perdeu o salário e foi chamado de otário, não, não, não.
A marchinha terminava em breque – isto é, uma frase dita quase sem melodia:
Com saudades do Bandeira, o operário do Vinícius foi preso e morto sem vícios - tal e qual sua construção.
Por causa da marchinha censurada, e por conselho de amigos, foi para Petrópolis que Ricardo Coração dos Outros III fugiu, disfarçado de caseiro em casa de veraneio de rica família carioca, que resolveu protegê-lo por gostar muito dele e suas canções. Em uma outra carta a Alfredo das Neves, Ricardo III conta assim:
Querido Amigo,
Gosto desse friozinho e também de fazer o que eu faço por aqui. Arrumo o telhado da casa principal, coloco a antena no lugar, deixo o jardim arrumadinho e carregado de hortênsias, uma graça. Já chamo a amada de patroa, e ela está-se saindo muito melhor que a encomenda: faz uma galinha ao molho pardo que deixou Vinícius dormindo na poltrona depois do almoço com cara de anjo. Meus patrões, que são grandes amigos meus, deixaram o poetinha dormindo até o quanto ele quis. O poetinha, ao acordar, abriu um sorriso maroto, levantou-se e perguntou: "Alguém viu meu uisquinho?". Não falo nada do que fazia antes, pois, nesses tempos, é melhor ficar quieto, cumprimentar os vizinhos, trabalhar modestamente e, principalmente, não fazer barulho.
Saudades,
João.
(Claro: naqueles dias, Ricardo não podia assinar outro nome, que não fosse João.)
De um telefone público, ainda que com medo, foi que Ricardo III confessou:
- Mais difícil que usar barba e cabelo postiços, mais duro ainda que perceber minha mulher tristinha, chorando baixinho, é nem poder chegar perto do meu violão, que ficou aí, no Rio, e essa foi a condição dos meus amigos e patrões para me proteger nesse disfarce de caseiro. E não é que eles não gostem dos meus sambas, não, é que eles se preocupam tanto comigo e gostam tanto de mim, que me disseram assim: "João, você é tão bom violonista e compositor, tão conhecido, que se você pegar e tocar seu violão, toda a vizinhança vai logo saber quem é você, e aí..." E aí, meu amigo Alfredo das Neves, em vez de morrer o Neves, quem vai morrer sou eu.
Aquela fase seria encerrada e narrada em outra letra sua, da canção "João caseiro", que diz assim:
João gosta de ficar em casa, de trabalhar em casa, de não sair e falar com ninguém. Melhor ser João caseiro que João festeiro, que João Ninguém. Outros farão a história mas sem ficar na memória de ninguém. No entanto, João é modesto e reconhece: quem faz a história não é o famoso nem o festeiro nem o caseiro; quem faz a história, a verdadeira história, é João Ninguém.

11.08.2005

DO ATO DE ESCREVER

(SEM DESFAZER DE FERNANDO SABINO OU VINICIUS, DE SUAS TESES E CONFIÇÕES DA LUTA DO EXERCÍCIO DA CRÔNICA)

Sua dificuldade pode estar no formato do caderno, na combinação da sua postura com o ângulo que sua caneta faz e projeta na folha pautada, com a margem à margem, vermelha, delimitando as regiões do seu texto e sua vizinhança hostil, de espirais e perfis desconexos, alienados e descontentes com sua escrita - a história que você vai registrando pauta a pauta, à direita da margem vermelha. Virando a página, a direita vira esquerda e a esquerda volta a ser direita.

A letra da união – ê, é, e – varia na pronúncia e no desenho. Є, Е, Σ. Escolha o seu “e”, seu mais, sua letra de união, mas escolha: indecisão é perda de tempo.

Seu teclado deveria ter o CAPS LOCK mais distante do A, o Alt Gr longe da barra de espaço; ou suas mãos poderiam ter não mais que cinco dedos cada uma. Lembre-se das máquinas de escrever ou, se você não chegou a conviver com elas, conviva – e verá que apagar, nas Olympia alemãs, era mais difícil. Principalmente da memória, que só começou a existir depois delas.

Apóie seus braços nos braços da cadeira, porque, senão, cada adeus lhe causará inflamação no epicôndilo. Traduzindo: dor de cotovelo.

As costas, as tenha protegidas, quer por montanhas, quer por duzentas milhas náuticas e oceânicas. Mas livres, sempre. Apoiadas, sempre. E amigas.

A testa, melhor mantê-la ligeiramente franzida, desde que sobre uma perspectiva de sorriso ou indignação.

Usando nem caneta nem teclado, bom e velho e apontado lápis ou namorada lapiseira zero-cinco ou zero-sete, perceba ser a grafite a mais que capaz de reproduzir as impurezas do branco que Drummond transformou em puras palavras. A área cinzenta tanto poderá ser cérebro quanto indefinição – e guerra. Assim, não se curve demais sobre as sombras, tampouco debaixo delas.

Escrever nem é inspiração nem transpiração.

Escrever é postura.

O resto é instrumento.

11.04.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E TRÊS –

Depois da assim chamada reforma eleitoral e partidária de 2007, dizem muitos que, nas eleições de 2010, a convulsão social foi determinante para a vitória do PIB – Partido Idealista Brasileiro -, formado por vários ex-integrantes tanto do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) como do PT (Partido dos Trabalhadores). Se em 2002 Anthony Garotinho tivesse chegado ao segundo turno contra Lula no lugar de José Serra, era tido como certo que o PSDB apoiaria o PT no segundo turno da eleição presidencial daquele ano; e a passagem do cargo de FHC para Lula, naquele ano, foi tida como pacífica e até mesmo elegante. Portanto, não foi grande surpresa quando a rixa de anos entre os dois partidos terminasse por resultar na formação de um terceiro e sem que os originais que lhe deram origem se extinguissem e mesmo deixassem de apoiar o PIB - como sucedeu. Tampouco foi surpreendente que as acusações de corrupção havidas principalmente no período em que ambos se alternaram nas posições de situação e oposição de parte a parte fossem esquecidas, ainda que lembradas pelos outros partidos, de oposição à coligação PIB-PT-PSDB de 2010 – mesmo porque tinham também contra si outras tantas suspeitas.

Outro fato é que as cassações de alguns mandatos em 2005, ainda que em número inferior ao que gostaria grande parte da população, tiraram de cena alguns dos mais que suspeitos de uso da caixa dois e / ou suborno, muito embora algumas das renúncias tenham trazido de volta ao Parlamento, em 2006, alguns não só dos suspeitos como até dos comprovadamente culpados, tenha sido por desinformação ou por uma espécie de fé inabalável que pareciam merecer dos seus eleitores.

“Contra a convulsão, a união” – esse foi o slogan da chapa vitoriosa em 2010.

O artigo 2° do Capítulo II do estatuto do PSDB (“Dos Objetivos e dos Princípios Programáticos”) definia: “O PSDB tem como base a democracia interna e a disciplina e, como objetivos programáticos, a consolidação dos direitos individuais e coletivos; o exercício democrático participativo e representativo; a soberania nacional; a construção de uma ordem social justa e garantida pela igualdade de oportunidades; o respeito ao pluralismo de idéias, culturas e etnias; e a realização do desenvolvimento de forma harmoniosa, com a prevalência do trabalho sobre o capital, buscando a distribuição equilibrada da riqueza nacional entre todas as regiões e classes sociais.”

Já o do PT, em seu capítulo I (“DA DURAÇÃO, SEDE E FORO), artigo 1°, estabelecia: “O Partido dos Trabalhadores (PT) é uma associação voluntária de cidadãs e cidadãos que se propõem a lutar por democracia, pluralidade, solidariedade, transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas, jurídicas e culturais, destinadas a eliminar a exploração, a dominação, a opressão, a desigualdade, a injustiça e a miséria, com o objetivo de construir o socialismo democrático.”

O programa de governo da coligação liderada pelo PIB, a grande vitoriosa das eleições de 2010, continha propostas diferentes mas absolutamente convergentes, não sendo difícil identificar de que vertentes partiram suas respectivas propostas - desde que se conheça um pouco da história dos mandatos e da prática política, como situação e oposição, dos partidos que deram origem ao PIB e a ele se aliaram em 2010, PSDB e PT, que propriamente seus estatutos. Por exemplo:

“AMPLIAÇÃO DE MERCADOS – favelas e periferias constituem-se excelentes oportunidades de rápida ampliação de mercados de diferentes produtos e serviços, mas muito especialmente para concessionárias de água e esgoto. Sob a liderança do Governo, Estado, empresas privadas e sociedade em geral deverão fomentar a capacitação para o trabalho e o empreendedorismo dos habitantes de favelas e periferias para que estes possam se tornar consumidores, pagando suas contas, eliminando conexões irregulares e ilegais (“gatos”), com ganhos de escala e conseqüentemente diminuição da tarifa, eliminação de perdas, menores gastos públicos com saúde e menores tensões sociais. Para tanto, é preciso vencer o tráfico de drogas, visto ser uma atividade cujas oferta e demanda são contrárias ao interesse da maioria.”

“INCLUSÃO SOCIAL – é preciso desmarginalizar o favelado e o habitante das periferias das grandes cidades. Para isso, é necessário levar as redes de água e esgoto às suas casas, permitindo a eles alcançar o direito constitucional da cidadania e da saúde, o que poderá ser conquistado criando-se para eles oportunidades de justa e lícita auto-geração de renda, através do emprego, da formação de cooperativas e de pequenas empresas, afastando a criança, o adolescente e o adulto da marginalidade, do tráfico e do consumo de drogas.”

Ricardo V percebeu a afinidade daquelas idéias com as suas, contidas em seu best-seller “A Revolução Brasileira de 2017”, publicado um ano antes da vitória da coligação e seu programa de governo. Por isso, filiou-se ao PIB e passou a freqüentar algumas das suas reuniões e convenções, em Brasília, em Goiânia, no Rio e em São Paulo, além das havidas em Minaçu, muito raras e pouco freqüentadas, diga-se de passagem. Ricardo V sofreu forte resistência à sua filiação, além de feroz crítica por parte de escritores, intelectuais de plantão, cientistas políticos e outros setores. Com o sucesso do livro, já alcançara autonomia financeira para não depender da universidade que o mantivera por um bom tempo, à guisa de que desenvolvesse suas teses. Queria conhecer a política profissional para melhor chegar ao seu oposto: a sua sonhada política amadora.

10.31.2005

O HOMEM, A MULHER E SEUS SUBS

Mulher é o engenheiro do homem.

Homem gosta da mulher.
Mulher gosta do projeto.
Ao ver um homem do seu agrado
A mulher dirá

ESSE TEM CHANCE
PODE FICAR DO JEITINHO QUE EU GOSTO.

O homem
Percebendo o interesse da fêmea
Sendo humano - isso é: tolo -
Encherá o peito e pensará

ESSA TÁ NO PAPO.

Namoro iniciado e
Principalmente
Continuado

Desde seus sapatos
Á barriga
Passando pela quantidade do que bebe e come
Chegando ao caráter
À vontade de vencer
Que antes nem era tanta
Ao penteado e à pasta de dentes

Tudo será modificado.

Ao perceber o interesse da mulher
O homem não deverá jamais se achar o tal.
Melhor fará se pendurar uma placa no próprio peito
Onde esteja escrito

EM OBRAS.

Assim e só assim
- Inacabado -
O homem será desejado pela mulher.

Ou será mero interesse
Da sub-mulher
Pelo sub-homem.

10.29.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E DOIS –

Naqueles dias de 2005, de crise política e referendo à proibição das armas – amplamente recusado -, as sensações variavam do espanto à revolta, passando pela indiferença pela repetição das reportagens e cenas de acareações e interrogatórios conduzidos pela comissão parlamentar mista de inquérito então constituída. Quanto ao referendo, houve quem dissesse que o “não”, que venceu ao “sim”, não fosse restrito à proibição da venda de armas, mas significando também repulsa à “caixa dois” - a própria caixa de Pandora, que foi a primeira mulher feita por Zeus e entregue a Epimeteu, que possuía a misteriosa caixa, que Pandora abriu, sem saber que assim deixaria escapar da caixa a inveja, a vingança e o reumatismo, deixando lá dentro somente a esperança - a mesma da população brasileira de quinze anos antes desse relato, de que a política se transformasse, ainda que ruidosa, tediosa e dolorosamente. Sabe-se agora que a conhecida e por vezes desprezada esperança brasileira – não tão diferente da de outros povos, como os gregos - não foi em vão: hoje, em 2020, a política, a partir e por conta da revolução pacífica de 2017, mantém-se elevada.

Dez anos antes da revolução, Giulio Vincenzo, o falso Vincenzo Scarpini, assumira estratégia semelhante ao daquele “our man in Havana”, de Graham Greene – com muito menos imaginação. Como não encontrava mais o que dizer sobre seu vigiado, passou a enviar aos seus chefes nos Estados Unidos relatórios inventados; como este, por exemplo (já com a ortografia e a gramática corrigidas):

“R V continua dizendo à polícia que está escrevendo sobre turismo no cerrado. Tive acesso aos seus escritos em arriscada operação. Está marcando regiões em mapas de Goiás e Tocantins, que, na verdade, comunidades americanas vão ocupar, criando novas fronteiras dentro do Brasil. Abadiânia e Cavalcante são as mais riscadas a caneta hidrográfica, em vermelho e amarelo, mas também em azul.”

Ricardo V depois contaria à mulher e ao filho que simulara telefonemas em código de seu celular a supostos cúmplices enquanto dava suas caminhadas, notoriamente seguido por Giulio Vincenzo, sempre na garupa de uma moto-taxi. Dizia, por exemplo, assim:

“Para os mórmons, há boas terras no trajeto de Cavalcante a Minaçu. Já para a Third Millennium Civilization, que acredita que o calor dos trópicos seja a única força capaz de arrancar o demônio dos corpos, já adquiri duas em Palmeirópolis. Há projetos de hidrelétricas em andamento por lá, o que encareceu os preços, mas essas propriedades ficam distantes delas, em locais praticamente inabitados, perfeitos para nossos propósitos.”

Numa dessas simulações, Ricardo V foi ouvido por Pedrosa, agente do Tenente, o que lhe levou a dar explicações, inclusive para a Polícia Federal. Ricardo V foi visitado em Minaçu por um investigador daquela instituição, sob suspeita de traição da pátria. O detetive, depois de passar alguns dias vigiando e inquirindo Ricardo V, prendeu Giulio Vincenzo. Ao perceber o quão despreparado era seu prisioneiro por suspeita de espionagem internacional; depois de ouvir súplicas de Marita, a prostituta dona de um trailer de cerveja e churrasquinho, que lhe garantira na cama do motel que ficava na estrada para Goiânia que o italiano era um homem bom; ainda que obviamente o tal Vincenzo fosse grosseiro impostor, que de cientista não tinha nem sombra, o investigador foi embora. A partir daí, Giulio passou a inventar uma história sem qualquer nexo para a universidade que o contratara, baseada nos riscos que Ricardo V continuava a fazer em mapas que jogava nas lixeiras públicas da cidade, só para manter o estranho ocupado. Os agentes do Tenente, Figueiredo e Pedrosa, foram transferidos para Porangatu. Ricardo V pode enfim trabalhar e caminhar e freqüentar cidade e região em paz - coisa que nenhum habitante de Minaçu tinha em época de eleições, como a que se deu no segundo semestre de 2006, para deputados, senadores, governadores e Presidente; mas só até 2017, pois, em 2018, o sistema eleitoral seria radicalmente modificado, como se sabe.

Já em 1945, a humanidade comemorava o fim da Segunda Grande Guerra enquanto sofria suas dores. Maria Cristina chorava a morte do marido Ricardo II e, para completar o drama, o fato de estar com quarenta anos e quatro filhos para criar sozinha: Ricardo III, com treze; Ricardo Maria, com nove; Ricardina Cristina com sete; e Olga Cristina com cinco, que se tornaria poetisa concretista e que viria a morrer em 1972, aos trinta e dois anos. O que a viúva não sabia era que o mais velho, Ricardo III, viria a se tornar o salvador da família, com seus dotes musicais herdados do avô e muito cedo revelados, logo se tornando famoso, ainda adolescente, apresentando suas canções na Rádio Nacional com sua voz macia e em baixo volume (quase que um prenúncio de João Gilberto). Emilinha Borba gravou dois de seus sambas, mas cortou relações com ele publicamente quando soube que ele dera para Marlene gravar a marchinha “Minhas moléculas estão no teu sangue para sempre”. A versão em Inglês dessa marchinha – “My cheek is your cheek”, ou “Minha bochecha é sua bochecha” -, foi grande sucesso de Carmen Miranda.

10.25.2005

POESIA, COISA DESVAIRADA, DE POETA E DE QUEM DELA SE APOSSA E GOSTA

Nesses tempos de frangos gripados e vacas febris
O que devemos fazer? Tomar Vitamina C?
De bucha e de bruxa,
Vendavais tão covardemente viris
O que fazer?
Nos esconder? Inverter? Reverter?
Em que ética e pragmatismo
Engalfinham se socam sem luvas em
Pusilânime pugilismo
O que fazer?
Desencavar um ismo?
(Catolicismo? Espiritismo? Capitalismo? Comunismo?)

E se a gente conversasse e se mudasse a gente
E se amasse urgente e de repente?

10.22.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005


- CAPÍTULO TRINTA E UM –

Da porta aberta da casa putridamente decadente, via-se o Ogro somente de short, sem sapatos e sem camisa. Sua cabeça branca de cabelos rentes e seu sorriso lhe davam um ar simpático, e despertaram no visitante em trajes civis, que batera à porta, um forte sentimento de pena. O Ogro, ainda demonstrando surpresa com a inesperada e desconhecida visita, empurrando com os pés uma cadela vira-latas muito suja, convidou-o a entrar e sentar-se. Ricardo Coração dos Outros II apresentou-se, esclarecendo que era um correspondente de guerra brasileiro, em razoável italiano. Ainda de pé, examinou mais detidamente o Ogro: uma enorme e despencada barriga, lanhada de feridas vermelhas; o tórax, muito suado, como o gordo pescoço; a canela da perna direita com uma ferida exposta, sem curativo e aspecto nojento; o olho esquerdo sem cor nem expressão; o direito, azul e arregalado, ainda perfeitamente capaz de expressar os sentimentos do Ogro, além de uma aterrorizante vivacidade, quem sabe, própria do olho e não dele, Ogro.

Ele ofereceu um cigarro que Ricardo II aceitou. Insuportável: cada tragada era um soco dentro de cada um dos pulmões. O Ogro disse assim:

- Vejo você como se estivéssemos dentro d’água. Não vejo seus olhos, apenas seu vulto. Não se impressione com meu olho, tive um derrame de manhã dentro dele, o que não causou nenhuma diferença: já via todo mundo como se todos estivéssemos dentro d’água o tempo todo, nada mudou, tudo continuou igual como estava antes.

(Não para ele, Ricardo II, como confessaria mais tarde ao seu amigo, trisavô de Danilo S., um dos mais conhecidos PCR da atualidade. Ricardo II, ainda que houvesse presenciado a algumas das barbáries da guerra, homens cujas pernas tinham sido arrancadas, outros, os braços ou a cabeça, não conseguia encarar o Ogro e seu olho derramado. Nem fumar seu terrível cigarro.)

O Ogro deu uma profunda tragada, coçou e arranhou um pouco mais o ventre e perguntou a Ricardo II:

- O que você quer comigo?

- Entrevistá-lo.

- Por quê?

- O Senhor desde o começo dessa guerra disse que Mussolini era nada mais que um fantoche de Hitler.

O Ogro suspirou profundamente e balançou a cabeça. Explicou que não usava mais os cinzeiros da casa porque não conseguia enxergá-los, e deixou Ricardo II à vontade para se desfazer das cinzas no chão. Ricardo, discretamente, largou e pisoteou no chão o cigarro que lhe dera o Ogro e acendeu um dos seus, que trouxera no bolso da camisa.

- Você é quem? O que é que você veio fazer aqui? – quis saber o Ogro.

- Sou um correspondente de guerra brasileiro - repetiu. Admiro seu idealismo, sua repugna ao fascismo e ao nazismo. Deu um largo sorriso e completou: - Admiro sua esperteza em manter-se escondido aqui mesmo, na Itália, nas barbas de Mussolini e de Hitler, depois de ter feito ataques tão contundentes e brilhantes contra o fascismo, o eixo e o nazismo. Seus textos, suas falas, seus discursos e conferências, logo no começo... Quanta coragem e precisão!

O Ogro levantou-se, “Você me dá licença um instante?”, ao que Ricardo respondeu, “Claro, claro que sim”.

O Ogro não demorou muito; voltou com uma Lugger, pistola alemã, e, diante do olhar atônito do correspondente de guerra brasileiro, disse a ele:

- Detesto idealistas - e meteu uma bala em Coração dos Outros II. Depois, deu um tiro em seu próprio olho, o opaco, atacado por um derrame na manhã daquele dia, caindo fulminado sobre seu corpo obeso e cheio de feridas. Seu olho bom continuou aberto e vivaz, mirando o teto, de dentro d’água.

A caminho de uma enfermaria de guerra da Força Expedicionária, a FEB, Ricardo II morreu - não sem antes dar seu relato ao amigo, trisavô de Danilo S., do que lhe acontecera na tentativa de entrevistar o Ogro, opositor de primeira hora a Mussolini. Fora chamado de Ogro pela imprensa por causa do olho direito, sempre azul e vivaz, e não pelo esquerdo, derrotado por um derrame de manhã e um tiro à tarde. O homem que passara a ver o mundo totalmente fora de foco por conta de um avançado estado de diabetes, que permanecera o tempo todo escondido na própria casa, na sua própria e derrotada Itália. O Ogro. Que se matara, depois de dar início ao fim da vida também de Ricardo Coração dos Outros II, quando este mal completara seus quarenta e cinco anos, pai de quatro filhos. Não fosse Danilo S. e ninguém saberia de nada disso.

10.18.2005

O GLOBO E O DIÁRIO

O GLOBO desse Domingo teve a seguinte manchete:

“REFERENDO CAUSA CORRIDA POR ARMAS E MUNIÇÃO”.

Quem acompanha este Diário de um Mario leu na semana passada o seguinte:

“Quem jamais pensou em comprar uma arma deve agora estar vivendo a aflição dos últimos dias: tem que ser agora, pois, após o dia 23, poderá estar impedido de adquirir uma arma legal (no sentido de dentro da lei – claro). É possível que quem já possui uma arma esteja formando um verdadeiro exército dentro de casa, também possuído pela mesma aflição dos últimos dias. (...) se você é um aflito dos últimos dias, não perca tempo: vá à loja mais próxima e arme-se. Por causa desses aflitos, é de se imaginar que o comércio de armas legais esteja faturando como nunca”.

Melhor não insistir no assunto – mas não deixa de dar um certo gostinho que esse Diário tenha antecipado o óbvio (nada mais que o óbvio) e sua publicação.

Pra comemorar, esse futurismo há de não ser do óbvio – e se arrisca a prever que um dia acontecerá o que previu Chico Buarque, em sua Valsinha:

E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais... Que o mundo compreendeu... E o dia amanheceu... Em paz.

Para que isso aconteça, é preciso antes de tudo lembrar da velha terceira Lei de Newton.

Bush vai se armando e ameaçando e vendo fantasmas no mundo todo e também ao sul do seu país. Seus olhos de ave de rapina miram tanto na tríplice fronteira - que lembra a tríplice aliança de tempos idos e que serviu a re-arrumações na mesma tríplice fronteira de hoje, então a serviço de outros da mesma origem de Bush, anglo-saxônica - como na Amazônia, principalmente na Venezuela – onde a referida lei newtoniana é apimentada por uma apaixonada formação militar e propalada como ideológica, de Hugo Chaves, que vai se armando e ameaçando e vendo fantasmas no mundo todo e também ao norte do seu país, em processo assustadoramente re-alimentador daquela lei – que foi ninada no mesmo berço dos primeiros anglo-saxões.

Nos tempos de Dom Pedro I e Simon Bolívar, nosso então imperador, sábia, política e diplomaticamente soube deixar de meter nossos antepassados em intermináveis turras na região que Bolívar chamava de Grã-Colômbia (que ia até a Venezuela). Talvez esse, quem sabe, tenha sido ensinamento mais profundo que possa ser profundo qualquer debate sobre (des-)armamento.

E é só. Melhor: lembrar também de Vinicius de Moraes com Tom Jobim:

Vai e canta a última esperança, esperança divina, de amar em paz...

10.15.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005


- CAPÍTULO TRINTA –

O movimento orbital de um corpo celeste é uma revolução, como o de uma coisa qualquer em torno de um eixo. Por que será que meu pai imaginou uma revolução para o ano que vem? Em torno de que eixo? Que órbita será iniciada por esse movimento que ele imagina que será pacífico? E que tem que ser insurgente, pois, senão, não será uma revolução?

Contra o quê é fácil de se perceber.

Houve progressos consideráveis desde a última década do século passado. Toda e qualquer farsa, tenha vindo de que força que tenha sido - comunicações, poder público, tráfico, toda e qualquer farsa -, se assim não se revelou de imediato, assim foi logo desvendada, farsa como farsa que era e sempre foi desde a origem; fosse por outra das forças ou pela simples percepção que se consolidou do que seja e do que deixe de ser farsa.

Sublevação, rebelião, subversão, revolta, insurreição – nada disso é parecido com paz, movimento pacífico, sequer orbital. Engano meu: orbital, sim, pode ser – e deve, deve ser esta a fixação de meu pai. Orbital em torno de uma idéia. Meu pai jamais foi marxista, aliás, nunca consegui saber quem influencia meu pai, ou com quem ele se identifica. Tantos meu pai leu! Deve ser ele um misturador de idéias e ideais. Da minha parte, sempre me deu mais prazer escrever e escrever e escrever, pelo simples especular. Perguntar. Observar. Orbitar! Mas sem saber em torno de que eixo...

Minhas tias gêmeas e meu avô lá fora se perguntam, mas afinal, o que ele escreve, um diário? Mais curioso ainda: ainda não perceberam que encontrei escritos e discursos e pautas musicais da terceira geração dos Dos Outros, que nasceu de Maria Cristina e Ricardo II, morto na guerra de Hitler e Mussolini.

Mais interessante ainda – e espero que meu pai não perceba – é que, momentaneamente, enquanto passo esse tempo aqui no Rio, roubei dele curiosas anotações. Procurei por elas em seu livro famoso e não as encontrei – quando muito, alguma coisa parecida, alguma idéia que ele desenvolveu desses rascunhos. Mas não deixa de ser interessante que possam se tornar realidade. A revolução pacífica, que transforme o Brasil não em um país igualitário e totalitário, mas inclusivo, do socialismo surgido do próprio capitalismo. Ou vice-versa? Posso muito bem usufruir do início da minha adolescência. Posso, aliás, inventar palavras, como adulescência, a essência da adulação adolescente. Regina Célia é puxa-saco – puxa, que decepção! Adulando o professor Henrique, de Português – e pelo telefone! Pan-babaca!

Meu pai, Ricardo V, escreveu assim, já faz bastante tempo:

Muito me admira a capacidade de alguns desses agricultores dessa terra seca e poeirenta a maior parte do tempo e encharcada durante o resto não só de arrancar o que seja do chão, seja milho ou pasto ou vegetação a lhes curar a dor de barriga, mas de conseguir vender e escoar a produção deles nessa cultura secularmente isolacionista, individualista, que usa tapa-olhos laterais e só enxerga a tela da televisão. Mais vai me admirar – e há de acontecer – quando essa gente arrancar dos olhos desses cavalos de carga humanos seus tapa-olhos. Só que suavemente, muito suavemente.

Escrevo essas notas para jogá-las fora depois, revoltado de perceber que me falta a competência de difundir o óbvio: as organizações não-governamentais explodem em resposta à incapacidade das governamentais e no entanto com os mesmos vícios de origem, de origem, de origem.

Muito me admira essa gente que arranca planta e pasto e comida da própria merda da terra. Não tenho a menor dúvida de que será essa gente a fazer a Revolução, que será pacífica, pois camponês de verdade jamais quis saber de arma alguma, a não ser a de fazer comer, e quando percebem o gosto de fazer os outros comerem, vendendo o que produzem, ora, da única arma que querem é a que fizer que vendam mais para trabalhar mais e vender mais.

Investimento no social: eis uma expressão idiota. Idiota porque está sempre na boca de idiotas. No dia em que for percebido e desejado que o investimento no desenvolvimento social seja igual a qualquer investimento, isto é, dinheiro para se ganhar mais dinheiro, aí sim. A inclusão social trará consumidores, produtores, mão de obra, criadores, artistas; mas não é a política profissional que a fará, como não serão ONGs, nem ideologias. Será a mentalidade de quem empreende, principalmente dos sem dentes na boca. Vai lhes cair a ficha!

Eu preciso me cuidar para não enlouquecer, como aconteceu com Maria Otávia. Amanhã, acordarei e escreverei tudo isso de novo de novo de novo, mas com outras palavras. No computador.

10.11.2005

O SIM E O NÃO

Cronistas gostam dessas polêmicas: o assunto vem até eles espontaneamente, sem que seja necessário procurar por um dentre vários ou inventar um.

Curiosa discussão. Quem jamais pensou em comprar uma arma deve agora estar vivendo a aflição dos últimos dias: tem que ser agora, pois, após o dia 23, poderá estar impedido de adquirir uma arma legal (no sentido de dentro da lei – claro). É possível que quem já possui uma arma esteja formando um verdadeiro exército dentro de casa, também possuído pela mesma aflição dos últimos dias. É muito pouco provável que ações judiciais não sejam capazes de jogar por terra possível obrigação legal de se devolverem as armas que se tiver em casa depois da proibição do seu comércio; portanto, se você é um aflito dos últimos dias, não perca tempo: vá à loja mais próxima e arme-se. Por causa desses aflitos, é de se imaginar que o comércio de armas legais esteja faturando como nunca; mas pode ser que nunca mais possa faturar tanto, pois, após o dia 23, quem sabe seja obrigado a restringir suas vendas às forças armadas e outras atividades que permitem a posse e até o porte de armas.

Desarmar o cidadão não é a solução – diz a campanha do não. Claro que não. Entretanto, armar o cidadão – é a solução?

Há quem diga que proibir o comércio seja dar ao bandido a certeza de que você não tem arma em casa. Falso: a menos que ele faça rigorosa investigação prévia, não terá como saber se você comprou uma ou muitas antes do dia 23 ou se você não é da polícia ou do exército ou da marinha ou da aeronáutica ou fiscal da receita – e tanto pode ter como portar armas legais; ou do tráfico – caso em que comprar as ilegais é nada vexatório. A incerteza permanecerá, apenas e talvez, menor – o que poderá, inclusive, diminuir o apetite do bandido – o qual, segundo a campanha do sim, muitas vezes tem como alvo do seu furto exatamente armas.

Apregoam outros defensores do não que quem mora em lugar ermo tem que ter uma arma, para espantar ou mesmo matar um invasor indesejado. Mas, como saber se o invasor é de fato indesejado? E se você for um atlético e solitário valentão e o invasor da sua erma propriedade for uma invasora – Luma de Oliveira, com súbita e irresistível vontade de fazer xixi, com medo de abelhas e cansada de tocar a campainha da porteira do seu sítio, que você não ouviu, tão preocupado que está em ouvir invasores indesejados?

Outro argumento a favor do não: o rico pode contratar segurança armada, o pobre, não. Ora, mas se o pobre é pobre, quem vai querer assaltá-lo? E que dinheiro o pobre terá para comprar uma arma?

A grande covardia, como bem observou o irmão deste cronista internético, foi por no nosso colo a decisão. O Estado, além de incapaz de nos defender, deu uma de Pilatos: se vocês disserem sim, problema de vocês; se disserem não, também.

Não senhor. Dizendo sim, a população estará devolvendo ao Estado a responsabilidade que lhe cabe e é exclusiva – a de defendê-la. Definitivamente.O

10.09.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E NOVE –

Era 2005. Hugo Chaves, presidente da Venezuela, com exemplar capacidade de comunicação e persuasão, defendia seu governo como democrático; salientava ter desenvolvido programa de medicina comunitária com auxílio de Cuba, e afirmava que cada favela venezuelana passara a contar com um médico residente; propunha uma aliança latino-americana muito mais ampla que o combalido Mercosul, com troca de investimentos entre os países; dizia-se um soldado, para sempre soldado, que vivia para a família, sem grandes ambições, até que um dia despertou para a pobreza da sua gente. Um político-pastor americano propôs publicamente seu assassinato pelo governo dos Estados Unidos, alegando ser Hugo Chaves um agente do terrorismo internacional. Hugo Chaves dizia com todas as letras que estava armando a população para defender o país de um provável ataque americano – pois, ao invés de rechaçar a proposta de assassinato daquele chefe de estado, Bush, presidente dos Estados Unidos, prestigiara o pastor-político, encarregando-o como um dos responsáveis pelo projeto de reconstrução de Nova Orleans.

No Brasil, poucos anos antes, no governo de Fernando Henrique Cardoso, em dado momento, todos comentavam que o homem com mais poder de Estado não era ele, mas sim um senador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães. Um publicamente desafeto de Antônio Carlos, senador pelo Pará, Jader Barbalho, passou a denunciar atos que tinha como pouco elegantes do seu colega baiano. E vice-versa. Fernando Henrique governou até o final do seu segundo mandato, final este já sem a presença dos dois senadores desafetos, que renunciaram, cada um por seus motivos, tidos por muitos como não muito elegantes.

Antes ainda, na primeira eleição direta para a presidência após a ditadura militar e o mandato civil de José Sarney, Fernando Collor tinha um homem forte em seu governo, chamado PC Farias. Uma desavença entre Fernando e seu irmão, Pedro Collor, que se disse prejudicado em negócios familiares de comunicações e iniciou uma série de denúncias de extorsões e corrupção, redundou por fazer cair o governante, por impeachment. Já no governo Lula, o homem forte foi, por bom tempo, José Dirceu. Ao chegarem ao noticiário denúncias de corrupção e extorsão comandadas dos escritórios do Correio Nacional, que envolviam diretamente um político com exemplar capacidade de comunicação e persuasão, chamado Roberto Jéferson, este não teve dúvidas: denunciou o “mensalão”, pago a vários deputados de diferentes partidos como condição para que votassem a favor dos projetos governistas. José Dirceu perdeu seu cargo no governo e Roberto Jéferson, seu mandato.

Ricardo Coração dos Outros IV, enquanto lia os primeiros rascunhos do que viria a ser o grande best-seller do seu filho, “A Revolução Brasileira de 2017”, publicado em 2009, revolução que, segundo o autor, aconteceria “pela influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da sua plebe e a involuntária conspiração de Newton e Gauss”, relembrava não só daqueles acontecimentos, então muito recentes, mas de outros que a história da humanidade tinha para contar, e comentou com as filhas gêmeas, Ricardina e Olga – esta, na companhia da pessoa com quem se casou, e Ricardina com o sobrinho Ricardo VI dormindo no seu colo, então com 3 anos:

- A descoberta mais importante do irmão de vocês não foi dele, mas de Newton: a sua Terceira Lei, ação e reação. A humanidade é isto: nada mais que isso.

As filhas e a pessoa com quem Olga se casou o olharam como quem nem concordava nem discordava; ainda não haviam lido os rascunhos do irmão e geralmente não prestavam atenção quando ele comentava qualquer coisa, quando vinha ao Rio. Ricardo IV concluiu, ao levantar-se com os papéis nas mãos e dirigir-se ao banheiro:

- A curva de Gauss vá lá, se aplica; mas faltou uma quarta dimensão: a arrogância. Que é gêmea da ignorância. Todo arrogante se defende da ignorância que lhe é própria. E os arrogantes caem por terra – assim disse o pai de Ricardo V e saiu e trancou-se no banheiro. Diria depois ter-se angustiado com as seguintes perguntas que se fez: “Chaves e Bush eram arrogantes? Ignorantes? Cairiam um dia derrotados por isso? E Lula – era arrogante? Teria sido arrogante quando discursou em Davos, na Suíça, para artistas como a Sharon Stone (atriz de cinema que ficara muito famosa por uma cruzada de pernas), falando em ‘um mundo mais justo, mais equânime’? Ou quando discursou na ONU, sobre a fome? Ou quando sempre e tanto faz da fome seu refrão? Ou quando afirmou que nenhum cidadão é mais ético que ele? Arrogante? Ignorante? Ou sincero?”.

Era Domingo de tarde. Ricardo IV foi ao espelho de cristal da sala envolto em seu roupão, tendo por baixo o pijama que usara na sesta e, perfilado, perguntou-se:

- Ricardo Coração dos Outros IV: sois um arrogante?

E retirou-se.

10.05.2005

CIDADE ADULTA

Há Roma, de Fellini, cidade aberta, de Rosselini, como há Cidade oculta, com Carla Camurati - a São Paulo onde Fernando Pessoa toma ritmo e conteúdo especiais com Arrigo Barnabé: Nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada. Haverá também para sempre Olha a pista chegando e vamos nós, com Tom Jobim.

Para quem não sabe, Florianópolis, em boa parte, é uma ilha açoriana cercada de restaurantes italianos por todos os lados.

Da sua porção insular, por trás dos prédios que ficam bisbilhotando o contorno dos morros continentais do lado de lá da baía e ouvindo a zoeira incessante de motos e automóveis ensandecidos na Avenida Beira Mar, há coisa-muito-boa à vista.

Pizza Mia.

Há muitos pingüins no lugar onde eles vivem; um deles será aquele a olhar nos olhos do estranho que vai parar por lá, a dar de cara com muitos pingüins que vivem na terra dos pingüins e percebe o olhar de um só deles, o pingüim afim, com afinidade no olhar com o olhar do estranho que chega por lá.

As pizzas do Pizza Mia são daquelas de massa fininha. A cobertura é sempre delicada, às vezes doce, outras, salgada, mais comumente salgada e doce ao mesmo tempo, e sempre leve, de bom gosto e gosto bom. Os vinhos, competentes, como o são as sobremesas. Quem serve é mais: bem educado; gentil; oportuno.

De uma tela de Modigliani, sai a flutuar no ambiente sua regente - cujo nome só será desvendado quando o artista que a inventou assim o quiser.

Para jamais esquecer que a vida há de ser feita de poesia, os banheiros do Pizza Mia ficam por trás e à esquerda de uma porta com escotilha e se distinguem um do outro por sutis e angelicais carinhas, que ocupam cada qual um dos quadrantes de respectivos quadrinhos com ares infantis. Como se fossem os morros do outro lado da baía entre a ilha e o continente, olhando por trás da escotilha à procura do pingüim afim, lá está um quadro que Modigliani gostaria muito de ter pintado, assinado por Karem, datado de 2005.

Vá lá - e veja e admire duas figuras femininas a deixar pingüins a ver navios; e homens e mulheres a ver o que há de belo e poesia.

Floripa, cidade adulta, teu nome é Pizza Mia.

10.02.2005

EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA

Meu caro Pasquali,Antes de mais nada, fiquei muito honrado com sua visita ao "Diário de um Mario", apelido do blog onde exponho opiniões e fantasias, o mariobenevides.blogspot.com. Propagandas à parte, transcrevo o que o Pasquali me escreveu:
"Mario,Concordemos com a sua posição ou não, é sempre bom discutir. Se esse referendo de nada adiantar para a questão das armas, pelo menos nos restará o exercí­cio da democracia.Um abraço,Pasquali."
Como se vê, o Pasquali foi na mosca. Esse exercício da democracia nos levará a uma das seguintes situações: (a) A maioria se dirá contrária à proibição do comércio legal das armas. Neste caso, estará dizendo claramente que não considera o armamento oficial, o das forças do Estado, suficiente para nos defender; (b) No caso oposto, a maioria estará dizendo que está depositando nas mãos do Estado toda e qualquer perspectiva da defesa da sociedade contra a violência, auferindo ao Estado uma responsabilidade que, via de regra, este não assume.
Qualquer que seja a opção da maioria, o que estará e já está em cheque é a responsabilidade/capacidade do Estado, mantido por nós - o conjunto formado por maioria e minoria de opção - de nos defender. Este, sim, é o maior valor dessa discussão. Pouco importa seu resultado de sim ou não, mas sim a exposição de que não estamos nem um pouco à vontade no que se refere à nossa segurança; caso contrário, não estaríamos discutindo o assunto - discussão que nos há de levar a outras, mais profundas, das causas e como acabar com tanta violência no Brasil. Assim, palmas a quem abriu a discussão - que, salvo engano, foi o movimento chamado "Viva Rio" -; e obrigado ao Pasquali, por me ter dado a oportunidade de voltar ao assunto.
Abraços,
Mario Benevides.

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E OITO –

Ricardo II morreu na segunda guerra mundial. Resolveu que seria correspondente de guerra para desespero de Maria Cristina, com quem se casou depois que ela se arrependeu de ceder às pressões familiares para deixar o plebeu Coração dos Outros II e enamorar-se de um rico filho mais moço de um nobre e já ligeiramente velho amigo de Alfredo D\'Escragnolle (Visconde de) Taunay - com o qual o antepassado do ex-quase-noivo de Maria Cristina teria estado na “heróica retirada da Laguna”.

Da mesma forma que pode soar estranho que tenha sido heróica uma retirada, muito estranho era, para muitos, que Ricardo II e Maria Cristina se dessem tão bem, como deixou registrado o amigo dele do qual descende um conhecido Profissional de Comunicações e Reportagens desses nossos dias de 2020. Talvez, aliás, bastasse saber que Ricardo II deixou a viúva com dois filhos, Ricardo III e Ricardo Maria, e duas filhas, Ricardina Cristina e a poetisa, que morreria concretista, Olga Cristina Bastos Coração dos Outros – embora, é claro, filhos, ainda que em número significativo, nem sempre sejam sinal de amor verdadeiro. Mas o deles era.

Convém fazer logo outro registro de interrupção de trajetória visível a olhos meramente humanos: Olga e Ricardo Coração dos Outros, de cuja fuga do Rio de Janeiro dos tempos do Marechal de Ferro nasceria a dinastia da qual aqui livremente se fala e que participou de importantes e nem sempre heróicos episódios da história pátria, especialmente a Revolução de 2017, simplesmente desapareceram, sem deixar nenhum sinal que fosse, em mais um percurso de Cavalcante ao Rio – exatamente quando o objetivo da viagem era conhecer a nora, Maria Cristina. Deixaram em Cavalcante a única irmã de Ricardo II, Ricardina Olga Tavares e Silva, casada com o Coronel Eurípides Ovídio Tavares e Silva, que não foi a nenhuma guerra não por outro motivo que não fosse o de que seu título militar tenha sido obtido pela sua atividade de dono de mina de ouro – alguém que explorava não só minério, mas mão de obra também (tudo indica que com alguma correção pecuniária, mas com certo excesso de autoridade).

A atividade de exploração mineral ainda perduraria por muitos anos na região, para onde o fluxo de nortistas do Pará e nordestinos do Maranhão foi bastante intenso, até ainda depois da fundação de Minaçu, em 1976. Por exemplo, no centro mesmo de Cavalcante, havia uma mina que foi passando de mão em mão a cada vez que dava sinais de exaustão até idos já deste século XXI. O garimpo a base de mercúrio e bateia na beira dos rios e diferentes formas de mineração de algum modo legalmente constituídas conviveram por séculos, gerando um pouco de tudo que há na história humana: povoados, cidades, riqueza, pobreza, miséria, fidalguia, covardia, famílias, desavenças, disputas judiciais, matança de índios, abruptos desemprego e perda irrecuperável de renda, vida nômade, outras matanças, sangue - mais sangue, até, que ouro.

Porém, tal e qual nem toda riqueza vem do ouro – em sentido largo e estrito -, nem sempre foi o ouro que causou sangramento e desgraça na região.

Dentre algumas das anotações do falso antropólogo italiano, a serviço dos empregadores de Ricardo V a seguir e reportar seus passos, porque este desenvolvia na época suas primeiras idéias de uma revolução social pacífica, achou-se a seguinte:
“R V cismou de fazer caminhadas. Debaixo desse sol acachapante, o louco sai andando desde a casa dele, na Vila de Furnas, perto da esquina de Porto Colômbia com a Av Maranhão, até o centro da cidade, percorrendo a mesma Av M de ida e volta, numa distância total superior a 10 kM. Isso às 4 ou 5 da tarde, mama mia!, quando o sol ainda está fervendo e do chão de asfalto sai o bafo do demônio. Ainda bem que está terminando a estação seca, quando só se respira poeira quente e a gente nem precisa de cachaça pra sentir tonteira, porque seguir o camarada debaixo de muita água é desgraça um pouco menor que ficar debaixo desse sol daqui. Hoje dei sorte de pegar o moto-taxi certo, uma mocinha gostosinha de apertar na cintura e que respeita os quebra-mola, não é que nem uns doido que tem por aqui e ultrapassa os cruzamento sem nem olhar. Hoje, como estava chovendo, o maluco resolveu mudar o trajeto e ficar subindo e descendo a Porto Colômbia pra cima e pra baixo e fiquei que nem um idiota atrás dele, na garupa da motoca. Tá na cara que ele já sabe que eu estou na cola dele, mas não tenho o que fazer, os americano querem assim, depois invento umas bobagem e eles fica satisfeito. Vi umas meninada interessante saindo do colégio, valeu a maluquice diária. Os menino de chinelo de dedo, aqui não parece chinelo que a modelo famosa usa, é chinelo de dedo mesmo, nem dá pra chamar de flip-flop que nem os americano. As menina, que graça, fala umas palavra bonita e de repente uns ‘caralho!’, esses brasileiro parece italiano. Mas que pena: Sábado passado, de noite, já era quase Domingo, um meninote que reclamou que um outro tinha roubado o boné dele foi espancado pelos amigo do ladrão do boné na porta do baile onde eu estava, boa parte da cidade estava no baile. O rapazola que levou porrada foi em casa e voltou com uma faca de cozinha e, mama mia, tem um que ficou sem o braço e outro que perdeu os dedo e um terceiro foi a orelha esquerda que deixou ele. Pena que o quarto foi furado no fígado, morreu na hora, uma pena, tudo uns garoto, tudo com cara de anjo. Tem uns dois paisano na minha cola, já saquei, todos os dia.”.