8.31.2008

A GUERRA É NECESSÁRIA

A afirmativa sempre é feita por quem não está de capacete nem na linha de frente.

Pense em um verso de amor e o suponha inspirado pela separação causada pela guerra, ou mesmo com a certeza de que assim o tenha sido. Agora, pense nele novamente, eliminando da sua gênese ou essência a guerra. O verso sobreviveu - e me prenda se assim não tiver sido.

Picasso não deixaria de ser Picasso sem Guernica – nem Guernica y Luno deixaria de existir sem Picasso. Ou Franco. Nem Lorca sem este e nem a Galícia sem eles.

Pense em um ato de tortura e perceba que, da guerra, ele não depende. Em um estupro. Pense nele - você, capaz ou não de o cometer – e verá que a guerra não lhe é ingrediente indispensável.

Em uma invenção. Vale a pena investir um pouco mais, aqui. Reflita: afora tanques, bombardeiros, me responda, sem pressa, se navios, aviões, automóveis, cavalos, camelos, bicicletas, lambretas, pontes, bengalas, chapéus, uniformes, sapatos, botas, computadores, muletas, se da imaginação teriam sido esquecidos se dela a guerra não fizesse parte.

Homens sofrendo de abstenção sexual deixariam de invadir uma casa se não houvesse a guerra? Mulheres precisando de dinheiro e percebendo a chama sem fogo nas entranhas aguardariam a guerra para sua satisfação? Filhos bastardos surgem somente na guerra? O que você vê na tv, longe, bem longe do seu cotidiano, tapas, socos ingleses, cabeças vivas dentro de sacos plásticos asfixiadas até que, delas, indissociáveis bocas balbuciam o que o dono do saco quer ouvir; sacos, seios queimados por cigarros, humilhações as mais imaginosas, algo disso precisava de uma guerra?

Um tarado, um tratado, uma traição, uma conversação, uma fronteira, uma convenção, tal e qual um verso, da guerra não precisam - e me prenda se eu estiver errado (mas me prove).

Uma grande indústria fabrica armas em escala mundial. Evidentemente, não há parasita sem quem o alimente. O que seria da indústria armamentista se não fosse a guerra? Chore você por essa perspectiva, a da morte sem guerra da indústria da guerra – e perceberá que, até mesmo ela e seus produtos, tanques e bombardeiros, seus empregados, sem a guerra, todos sobreviveriam. A maldade sobreviveria, assim sua ameaça. O progresso permaneceria, tal e qual o atraso. O respeito e o desrespeito: tudo resistiria à ausência da guerra.

Quem defende a guerra como algo indispensável – ou pontualmente necessário – precisa fazê-lo com o capacete certo, adequado àquilo que lhe ocupa o cérebro.

Um pinico.

8.21.2008

MADE IN BRAZIL

Meu caro amigo Enrique:

Eu, na praia do Leme, com menos de 15 anos, como se fosse, agora, amigo de escola das nossas filhas, de peito, de cabeça, de letra ou sem querer, colocava na gaveta e afirmaria que, se Nelson Rodrigues houvesse consultado o Sobrenatural de Almeida, não teria afirmado, como afirmou, que Antônio Callado era o único inglês de verdade. Lá, onde a coruja dorme, teria deixado escrito:

- Há um segundo: ele se chama Enrique.

Fato é que você, London, London, no centro do mundo financeiro, comandante de transações transnacionais, sempre correto, sempre rigorosamente observando e respeitando as leis e as leis de mercado, como inglês de verdade e Made in Brazil, não consegue deixar de ser notorious às vistas da Scotland Yard. As a matter of fact, sequer se esforça a escondê-lo.

Você foi flagrado: um raro como legítimo botafoguense.

O agente da Scotland, de súbito revelando o secreto chapéu coco sob o arranjo de jardim que secularmente brotou na cabeça dele, sobrepondo-se ao rubro tórax cheio de dourados botões, guardiões do palácio de Buckingham, brande sobre sua brasileira e botafoguense face o britânico distintivo - que venta terríveis, tamisentos, brumosos ventos. Acintosamente, ele acusa:

- Filipão is ours, thank you very much, sir.

E você, inglês de verdade, segundo e único, altivo, seguro, afirma:

- O Botafogo está no G4 do brasileirão. Ocupa agora o 3° lugar. Hoje, quem perdeu do fogão foi o Cruzeiro; domingo passado, quem, mesmo? I bag your pardon, Mr. Policeman: I do not remember.

Mr. Scotland joga ao chão seu chapéu coco e se retira. Nelson Rodrigues entra em cena trazendo Shakespeare pelo braço, um, em tricolores, outro, em rubro-negras vestes. Uma faixa preta com uma cruz vermelha surge do nada, cheia de bigodes. Baixa o pano e, neste, se lê, preto no branco:

FIM DO PRIMEIRO ATO.

Alvinegros abraços,

Mario.

8.02.2008

SÁBADO, HOJE, AGORINHA MESMO

A previsão era chuva e de fato o dia começou com um vento Sul daqueles, chuva, frio. De repente, o Nordeste – o vento que leva seu nome porque é de lá que ele vem. Mudou tudo: um início de tarde ensolarada, quente, o apartamento se torna opressor, vamos para a rua, caminhar na Beira Mar.

Devagar, por favor. Se a caminhada tem como um dos objetivos queimar gorduras e toxinas, hoje, tudo o que menos se quer é objetivo. É dia de adjetivo, dos mais banais, batidos - lindo dia, lindo mar, puxa, que sol maravilhoso. Uma gaivota tem seus dois pés de gaivota sobre as costas de outra gaivota, um duplex de gaivotas na areia mirando o mar da Baía Norte de Florianópolis. Mais adiante, uma outra sobre a pedra admira a regata, lá fora, perto do continente; estamos na imensa Ilha de Santa Catarina.

De repente, um casal visivelmente humilde, duas crianças, seu cão, que desconhece humildade e soberba, sabe o que é bom: o mar. Poluído? Para ele, não - negro cão, pelo curto, descendente de labradores, invejável vagabundo. O pai de família, seu casaco quadriculado de descendente de lavradores, fora de lugar; a mulher, mestiça, a corrente que serve de guia ao cão quando ele precisa pertencer à outra raça – a humana – brandindo nas mãos. Ele, o pai:

- Um tarado, filho da puta, com o pinto na mão, estava no banco se exibindo para menino pequeno. Um tarado, filho da puta, desrespeitou minha família, tem que prender.

- Onde ele está?

- Foi embora, foi pra lá, tem que prender ele.

A mulher:

- Eu dei com essa corrente nas costas dele, ele saiu correndo.

Vamos embora, vamos em frente, vamos, porque já íamos, na mesma direção do tarado, que já deve ter sumido. Cadeia, para ele, será pena de morte; manicômio judiciário, o que seria? Cortar o pinto dele, seria boa sugestão? Mutilar seu cérebro?

Anos antes, no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, um camarada masturbava sobre o banco da bicicleta parada. Uma moça, despachada e revoltada, disse a ele:

- Cara, vai procurar uma mulher de verdade! – e o tal cara pôs seu objeto de prazer solitário e ostensivo, invasivo, para dentro das calças e se foi, pedalando – não se sabe se para, de fato, procurar uma mulher de verdade.

Uma água de coco. Um gaúcho, muito educado, é quem conta que a manhã começou tenebrosa e depois veio o vento Nordeste, mudando sua história. Um policial passa devagar com sua moto na ciclovia; é notificado. Sobre o tarado. Sobre a família ultrajada e ameaçada, seu nobre cão vagabundo e contente, sua mais marcante referência.

É hora do almoço.