3.28.2005

CINEGRAFISTA AMADOR

No retrovisor do BMW, olhos amedrontados. Outros olhos, cuidadosamente pintados nos cílios, miram-se tristes, no espelho do estojo de maquiagem cara. Há um irritante toque de celular, no fundo da bolsa. No fundo do mar, esconde-se o corpo mais belo que academia nenhuma seria capaz de fabricar. Na fábrica, um rosto com um talho com sangue pisado espelha remorso e costumeira revolta. Outros olhos, de pintura barata, um deles, envolto em mancha roxa, olham o anúncio de uma cama num encarte de jornal vencido. Na calçada, os olhos tristes emoldurados de maquiagem cara se voltam para trás, para dentro, para um remoto oceano. Lá, no fundo do mar, aos dezesseis anos, ela quis ser atriz. Na superfície, uma onda lhe pegou de jeito, fosse onda do mar e ela a teria sabido navegar. Segue veloz, blindado e com óculos escuros, o BMW. Dentro, toca um celular e alguém diz, em viva-voz: o ministro quer mais. Vou arrancar essas ridículas fadas que minha filha pendurou no retrovisor – ele diz. Devo pedir desculpas por andar de BMW no meio desses miseráveis?, pergunta-se. Os olhos bem maqueados pedem licença na calçada, para procurar um celular no latão de lixo, ali atirado em desespero. Nunca vi rico nem rica remexendo em lixo. Nem eu – responde o com talho no rosto à que tem a mancha roxa em volta de um olho; depois de comer no refeitório da fábrica, trocaram os minutos de descanso para ver a cama do anúncio. Muito cara, é, muito cara. Pode pagar em doze vezes; não, não tem mais lugar pra carnê na gaveta. Só o moto-boy é capaz de furar o trânsito. Duas Ferraris bateram no cruzamento e cuspiram o moto-boy pro alto. Não vai ser hoje que eu vou sair daqui. Preciso de um helicóptero, mas, com esse tempo nublado, tenho medo. O que essa louca está fazendo, bem-vestida desse jeito, remexendo em lata de lixo? Já está rodeada de pivetes e mendigos. Espera, é aquela dona de ontem, que estava na festa, mulherão... O que você está procurando? É meu celular, caiu aí dentro. Esperem, não precisam me assaltar, eu dou o dinheiro, tomem, levem; o carro, não, mesmo porque ninguém vai conseguir tirar ele daí, duas Ferraris bateram no sinal e jogaram um moto-boy pro alto. Você estava na festa ontem, não é? Estava, estava. O que vocês dois, aí, estão olhando, querem dinheiro também? Só olhando, moço, trabalhamos naquela fábrica e a moça parece que está precisando de ajuda. Eu já estou aqui, vão embora. Não vamos não, a rua não é sua, a rua não é de ninguém. Seu amigo, ontem, na festa, me deu um cartão, de uma... associação? Eu sei, o Nestor, que comprou um jatinho novinho, você deve ter sabido. Um louco, fundou uma associação com outros empresários para cuidar de pobres e viciados. Idiotice de classe média, nem parece coisa de gente da nossa classe. Associação para pobres! Viciados! Você não é pobre nem viciada; ou é? Bom, parece que conseguiram tirar as Ferraris ali da frente, com licença, vou-me embora. Por favor, você tem o cartão do Nestor? Não. Não tenho. Tchau. Moça, quer ajuda? Se quiser, ajudamos a senhora a procurar. O que vocês querem?, eu não tenho dinheiro. Ninguém quer seu dinheiro, moça, mas de lixo nós entendemos, já moramos na rua, debaixo de viaduto, em caixa de papelão. Olha, seu celular, eu achei, e achei esse cartão aqui, ó, ACADEMIA - Associação Civil de Apoio aos Dependentes e Miseráveis Anônimos – O Que O Governo Não Faz, Nós Fazemos. Obrigada, não sei como agradecer, vocês sabem onde fica essa rua? É perto da nossa casa; mais tarde, depois do serviço, a senhora pode vir conosco. Mas, até lá, até lá, o que é que eu vou ficar fazendo? Tenho fome, tenho sede, estou tremendo de frio... Espera a gente ali, moça, a gente sai às cinco em ponto; a senhora pode vir com a gente. Eu queria conversar com alguém, sabe, eu era mocinha e queria ser atriz. Vem com a gente, moça, vamos conversando. Eles entram na fábrica. Ela pega o celular. Adiante, fadinhas metálicas rolam no asfalto. Ela espera.

3.26.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

No futuro, todo mundo será famoso por quinze minutos.
Andy Warhol, 1969.
Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade.
Lima Barreto, 1915.
(Em “Triste fim de Policarpo Quaresma”.)

- CAPÍTULO UM –

“... Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as”.
Lima Barreto, em “Triste fim de Policarpo Quaresma”.

Como contado por Lima Barreto, biógrafo de Policarpo Quaresma, Ricardo Coração dos Outros, tal como Policarpo, foi contemporâneo de Floriano Peixoto, segundo presidente do Brasil. Tanto para quem leu como para quem não leu a citada biografia, conta-se aqui que Olga, afilhada de Policarpo, assim que desistiu de salvá-lo do seu triste fim, com o nobre intuito de que ele mantivesse “inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho...”, veio ao encontro de Ricardo Coração dos Outros, amigo de Policarpo e de Olga - que era casada com outro. Ricardo era solteiro, mulato e violonista, no tempo em que tocar violão nem sempre era bem visto.

O que Lima Barreto não teve tempo de contar foi que Olga não só veio ao encontro de Ricardo, como, no exato instante em que o reencontrou, resolveu separar-se do marido (Armando) – no tempo em que isso nunca era bem visto. Ao chegar ao encontro de Ricardo, a ele propôs:

- Pega teu violão e vamos fugir por aí.

Ricardo, estupefato, contrapôs:

- Mas és casada!

- Pouco me importa; sou, para Armando, não mais que um bilboquê. Quanto a mim, não tenho a mínima admiração por ele.

- Mas... O que vamos dizer aos outros? A teu pai, a todo mundo?

- A meu pai, direi adeus; aos outros, daremos as costas. O que me dizes, Senhor Ricardo Coração dos Outros?

- Nunca tivemos nada entre nós que não...

- Nossa amizade – ela concluiu. E acrescentou: - O tempo nos dirá se devemos ou não passar disso.

Ricardo pensou um pouco, foi deixando abandonar seu rosto aquele ar de espanto e incredulidade, para perceber que sua vida jamais lhe dera nenhuma emoção comparável àquela, nem mesmo a da fama suburbana como compositor de modinhas. Nenhum risco fora igual ao que Olga lhe propunha - nem mesmo os das balas de canhão, revolver e espingarda, que enfrentara por conta da “Revolta”, episódio de que fizera parte do lado governista, do lado de Floriano, nem um pouco por vontade própria.

Assim foi que Ricardo respondeu a Olga, como quem renasce de uma morte em vida:

- Vamos por aí, desfraldar bandeiras, arrancar mato do chão com a foice, descobrir lugares onde não tenhamos que dar satisfação e nem temer a ninguém. Nem a Floriano!

E foram. Para a Província de Goiás. E o tempo mostrou que deveriam ir além da amizade. E é da prole da sua prole que aqui se conta. Mais precisamente, de Ricardo Coração dos Outros V, nascido em 1982 no mesmo Rio de Janeiro daquele seu antepassado, de quem herdou o nome; e do filho dele, Ricardo VI, que nasceu em Minaçu, no norte de Goiás, em 2003, quando Lula era o presidente do Brasil – país que, em 2020, é bem diferente do imaginado por Lima Barreto, desde quando – e porque - a política passou a ser coisa de amador. Graças a Ricardo V; e graças a seu filho, Ricardo Coração dos Outros VI – como aqui ficará provado.

3.22.2005

SEMPRE ÀS TERÇAS-FEIRAS (E SÁBADOS)

Agora é compromisso; não tem mais jeito, não. É obrigação. Toda terça-feira, há que se submeter à opinião de – quantos, mesmo? – leitores, ávidos por não ler mais nada, neste mundo de hoje, onde as caixas de mensagens se entopem de notícias que geralmente não interessam a ninguém, nem mesmo a quem as repassa, quase sempre sem ler.

O fato é que há as livrarias; ainda as há, ninguém pode negar. Mas já circula por aí o Código Da Vinci, num quadradinho onde você clica e pimba! – alivia o autor de mais alguns incômodos milhões de dólares e, se quiser, pode até ler o livro e tentar decifrar o código.

Há também as bancas de jornais e as livrarias dos aeroportos, com seus admiráveis livros de bolso. É preciso que se ressalte que há, inclusive e ainda, aeroportos – embora as companhias aéreas estejam todas quebradas, não se sabe ao certo se por falta de passageiros e excesso de multimídia, passagens caras e passageiros quebrados ou por outro motivo, não revelado a ninguém, guardado talvez no tal código, que já circula por aí, nesta rede nada virtual e permanentemente presente em boa parte das vidas deste início de século – quando desaparece um pedaço da África por dia, outro da Palestina, do Iraque, etc., por variadas razões, tampouco de todo ou por todos conhecidas.

Editoras continuam existindo, tal e qual sucessos literários; basta ler as listas publicadas nas mais lidas revistas: o papel continua sendo o veículo preferido para a leitura, especialmente quando se está dentro de outro, parado no tráfego, perdido no trânsito ou em confusos e vãos pensamentos; só não se pode é parar no tráfico: dá coisa ruim em sangue bão.

Então, por que diabos você vai ler o Diário de um Mario?

Nesses dias internéticos, que você me desculpe a para-frase, quem escreve, sempre alcança: dois, duzentos, em alguns casos, milhares de pessoas. Não é o que se pretende, aqui. Escrever é entender o outro - alguém já deve ter dito isso -: é o que se quer, aqui. O outro, no caso deste autor, é você – e ele buscará compreender você sem necessariamente conhecer você. Buscará no que lê, pretende ou não pretende ler e, principalmente, nas ruas, nos ônibus, nos jardins onde passarinhos procuram no chão pelos óculos de condes desde a juventude do velho e bom Rubem Braga, alguma coisa que lhe atacará o coração de forma tão irresistível, que ele, o autor, não cometerá mal algum – nem provavelmente bem algum – a não ser escrever, tentando se fazer compreender para compreender quem o lê: você.

Perceba também que este é o único diário a sair somente duas vezes por semana: aos sábados, com um capítulo de um romance que se encontra, neste momento, literal e literariamente, embrionário, que falará sobre uma dinastia iniciada logo após o Triste fim de Policarpo Quaresma, do extraordinário Lima Barreto, cuja geração você acompanhará como se observasse as suas inter-uterinas ultrassonografias, semanalmente, em um consultório; e, sempre às terças, com uma crônica ou poema, como breve leitura de ante-sala. Mas, na semana inteira, como o velho e bom Tim Maia... fico te esperando.

Florianópolis, terça-feira, 22 de março de 2005, Mario Benevides.