A sugestão para o tema foi da
psicóloga Rosamaria Areal, minha namorada desde 1990, com quem me casei duas
vezes sem nenhuma separação (mas isso é outra história). Logo se verá por que a
alusão ao filme do Glauber Rocha neste primeiro capítulo de uma série, que não
se sabe ainda quantos capítulos terá, apesar da vontade de concorrer com a
Netflix.
Sem qualquer rigor científico, em
dias de céu aberto e muito sol, pode-se afirmar que Bangu é um dos lugares mais
quentes do mundo. Mas nem só de calor e penitenciárias vive o bairro. Por
exemplo, lá morava (e talvez ainda more) meu amigo Paulo Barba. Fui à casa dele
quando seu primeiro filho nasceu, lá no século passado, uns nove anos antes de
eu conhecer a Rosa. Paulo, com sua barba cerrada que lhe rebatizou e o sorriso mais
para uma boa risada, me recebeu e me chamou para ver o bebê, que estava no
quarto, no colo da avó, sogra do meu amigo. Fiz uma graça qualquer para o neném
e ele chorou. A explicação veio da vovó:
- Recém-nascidos percebem o diabo
atrás de quem chega perto.
O genro ficou sem graça e me puxou pelo braço.
De volta à sala, me consolou:
- Liga não, a velha é maluca mas gente boa.
Incorporando Adoniran Barbosa,
logo em cima eu falei:
- Eu não tenho habilidade com
crianças.
Pouco depois fui pra casa,
dirigindo de volta calorentos quilômetros no meu Fusca até Botafogo, onde eu
morava.
A sensação de não me entender com
crianças e bebês dissipou-se quando recebi de presente um manual feito sob
medida para mim. No dia 23 de março de 1994 nasceu nossa filha, única em vários
aspectos, Maria Luiza. Acho que ela não vai se aborrecer por eu compartilhar
tudo que ela me ensinou para que eu me tornasse seu pai desde quando ela estava
na barriga da mãe.
Por causa de uma endometriose,
para engravidar, Rosa teve que tomar um remédio, desses em que a bula deveria dizer:
Não leia a bula. Mas o remédio funcionou, e até o nascimento tivemos alguns
momentos marcantes. O primeiro de que me lembro foi a ultrassonografia que
revelou o sexo do bebê que nasceria alguns meses depois. Saindo da clínica,
fomos direto a um orelhão para que Rosa desse a notícia à mãe dela. Se a sogra
do Paulo Barba queria ter um neto ou uma neta eu não sei; mas a minha, ao saber
que teríamos uma menina, demonstrou que sogras tudo sabem de Deus e do diabo, e
que, também por isso, devem ser sempre bem tratadas.
- Louvado seja a Deus – dona Olga
proclamou.
Outro momento foi quando dissemos
ao meu irmão, Luiz, igualmente único em muitos aspectos, também todos
positivos, que seria feito um exame do líquido amniótico. Esse exame serve para
que se saiba se há alguma alteração genética no bebê ou complicações por causa
de alguma infecção adquirida pela mãe durante a gravidez. Provavelmente
preocupado com o que faríamos se alguma coisa fosse detectada naquele exame,
meu irmão trouxe para casa um videocassete com o filme Óleo de Lorenzo. (Se
você não sabe o que é orelhão e videocassete, isso não tem nada de divindade ou
malignidade: apenas você nasceu bem depois de mim.) O filme conta a história
verídica de um casal que resolve travar uma luta incessante contra uma doença rara,
degenerativa e incurável que acomete seu filho, Lorenzo, de seis anos. Em meio
a consultas a médicos e pesquisas desenvolvidas por conta própria, o pai e a
mãe do menino acabam desenvolvendo um óleo, batizado com o nome do filho, à
base de extrato de ácidos de azeites de oliva e de colza - que não era a cura,
mas atrasava a evolução da doença.
O exame do líquido amniótico, que
acomoda o bebê e o nutre do que precisa para nascer, no caso da gravidez da
Maria Luiza, nada acusou. O nome dela foi dado na porta da garagem da casa onde
morávamos no Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Quando eu me preparava para sair do
carro e abrir a porta com cuidado para que pai e filho pastores alemães não
saíssem rua afora, assim Rosa decidiu e me participou:
- Ela vai se chamar Maria Luiza.
Você é Mario, seu irmão Luiz, e esse é também o nome da sua tia.
- Tem também a outra Maria Luiza,
neta da minha tia, filha da Ana Luiza – eu fiz questão de lembrar. Rosa foi
novamente resoluta:
- Melhor ainda.
Naquela mesma casa, houve uma
noite em que Rosa, já bem grávida, implicou comigo de tal maneira que eu fui
para o andar debaixo convencido de que a menina nasceria de pais separados. Se
eu respirava, menos oxigênio para a bebê; se eu expirava, poluía o quarto. Na
manhã seguinte, enquanto eu estava tomando banho, Rosa bateu na porta do
banheiro, e eu pensei, o que virá agora? Ela esclareceu:
- Mario, a bolsa estourou.
Quando a bolsa estoura não faz
barulho, mas o líquido amniótico escorre pelas pernas da mãe, avisando que o
neném vai nascer. A outra bolsa com tudo que deveria ser levado para a
maternidade já estava pronta. Ao chegarmos lá, o ginecologista e obstetra veio
falar comigo com ar de preocupado:
- O parto será de cesariana,
porque o bebê já pode estar em sofrimento.
- E o bebê, vai ser normal? – eu
perguntei.
- Não – doutor Napoleão
respondeu.
- O bebê não vai ser normal? –
eu, assustado, quis confirmar negando.
- O bebê vai, o parto é que não –
respondeu doutor Napoleão e partiu célere para mais uma batalha.
Fui convidado a participar dela.
Me vestiram numa roupa de astronauta e me sentaram em um canto na sala
cirúrgica, não sem antes terem que trocar tudo de novo, do lençol à minha roupa
de astronauta, todos os apetrechos do cirurgião, porque eu tinha esbarrado na
maca onde Rosa seria deitada.
Maria Luiza nasceu, chorou e
parou de chorar, quando, nos braços da enfermeira, me viu.
Ali começava minha leitura
daquele adorável manual vivo, de como ser pai, chamado Maria Luiza. Se o Paulo
Barba tiver conhecimento de ter participado do seu preâmbulo, que me dê o
prazer de uma visita em Florianópolis, ou então seu endereço, para que eu vá
até lá, revê-lo, agora com minha filha e o filho dele já adultos. Por causa da
Maria Luiza, garanto que irei sem o diabo.