2.25.2021

DE COMO SER PAI – I – EU E O DIABO NA TERRA DO SOL

 

A sugestão para o tema foi da psicóloga Rosamaria Areal, minha namorada desde 1990, com quem me casei duas vezes sem nenhuma separação (mas isso é outra história). Logo se verá por que a alusão ao filme do Glauber Rocha neste primeiro capítulo de uma série, que não se sabe ainda quantos capítulos terá, apesar da vontade de concorrer com a Netflix.

Sem qualquer rigor científico, em dias de céu aberto e muito sol, pode-se afirmar que Bangu é um dos lugares mais quentes do mundo. Mas nem só de calor e penitenciárias vive o bairro. Por exemplo, lá morava (e talvez ainda more) meu amigo Paulo Barba. Fui à casa dele quando seu primeiro filho nasceu, lá no século passado, uns nove anos antes de eu conhecer a Rosa. Paulo, com sua barba cerrada que lhe rebatizou e o sorriso mais para uma boa risada, me recebeu e me chamou para ver o bebê, que estava no quarto, no colo da avó, sogra do meu amigo. Fiz uma graça qualquer para o neném e ele chorou. A explicação veio da vovó:

- Recém-nascidos percebem o diabo atrás de quem chega perto.

 O genro ficou sem graça e me puxou pelo braço. De volta à sala, me consolou:

 - Liga não, a velha é maluca mas gente boa.

Incorporando Adoniran Barbosa, logo em cima eu falei:

- Eu não tenho habilidade com crianças.

Pouco depois fui pra casa, dirigindo de volta calorentos quilômetros no meu Fusca até Botafogo, onde eu morava.

A sensação de não me entender com crianças e bebês dissipou-se quando recebi de presente um manual feito sob medida para mim. No dia 23 de março de 1994 nasceu nossa filha, única em vários aspectos, Maria Luiza. Acho que ela não vai se aborrecer por eu compartilhar tudo que ela me ensinou para que eu me tornasse seu pai desde quando ela estava na barriga da mãe. 

Por causa de uma endometriose, para engravidar, Rosa teve que tomar um remédio, desses em que a bula deveria dizer: Não leia a bula. Mas o remédio funcionou, e até o nascimento tivemos alguns momentos marcantes. O primeiro de que me lembro foi a ultrassonografia que revelou o sexo do bebê que nasceria alguns meses depois. Saindo da clínica, fomos direto a um orelhão para que Rosa desse a notícia à mãe dela. Se a sogra do Paulo Barba queria ter um neto ou uma neta eu não sei; mas a minha, ao saber que teríamos uma menina, demonstrou que sogras tudo sabem de Deus e do diabo, e que, também por isso, devem ser sempre bem tratadas.

- Louvado seja a Deus – dona Olga proclamou.

Outro momento foi quando dissemos ao meu irmão, Luiz, igualmente único em muitos aspectos, também todos positivos, que seria feito um exame do líquido amniótico. Esse exame serve para que se saiba se há alguma alteração genética no bebê ou complicações por causa de alguma infecção adquirida pela mãe durante a gravidez. Provavelmente preocupado com o que faríamos se alguma coisa fosse detectada naquele exame, meu irmão trouxe para casa um videocassete com o filme Óleo de Lorenzo. (Se você não sabe o que é orelhão e videocassete, isso não tem nada de divindade ou malignidade: apenas você nasceu bem depois de mim.) O filme conta a história verídica de um casal que resolve travar uma luta incessante contra uma doença rara, degenerativa e incurável que acomete seu filho, Lorenzo, de seis anos. Em meio a consultas a médicos e pesquisas desenvolvidas por conta própria, o pai e a mãe do menino acabam desenvolvendo um óleo, batizado com o nome do filho, à base de extrato de ácidos de azeites de oliva e de colza - que não era a cura, mas atrasava a evolução da doença.

O exame do líquido amniótico, que acomoda o bebê e o nutre do que precisa para nascer, no caso da gravidez da Maria Luiza, nada acusou. O nome dela foi dado na porta da garagem da casa onde morávamos no Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Quando eu me preparava para sair do carro e abrir a porta com cuidado para que pai e filho pastores alemães não saíssem rua afora, assim Rosa decidiu e me participou:

- Ela vai se chamar Maria Luiza. Você é Mario, seu irmão Luiz, e esse é também o nome da sua tia.

- Tem também a outra Maria Luiza, neta da minha tia, filha da Ana Luiza – eu fiz questão de lembrar. Rosa foi novamente resoluta:

- Melhor ainda.

Naquela mesma casa, houve uma noite em que Rosa, já bem grávida, implicou comigo de tal maneira que eu fui para o andar debaixo convencido de que a menina nasceria de pais separados. Se eu respirava, menos oxigênio para a bebê; se eu expirava, poluía o quarto. Na manhã seguinte, enquanto eu estava tomando banho, Rosa bateu na porta do banheiro, e eu pensei, o que virá agora? Ela esclareceu:

- Mario, a bolsa estourou.

Quando a bolsa estoura não faz barulho, mas o líquido amniótico escorre pelas pernas da mãe, avisando que o neném vai nascer. A outra bolsa com tudo que deveria ser levado para a maternidade já estava pronta. Ao chegarmos lá, o ginecologista e obstetra veio falar comigo com ar de preocupado:

- O parto será de cesariana, porque o bebê já pode estar em sofrimento.

- E o bebê, vai ser normal? – eu perguntei.

- Não – doutor Napoleão respondeu.

- O bebê não vai ser normal? – eu, assustado, quis confirmar negando.

- O bebê vai, o parto é que não – respondeu doutor Napoleão e partiu célere para mais uma batalha.

Fui convidado a participar dela. Me vestiram numa roupa de astronauta e me sentaram em um canto na sala cirúrgica, não sem antes terem que trocar tudo de novo, do lençol à minha roupa de astronauta, todos os apetrechos do cirurgião, porque eu tinha esbarrado na maca onde Rosa seria deitada.

Maria Luiza nasceu, chorou e parou de chorar, quando, nos braços da enfermeira, me viu.

Ali começava minha leitura daquele adorável manual vivo, de como ser pai, chamado Maria Luiza. Se o Paulo Barba tiver conhecimento de ter participado do seu preâmbulo, que me dê o prazer de uma visita em Florianópolis, ou então seu endereço, para que eu vá até lá, revê-lo, agora com minha filha e o filho dele já adultos. Por causa da Maria Luiza, garanto que irei sem o diabo.