12.29.2006

VALORES - UMA CRÔNICA INACABADA

A bolsa ou a vida! - ameaçava o assaltante à senhora, que, sem hesitar, entregava a bolsa e ficava com a vida. Trocava seus valores pela manutenção da vida, por mais sem graça que ela fosse. Pouco importava se era uma desprezada e humilhada por se ter desquitado; ou se tinha ou não marido e era uma entre milhares de mal-amadas, salve-salve. Os valores eram aqueles: os da bolsa - que se ía, com os valores dentro. A vida ficava. Enquanto isso, uma outra, morro acima, carregava uma lata d'água na cabeça.
Não muito tempo depois, era engraçadinho dizer-se, Que pena, o Rio, uma cidade tão bonita e... tão violenta. O veneninho corria pelo canto da boca e o carioca se saía com uma resposta, ora irônica, às vezes ressentida.
Depois foi São Paulo, paralizada, atônita, em estado de guerra, nas mãos do crime, do terror sem bandeira nem credo, de dentro, mais que das cadeias, de não se sabe de onde, só se pode imaginar.
No final de 2006, o Rio, de novo: um homem vai dar queixa do vizinho e morre metralhado; uma vendedora ambulante salva a vida do filho de seis anos e morre do mesmo jeito, sem chance de nenhuma queixa; quem viajava de ônibus, adeus: mil queimaduras, morte ou morte em vida.
Cheiramos, nos injetamos, fumamos, ou não: e, em qualquer doas casos, estamos à mercê.
No tempo da bolsa ou a vida, sabíamos onde estavam nossos valores. O problema é que sempre foram poucos: os da bolsa e, para os mais afortunados, os guardados no banco.
Futebol, café, Pelé, samba, chorinho, bossa-nova, religião, exportações, volei, top-models - pense em algo que seja, verdadeiramente, um valor brasileiro: não fica um. E daí? - questionará você, argumentando que os americanos, por exemplo, cheios de moral e nacionalismo, são uma ilha cercada de guerras por todos os lados, e hipocrisias, além de pobrezas e misérias e racismos pornograficamente desnudados, ultimamente por furacões; os europeus, na sua maior parte, encontram-se imersos em um pote até aqui de mágoa de seus ex-colonizados, e tome bombas e incêndios e depredações, pouco importa se sua cultura, latu / strictu sensu, lhes seja um real valor; e que os ultra-religiosos matam-se entre eles, aos outros e a quem estiver por perto, cheios de seus valores históricos e além-túmulo.
Nós não temos valores; e daí? Talvez por isso vivamos placidamente, até que um tiro ou incêndio ou enforcamento num subterrâneo ou numa subida de morro nos alce a um outro tipo de inferno. Talvez daí nos seja natural a combinação explosiva da economia forte e vegetativa com uma das piores distribuições de renda do planeta e suas crias - crianças morrendo e nos matando nos sinais de tráfego, classe média desesperada, gente pobre e gente rica cheirando bosta branca, movimentos supostamente representativos apenas expondo as cáries e a gengivite de nossos campos férteis, a seca, a enriquecer boçais e a matar desgraçados, e, principalmente, a política, sim, verdadeiramente representativa da alma brasileira: eu quero o meu e o resto, ora, que se...
Talvez esteja aí nossa grande possibilidade: nós não temos valor algum.
E quem quiser que acabe a crônica.

12.18.2006

DE VOLTA PRA CASA

De volta ao padrão; à normalidade. Às Terças, um avulso, um texto desconexo do antes e do depois.

Havia uma canção que dizia: Paraíba não é Chicago não. Já uma repórter bem conhecida da TV uma vez disse que Miami parece o Rio, só que no Primeiro Mundo. Se a primeira afirmativa é correta, a segunda parece que não é - e não é mesmo. As praias de Miami começam por uma pista sólida, mal-coberta de areia. Depois, a areia é cheia de cascalho e há tanto cascalho debaixo d’água que é recomendável entrar no mar de sapatas holandesas. As praias do Rio também passaram por aterros, no seu caso, para privilegiar os automóveis, a andar em oitava marcha, característica dos cágados, nas pistas de asfalto duplicadas. No caso de Miami, era tudo pântano; aterro de pântano não pode mesmo dar certo, nem no Primeiro Mundo. Lugar, aliás, onde Miami não fica: seu comércio é legitimamente paraguaio. A repórter só acertou muito indiretamente em aspectos de indiscutível semelhança: o oceano continua sendo, lá e cá, o Atlântico; e a liberdade é atlântica. O comércio é paraguaio, a sandália é havaiana, a Giselle é Büntschen, e os casais se namoram escancaradamente, héteros, homos, bis.

De volta à Pátria, visitei o norte de Goiás rodeado de belgas por todos os lados. A comunicação é mais atlântica que o próprio oceano e nos entendemos em arremedos de Inglês, Francês, Portunhol, fome de comida e de viver, sede de beber o que fosse líquido. Mato pra que te quero, festa pra que te quero, trabalho. O Congo poderia ter sido aqui; e teríamos colonizado a Bélgica.

Deixei de morar com vista para o mar, em Florianópolis. Não ouço mais o vento nordeste implicando com toda razão contra minhas janelas, como não ouço mais os automóveis se espatifando uns contra os outros, na avenida Beira Mar. Minha janela agora é indiscreta e nem precisei quebrar a perna. Minhas mulher e filha foram para o Rio – vou na Sexta que vem, de férias – e o cachorro poodle muito mais delas que meu amigo mudou-se para a casa da nossa empregada de serviços domésticos, de férias – o cachorro, por ora. Grande Bolinha! Bom sujeito, às vezes parecendo Nietzche, mais recentemente grama – segundo sua mais querida, Maria Luiza, depois de uma tosa infeliz. Ela ainda não sabe, mas, na sua colônia de férias, Bolinha foi atacado por um Pit Bull. Patrícia, nossa nobre empregada, contou-me que saiu no jornal a notícia de crianças atacadas por Pit Bulls nas praias catarinenses, no último fim de semana. Bolinha terá que operar o maxilar. Não sei o que foi das crianças, não li o jornal. Impressionante como a técnica do transplante funciona magistralmente: cada vez mais fica provado que transplantar cérebros de Pit Bull para cabeças humanas transforma os possuidores dessas cabeças de cérebros transplantados em Pit Bulls, capazes de adquirir e deixar soltos semelhantes a eles, montados sobre quatro patas. Declarei à nossa empregada, voluntária e provisoriamente tutora do Bolinha, que vou processar o animal responsável pelo animal que agrediu nosso amigo poodle – sem ter a menor idéia de como processar alguém. Muito menos um portador de miolos transplantados de uma raça que se supõe canina.

De volta ao padrão; à normalidade.

11.26.2006

IMPERDOAVEL

Aos meus, mais que raros, cari'ssimos leitores, informo que ate' o pro'ximo dia 6/12/2006 me sera' praticamente impossivel publicar alguma coisa para diverti-los ou entedia'-los (claro que a intencao e' sempre a primeira, mas nao ha' qualquer tipo de garantia para esse tipo de produto). Como pode ser visto, nem acentuar eu posso e escrever em Portugue^s sem acento, mais que desconfortavel, e' perigoso. Por exemplo, se digo que peco, posso estar pecando ou pedindo e, neste caso, nao necessariamente para pecar. Estou fora do ar, fora do clima ameno brasileiro, enfrentando frios feitos com exclusividade para ursos - e ursos polares, naturalmente - e sem acento. E me recuso a escrever "eh" quando quero dizer "e'" e, quando escrevo "e'", fica a pobre da letra em tempo de verbo com duas aspas de um lado e tre^s do outro, em insustentavel assimetria.

Gravi'issimos pedidos de desculpas e at'e breve, com as cro^nicas, os poemas e os capi'tulos de PAREDES QUE FALAM (momentaneamente mudas - mas so' momentaneamente).

Abracos,

Mario.

11.14.2006

MOVIMENTOS

Agenda positiva
Ação afirmativa
Posição assertiva
Palavras expressões contemporâneas
Todas
Querendo dizer não.

Modismos.
Toda hora surge uma bobagem qualquer
Que quando dita pela boca de um dito
Representante
Do povo
Assume seu ar solene
De grossa porcaria.

Protestos.
Nunca se protestou tanto
Inutilmente
Exatamente
Porque nunca se protestou tanto.

Contemporaneamente
O ato de amar
Contra tudo de charlatanismo burrice hipocrisia
Boçalidade
Inclusive o movimento de carros
Transportando vazios
A lugar algum

Plenamente consciente
Da total inutilidade do seu gesto

Permanece protestando.

Assim lhe batizaram sacanagem.

11.08.2006

DE MÉDICOS E MONSTROS

Matemáticos poderão ficar horas discutindo com grande precisão sobre o espaço enésimo. Ficarão aflitos se pelo menos um dos enésimos espaços não servir para que esbocem suas curvas e conforme-queríamos-demonstrar equações. Um deles, só para não ficar de fora, sacará de um computador de bolso a enésima casa decimal de pi.

A Lei das Probabilidades afirma que um físico entrará na roda – que desprezará o espaço onde os matemáticos andaram rabiscando e o próprio planeta Terra surgirá das suas mãos. Em torno dele – é um erro pensar ser correto o contrário – girará todo o infinito espaço, a deixar o enésimo encabulado.

Inevitavelmente invadirá a estratosfera um economista, a desenhar seus gráficos do eixo dos y para o dos x, invertendo tudo – porque foram os ingleses que desenterraram a Economia das valas dos escravos e trabalhadores vinte-e-quatro-horas e, como se sabe, ingleses são canhotos: não à toa, mas solenemente, seus automóveis andam na contra-mão. O recém-chegado recitará debêntures, déficits, superávits e sonetos.

Um contador apresentará a mais perfeita exatidão: aquela onde ativo e passivo se igualam. Na seqüência, um cientista político afirmará: direita e esquerda também.

Quando for a vez das doenças, chegarão os médicos - e muitos: haverá um congresso. Um matemático, após consultar a língua, tornar-se-á sócio do economista, deixando o contador sem palavras: demonstrarão que sintomas multiplicam-se em diagnósticos e estes, em receitas, na razão direta do número de médicos e na inversa do inverso da razão.

Que ninguém queira prever o final – pois, ao invés de advogados, quem chegará serão advogadas.

Exércitos, extra-terrestres, estudantes, desesperados, pacifistas, lixeiros, políticos, aproveitadores e jornalistas vão-se juntar à grande discussão acerca do que seja realmente exato – e apontarão como capazes da resposta os matemáticos, não só por estes dominarem a única ciência humana exata, mas por estarem, desde o princípio – e não era este o verbo – em maior número. Após o incômodo suspense do silêncio que antecede as grandes revelações, aquele do computador de bolso revelará:

- A enésima decimal de pi só é conhecida como enésima. Seu valor não se conhece. A única ciência exata que temos não é exata o bastante para que a última decimal de pi – do velho pi – se revele em seu exato valor, no seu exato e único último lugar.

O silêncio que sucederá o desapontamento será quebrado pela língua, a traduzir-se em infinitos-enésimos idiomas:

- O último não é o primeiro, porque este, dado o generalizado desconhecimento daquele, não se faz conhecido.

Pi.

10.30.2006

UMA ESTRANHA FREQÜÊNCIA

Silêncio. Parece que os automóveis perderam suas buzinas. A festa da democracia é um tanto barulhenta. A festa acabou e que alguém faça o favor de lembrar o poema do Drummond.

Silêncio. Possivelmente será feito silêncio das investigações em curso: já não interessam a mais ninguém.

Silêncio. Governo e Oposição começaram a tramar ruidosamente contra nós.

Silêncio. A bomba norte-coreana começou a explodir. Silenciosamente.

Silêncio. Do lado de cá do planeta, tão somente se contam as mortes e explosões que acontecem do outro lado; por aqui, são silenciosas.

Silêncio. No morro e no apartamento. Jamais a bala perdida foi tão silenciosa.

Silêncio. Muito silêncio, porque a briga da família vizinha é como punhais cortando a nossa carne e, nos nossos ouvidos, o som da nossa morte.

Silêncio. Faz-se necessário um minuto de silêncio para que você possa ouvir o zumbido insuportável que não lhe deixa os tímpanos – que, bom, Drummond, se o zumbido fosse a falsa vienense.

Silêncio. Uma rosa nasceu – faz tempo que ela nasceu num verso do Chico Buarque, mas rosas são como estrelas: somente percebemos seus sons e luzes quando já não mais existem.

O que ainda nos faz lembrar Cartola e Olavo Bilac.

Para quê tanta ciência?

Silêncio.

10.16.2006

MARGINAIS

Poeta e poesia
São marginais sempre
Ainda que raramente cometam crimes
E quando os cometem
Geralmente é contra a língua
E dificilmente contra o beijo.
Gente de teatro quando mata
No mais das vezes é de rir.
Médicos, generais e engenheiros
- uns quando erram, outros quando acertam –
Podem matar de verdade.
Já entre poeta e poesia
Quem morre é sempre o poeta
E nem sempre no final:
Há poetas apressados
Que apressam seu final.
Tudo assim impreciso
Porque poeta e poesia não combinam muito
Com precisão
A não ser de dinheiro.
Se poesia é palavra gasta
Rima fácil de samba-enredo
Poeta é pejorativo.
Pois mesmo sendo assim
E quase sempre sendo poesia verso
Todo poeta vira prosa
Quando revela sua condição marginal:
- Prazer. Poeta.

10.09.2006

TÁXI

Poderíamos falar de...
Política?
Melhor não.
Futebol, então...
Nem pensar.
Melhor não falar do tempo
Que é sobre ele que todo mundo fala
É banal.
Um samba,
Minha vida por um samba,
Um reggae,
Uma opereta
Mas nada disso toca em rádio de táxi.
O motorista cheira mal
E o carro cheira ao motorista.
O cinto de segurança do banco traseiro
Se achado foi roubado.
Se você tivesse um carro, hein?
Mas você não viria com seu carro a Amsterdã
Você mora longe
Você fica lá do outro lado
Só que veio parar aqui.
Parar, nada: andar de táxi
Neste lugar
Que nada tem de Amsterdã.
Ela bem que podia facilitar as coisas
Puxar assunto
Mas parece que a ponta do cabelo dela
Tem muito mais assunto que você.
O motorista não fala nem ouve
Fede.
A palavra já é horrível
E não traduz exatamente o cheiro
De quem dorme e acorda e se droga dentro desse carro
Ele mora no carro,
Percebeu?
Tudo parado e é noite
Atenção todos os carros
Fiquem parados –
A ordem veio de Marte.
Um disco voador! –
Você quis e não viu
E não disse.
Você está prestes a explodir de tristeza
Tem um sonho acordado
Está numa tribo pelado
Dança com eles
Você que detesta índio
Transporta-se
Respira fundo
(O carro todo cheira ao motorista que não dorme)
Vira-se pra ela
Consegue que ela deixe a ponta do cabelo
Por um instante infinito
Solto e sem a mão dela.
Você toma dessa mão
Que é da freira
Da sua mãe
Da sua irmã
Da sua moribunda avó
Quem sabe da sua mulher
Da sua tia de Guaratinguetá
Sua namorada
Sua empregada
A namorada do melhor amigo
A mulher grávida do motorista
Você é o motorista.
Quem é ela?
Sua catinga.

10.07.2006

24 – CAVERN CLUB

“RITMOS DE BOATE” e “CAVERN CLUB” foram dois programas de rádio no Rio de Janeiro, com o “DJ” Big Boy, nos anos setenta do século passado – conta Maria Eduarda à irmã caçula, por telefone. “Big Boy rides again” – era assim que ele abria seus programas. Flávia está aflita: ninguém gosta do nome “Lennon e Vinicius” nem aceita que exista uma canção do brasileiro cuja letra se assemelhe em utopia a “Imagine” – sendo que seria de todo absurda qualquer hipótese de um ter influenciado o outro, fosse na ordem que fosse, tal a distância de ritmos, trajetória e linguagem dos dois, ainda que tenham sido contemporâneos e que coincidências, determinações divinas ou sincronismos lhes tenham tirado as vidas no mesmo ano: 1980. Maria Eduarda sugere à irmã que Vinicius se junte a Louis Armstrong e Pixinguinha no atual Satchmo e Pixinguinha e que o “Lennon e Vinicius” passe a se chamar “Cavern Club”, nome do lugar onde os Beatles se apresentavam na sua distante Liverpool em seu início de carreira e que batizou um dos programas do “DJ”, um dia encontrado morto em um quarto de hotel no Rio.

- Isso dará identidade ao bar que está fracassando e um “gancho” para um relançamento do complexo como um todo – é o que opina Maria Eduarda, e Flávia admite que a irmã mais velha teve uma boa idéia.

- Qual passará a ser o nome do “Satchmo e Pixinguinha”? – querem saber as sócias de Flávia: Rita, Renata e Cláudia. Flávia, que viveu alguns namoros, tendo sido um deles desses que deixam marcas de difícil cicatrização; Rita, que foi estuprada e quem morreu foi o estuprador – de parada cardíaca; e ninguém apareceu para reclamar o sumiço dele, como contou a Renata o policial que investiga a morte do velho cujo cadáver foi encontrado de calças arriadas, perto de uma etiqueta deste complexo onde estamos inseridos, NOITE E DIA, LIVRO E FANTASIA; Renata, que, como Flávia, conhece características físicas do assassino do advogado, crime que vem sendo há alguns meses investigado pela Polícia Federal e também pela Civil (Renata chegou a conhecer-lhe a voz e a proximidade); e Cláudia, que tem ciúmes permanentes do marido Angus, indivíduo de características físicas nada ou pouco atraentes para a maioria das mulheres e que foi capaz de atrair – momentaneamente – a amiga e sócia Rita - sem que Cláudia e o escocês descendente de celtas sequer tenham desconfiado disso.

(Como de todo e presumivelmente, nenhum celta deve ter desconfiado – a não ser que um de seus druidas seja capaz de não só desconfiar como tramar e provocar esse tipo de situação.)

Flávia pensa em criar mais um bar, dividindo o “Satchmo e Pixinguinha” em dois; Renata e Rita são contra - este vem fazendo sucesso e se mantendo cheio com o tamanho que tem – e propõem que o “Lennon e Vinicius” é que seja dividido em dois; Cláudia reage, De jeito nenhum, a ilha é um santuário de “covers” dos Beatles, vai encher sempre e exatamente no seu atual tamanho, especialmente com a nova personalidade - ela argumenta, enfaticamente.

Depois de fumaçadas do cigarro de Cláudia e correspondentes abanares das demais, as quatro decidem que o “Satchmo e Pixinguinha” vai continuar se chamando assim; e que aqui, doravante, vamos nos chamar “Cavern Club”. Agora é reformar e divulgar e assunto encerrado – Cláudia diz e se levanta, esmagando o que sobrou de um cigarro no cinzeiro.

É quando Flávia mergulha em profundos pensamentos e sai daqui sem mesmo se despedir das amigas, como se estivesse em uma espécie de transe, triste da saudade e dos traumas do amor fracassado, confusa com o rumo da sua vida, que vem sendo rondada de perto por duas mortes, uma presenciada por ela, a outra, vivenciada por Rita.

10.02.2006

REFLEXOS

O mar hoje reflete um céu cinzento.
Pensando bem
O céu nem tem tanta culpa assim
Nem o mar é tão reflexivo assim
Tanto que o céu está se azulando
E o mar vai se acinzentando por conta própria.

Não me resta saída
Senão associar idéias
Evidentemente estapafúrdias:

Serão os votos reflexo do país
Ou terão os votos vida própria?

9.26.2006

POR FAVOR, DISCORDE

De tanta auto-ajuda, finalmente a humanidade vai se tornar o conjunto de seres que se ajudam.

Sociedade fraterna é aquela fundada por Caim e Abel.

Amor conjugal: quem saberá conjugar esse verbo?

Amor filial é aquele que se expressa pela transferência de lucros para a matriz.

Dois pares de tapas nas costas: dois amigos se encontrando depois de longo tempo. Quando fazem ruído: dois políticos que passaram a tarde juntos.

Jantar à Americana é buffet. Sair à Francesa é deixar o jantar à Americana sem que ninguém perceba.

Os Estados Unidos, depois de acabarem com o Segundo Mundo, claramente mostram que estão descambando para o Terceiro. Tanto assim que eu vi um filme americano onde a atriz aparece sem sutiã e fazendo sexo. Ao mesmo tempo.

Filme francês de suspense agora é thriller. Globalização.

Estamos na reta final das eleições. Há eleitores de rádio de pilha no ombro e há outros de paletó e gravata e outros ainda de smoking. No universo feminino, enquanto umas ficaram em casa de pano na cabeça, outras se fizeram presentes; no lugar de panos, chapelões. Os candidatos usam tapa-olhos.

No ano em que o Brasil perdeu, inteligente mesmo é propor ao eleitor que tenha a mesma empolgação que teve na Copa. Mas, faz sentido: fazer o que na cozinha?

O avanço tecnológico vertiginoso que se configura no mundo de hoje é a introdução preferida de artigos que retratam algo que já se passou. Especialmente nos anais.

Anais: palavra sem singular.

Fazer frases não é monopólio de ninguém. E se alguém patenteou, foi o Barão de Itararé, que, quando vivo, queria mesmo era cair no domínio público.

Generosamente.

9.19.2006

DISCIPLINA

Não existe mendigo
Assaltante
Artista
Estuprador
Sem disciplina -
A arte de dormir e acordar
Bem.

Seus antepassados
Espreguiçavam-se;
E você?

Alongue-se
Prolongue-se
Depois e
Principalmente
Antes
De dormir.

Respire
Repare
O assaltante
Minutos antes
De lhe ceifar as orelhas
Estica o braço

Alonga-se
Como o mendigo
Antes de fazer a barba
Sem espuma
Com a lâmina
Catada no lixo.

Você pianista
Lutador de boxe
Cantora
Lutadora de judô

Antes do bemol
Do direto
Da dissonância perseguida
Do bum! No tatame

Tal como o executivo
Se alonga –

Nunca por disciplina.

Para suportá-la.

Se os crucificados
Fossem antes alongados
Teriam sido suas cruzes
Mais leves?

9.11.2006

DE PALAVRAS E BARES

Alguém do século passado – o XXI, lembra? – pesquisou em um dicionário da época palavras que não existem mais (como dicionários também são coisas do passado). Empolgou-se, viajou mais ainda no tempo - o passado -, e descobriu personagens e coisas que eles andaram dizendo ou cantando, lá, no tempo deles. Dizem que depois ficou louco, a tentar desenvolver idéias próprias a partir das que havia visitado, viajando no tempo. Contam que desapareceu; mas deixou no chão do bar, num obsoleto guardanapo, escritos que, atualizados, diriam mais ou menos assim:

***

Oscar Wilde recomendou que se deve resistir a tudo; menos às tentações.

Ora, o que deve então fazer um prudente?

Evitá-las.

***

Segredo é pra quatro paredes; já o adultério é pra oito.

***

Casal transformou-se em duplamente adúltero – só não se sabe quem começou, ele ou ela.

Um outro casal seguiu os passos do primeiro. E assim, um terceiro, um quarto, um quinto...

Logo:

Segredo é pra quatro paredes; adultério é pra 8, 16, 32, 64...

***

Até os impotentes sabem: adultério é uma potência. De dois.

***

Stanislaw Ponte Preta, sobre passageiros em pé nas “lotações” – pequenos ônibus do tempo dele -, contou que a lei permitia um máximo de 8 passageiros de pé, dentro daquele meio de transporte coletivo; e que, depois, a lei do 8 caiu - e, como 8 deitado é infinito...

Portanto:

Segredo é pra quatro paredes; adultério é pra oito. Deitado.

***

Se cometer adultério for assunto de lei, cometa. Se for “de lei”, não cometa.

***

Adultério: melhor não comentar.

***

Não é à toa que você lê essas frases soltas, de palavras e atos antigos, na parede deste banheiro de bar – para que você se pergunte, afinal, o que resiste mais ao tempo: as palavras? As pesquisas? Ou são os bares e seus guardanapos?

9.05.2006

O BRASIL E O UNIVERSO EM EXPANSÃO

UAI nem sempre é interjeição mineira, como não se pode acusá-la de inconfidência, pelo menos sem provas. Mas, se nem interjeição nem inconfidência, insurreição, sim: a UAI - União Astronômica Internacional – rebaixou Plutão a planeta anão. Mas será possível arbitrária e autoritariamente uma UAI qualquer retirar um planeta de sua órbita, reduzindo-o a uma sub-órbita – assim, de um ano-luz para o outro? Isso já causa revoltosos protestos de apaixonados e estudiosos astrônomos - sem que, no entanto, sejam esperados enforcamentos seguidos de esquartejamentos por conta disso. Disso que, diga-se, nem é novidade mais.

Da mesma forma, faz tempo que se comenta, em centros de pesquisa e botequins, que o universo vive em expansão. Se o big-bang foi ou não seu começo, aí o buraco, além de negro, é muito mais profundo; cientistas e curiosos embriagados ainda não conseguiram chegar a um consenso. Mas todos garantem: que o bang foi big, ah, isso foi – e, vá lá, reduzam Plutão a plutinho – mas que ninguém se meta a falar em fim do universo.

O universo vai-se expandindo espaço infinito afora, só pra ver quem é mais infinito no fim das contas: ele, universo infinito, ou o próprio infinito. E o fim das contas não existe, qualquer endividado sabe disso muito bem.

O que talvez também não seja novidade é que o Brasil segue a mesma trajetória da cósmica expansão.

Professores são seres capazes de transmitir conhecimento e provocar reflexões e modificações. Por isso, no Brasil, são tão desprezados e mal pagos. Formam então os professores uma galáxia à parte, que sai a protestar nas ruas contra a degradação da sua profissão, o tanto que deles já tiraram, a destruição da escola e do acervo científico-educacional-cultural público, assim por diante. Pelas demais organizações sociais brasileiras – ou galáxias -, são vistos como vagabundos que reclamam de barriga cheia, alimentada pelo povo.

E povo é outra galáxia, totalmente desconhecida pelas demais.

Estudantes, que fazem parte da mesma galáxia dos professores, deles se afastam.

Elites sócio-econômicas se queixam da carga tributária, dos juros altos, dos gastos públicos e, ainda que empreguem parte – planetas, anões ou não – da galáxia denominada Povo, e que parte dessa parte venha das escolas e universidades - que compartilham da órbita dos Professores -, a galáxia Elites se afasta das demais.

Políticos – ah, os políticos! - sabem de tudo, tudo propõem, prometem muito mais. Ouvem pouco. Muitos deles, percebendo espaços que se agigantam na camada de Ozônio, é na luz crepuscular que bem se adaptam à inescrupulosa. Rapidamente se libertam da gravidade e de todas as demais leis. Têm na galáxia Povo seu alvo predileto: eis a inspiração de Guerra nas Estrelas.

O Governo, ainda que majoritariamente orbitado por políticos, é uma outra galáxia. Aumenta impostos e diminui custos, sim senhor – senão, os professores não estariam reclamando.

Galáxias como a dos traficantes vão-se expandindo à velocidade da luz, na razão direta das massas e na inversa do quadrado da razão.

No lugar da razão, galáxias distintas, estranhas, planetas a desaparecer da órbita, a se violentar e a se perder no éter, a se plutanizar – expressão que, ninguém duvide, brevemente será cunhada – e não parente, do desprezado e simultaneamente temido, porque desconhecido, vernáculo.

A razão provavelmente preferiria professores bem preparados e pagos, universidades aparelhadas, concorrência saudável entre escolas públicas e privadas, empresas públicas e privadas eficientes e competitivas oferecendo o melhor, de empregos a produtos, comungando com cidadãos de emprego e vida dignos o pagamento dos impostos necessários e suficientes para o Estado-servidor.

Quereria presumivelmente a razão cidades menos tensas, com melhor distribuição de renda e demografia, transporte público de qualidade, paisagem em harmonia com a população, progresso social e desenvolvimento no ritmo que lhes fosse adequado, a elas e eles, cidades e cidadãos. Seu contrário são as mega-cidades, com sua mega-miséria, mega-violência, mega-engarrafamentos, mega-corrupção, mega-demagogia, mega-poluição...

Mas, que mega, hein?

Dizem que é assim por culpa da história, dos Estados Unidos e dos portugueses; por culpa do povo, do governo, das elites; a culpa é do clima, a culpa...

O Brasil se expande para fora de si, por meio de suas distintas galáxias distantes umas das outras, afastando-se, indo-se, cada qual por si.

Ao contrário do universo, o começo do Brasil é conhecido.

Bem como seu fim, tudo indica, o será em breve.

8.28.2006

VOCÊ, LEITOR

No caso deste blog, o título aí em cima é de um realismo acachapante. Eis aqui um blog de um leitor só – não necessariamente solitário, mas muito provavelmente sempre o mesmo. Pode, aliás, ser uma leitora, a incrementar o contador de visitantes sempre de 1 – lembrando uma torcida, a gritar depois de um gol: “mais um”.

Injustiça da minha parte com você, este outro ou outra você, que também ajuda a incrementar o contador, eu sei. Um é pouco, dois é bom, três, então, nem se fala. Sem demagogia – não se vive neste espaço de votos, vive-se aqui até sem salário, que dirá de mensalão -, quantidade não é o que se deseja por aqui. Melhor - aqui - é essa qualidade que é própria de você, leitor, nesta sua condição ímpar; esse intimismo, com S, de nem próximo nem distante. Intimismo do mesmo diâmetro de uma mesa de bar e com a profundidade e a poesia que lhe são peculiares e, principalmente, a conversa fora e a perspectiva de chamar um táxi e deixar o carro próprio no lugar que lhe é próprio: o estacionamento. Até a noite seguinte.

Temos planos. A começar por leitura especializada – e você, leitor, se enquadra nessa categoria. Quer se candidatar a crítico dessa obra fragmentada entre Terças e Sábados?

Buscamos concursos – e aceitamos sugestões.

Pensamos em organizar esta bagunça – esta com T, de tocante de tão próxima – e criar desvios do blog para seções: “A DINASTIA”, “PAREDES QUE FALAM”, “POEMAS”, “CRÔNICAS”, e outras pretensões. Ficará mais fácil e engenheirístico – face que este autor fará sempre questão de mostrar. Oferecer, não: nem no boxe, onde o adversário é como deve ser um adversário: um saco.

Ficará, de certo, mais bonito, embora desconsertar deva ser - às vezes, pelo menos - o papel da arte. Se não, Nelson Rodrigues não teria afirmado que toda mulher gosta de apanhar nem que ninguém gosta de preto porque nem o preto gosta de preto. Desconsertos assim provocam o que a arte mais gosta de provocar: reação. Do gênero “Eu, não”. E aí a perspectiva de grandes mudanças para melhor, mudando o que e quem – principalmente – deve ser mudado. Grande Nelson. Quem somos nós?

Vez por outra algo que pretende ousar um pouco mais, explorar o belo idioma que nos coube um pouco mais, descobrir suas veias, suas coxas, seu sexo, nuances e buços. Outras vezes a tentar provocar um risinho de canto de boca, uma careta, uma ruga passageira de desconfiança ou curiosidade. Em todas elas, uma cumplicidade.

Com você, leitor. Ou leitora. Você vai bem? Volte sempre, hein?

Por favor.

E obrigado.

8.21.2006

TÉDIO

(1)

E se você fosse um grande entediado
Na estréia de uma Segunda-feira
Uma temperatura extrema
Frio ou calor, tanto faz

E saísse a caminhar na hora do almoço
Tanto faz se frio ou quente o ar lá fora sopra
Sob um sol que só deixou de fora raios
Rajando seu corpo e a calçada

E o céu ficou azul e sem vergonha
E o ar e o sol e o céu levantaram
Mais que saias
Humores

Continuaria assim entediado
Ou faria como eu fiz
– e era frio que fazia –
E jogaria o tédio precipício abaixo?

(2)

Se o problema é esse noticiário
Pior ainda saber que o que está acontecendo
É bem pior do que isso que eles contam
Pode ficar tranqüilo
Isso não é tédio não
É revolta
Não cura com o sol não
Mas o tédio passa
Fica somente a revolta.

Coisa pouca.

8.15.2006

SOCIEDADE ANÔNIMA

Era só o começo. Era antes.

Os órgãos de comunicação atuantes no país foram advertidos de que qualquer tentativa de manipulação da opinião pública, omissão, divulgação irresponsável e/ou falsa de notícias seria respondida por ampla divulgação via organismos paralelos independentes e um boicote generalizado. A iniciativa privada acabou por acatar o convite para que provesse os recursos para o combate ao crime organizado e seus derivados, parcialmente como investimento, parcialmente como substituição de impostos – primeiro, unilateralmente decidida; depois, divulgada e negociada com o poder público. O repasse de verbas foi através de um fundo gerido por particulares e publicamente auditado por vários dos mesmos anteriormente advertidos veículos de comunicação.

Enquanto o poder público continuava a abarrotar as já hiper-lotadas cadeias, parte daqueles recursos da iniciativa privada possibilitou contratar a construção de maiores e melhores presídios. Sua expansão era planejada por meio de estatísticas, continuamente aferidas no decorrer dos fatos. Nas novas prisões, à exceção de desbalanceamentos momentâneos, só toleráveis por um ou dois dias, nunca uma cela seria habitada por mais nem menos que três presos – porque um, mais que pouco, seria caro; dois, uma fórmula boa demais para a cumplicidade revoltosa; a partir de quatro foi considerado superpopulação; e a infância mostrava que dois geralmente se aliam e alijam um terceiro, que passa a se defender, minando os planos dos outros dois. Foi instituído o trabalho remunerado para presidiários. Parte da remuneração ia para as famílias dos presos e parte era depositada para uso deles, depois do cumprimento de suas penas. Nos presídios, toda e qualquer conversa telefônica passou a ser ouvida e automaticamente gravada, em tempo real, local e remotamente, sempre com o conhecimento prévio de quem conversava. Posteriormente, essas práticas incorporaram-se à legislação. Apesar do veemente protesto de alguns setores da sociedade informada e instruída – “Assim, todo mundo vai querer ir pra cadeia” -, insistiram em programas de educação e re-enquadramento social. “Sangue bão” foi uma das expressões que desapareceram. A reclusão e reorientação de menores de 16 anos infratores baseou-se em substancial assistência médica, psicológica e educacional. Casos tidos como patológicos e sem retorno foram encaminhados para centros de reclusão especiais, onde o exercício de atividades produtivas era incentivado. Do lado de fora, por meio da gestão de instituições religiosas previamente analisadas, investigadas e qualificadas, desenvolveram-se programas de assistência a viciados para maximizar a cura e minimizar a dependência. Agências de propaganda e marketing realizaram, por conta própria e sem remuneração, campanhas de educação e alerta contra o uso de drogas pesadas. A maconha foi liberada. A exploração de pontos para a sua venda foi concedida a ex-traficantes cumprindo penas em regime semi-aberto, compatíveis com seus atos praticados no período do tráfico, desde que estes não incluíssem crimes de morte, tortura ou seqüestro. Todas as demais drogas traficadas foram mantidas na ilegalidade e assim combatidas, até que índices do nível de educação e qualidade de vida da grande maioria da população alcançassem padrões mundialmente tidos como satisfatórios. Já com o envolvimento do poder público, para combater o tráfico remanescente, o armamento, preparo e remuneração das forças armadas federais e das polícias federal e estaduais teve incremento expressivo, simultaneamente a estratégias de aceleração de substituição, julgamento e punição dos corruptos. Diminuição da pena, programas de reabilitação e re-enquadramento social, proteção e troca de identidade foram concedidos a alguns criminosos, em troca de confissão e delação. As fontes de renda foram ainda suplementadas por meio do reingresso incentivado e condicional de dinheiro anterior e ilicitamente expatriado, perdão parcial e condicional à sonegação e aporte voluntário de pessoas naturais do país e exterior. Para inibir a continuada proliferação do vício, organizações não-governamentais passaram a prover assistência psico-social a famílias ou pessoas de baixa renda e/ou de desempregados e também àquelas que se candidatassem ao programa em troca de trabalho voluntário ou a contribuir com recursos, financeiros ou não.

Tudo em meio a tenebrosos atos de terror. Em resposta, persistência.

Nomes de candidatos corruptos circulavam em listas, na mídia e boca-a-boca, especialmente nas regiões mais ermas e/ou de analfabetismo pronunciado. Eles ocupam hoje algumas das celas das novas prisões. Sempre em número de três.

Grandes fornecedoras de obras e serviços públicos foram convencidas a firmar de público um pacto que liquidou com velhos esquemas de corrupção e acerto prévio do resultado de concorrências. Inibiu novos. Funcionários públicos de histórico honrado foram prestigiados com homenagens e aumento de salários. Agências supra-partidárias foram encarregadas da gestão da carreira do funcionalismo público, que passou a competir em perspectivas de ascensão por mérito e resultados com as típicas do setor privado. A demissão de funcionários públicos incompetentes e não dispostos a progredir e colaborar passou a ser praticada. Empresas estatais e privadas concordaram com a criação de um fundo para desempregados, preparando os dispostos ao reingresso no mercado produtivo e suportando-os minimamente até que ele ocorresse.

Para a remodelagem estrutural do país, com o poder público já devidamente ciente de suas atribuições e responsabilidades e com uma visibilidade jamais vivida de seus atos, com verbas da parcial ou integral concessão à iniciativa privada da exploração de empresas públicas por prazo determinado, regulada por agências supra-partidárias fortalecidas, além da proveniente de uma racional reforma tributária, foi implantado um amplo programa de valorização do magistério, com ênfase nos salários e no preparo. A complementação educacional a domicílio foi oferecida a famílias e pessoas de baixa renda e/ou sem acesso a expressões artístico-culturais. Banidos foram os exames de avaliação de cursos por meio das provas a que se submetiam seus alunos e ex-alunos. As cotas para minorias foram substituídas por cursos de preparação para o vestibular para os estudantes em escolas públicas, até que estas atingissem o devido grau de competitividade com as particulares.

A verdadeira droga foi finalmente banida: a ignorância.

Antes era só o começo. Antes era 2006.

8.08.2006

DE CABRITOS E CANIVETES

“Bom cabrito é o que não berra” - será verdade?

Aquela viagem pelo interior, que incluiu estradas rurais ou coisa parecida – mais pra coisa parecida -, trilhas a pé, rios, percurso de barco - tudo a trabalho, nada de eco-turismo -, iniciou-se por sugerir uma prosa sobre cabritos (lembrando que bodes são muito espaçosos).

Antes do almoço, corcoveando dentro de uma camionete que era pra ser confortável, proseou-se sobre a provável reeleição do executivo-mor. Constatou-se que o excesso de sua exposição na mídia é que lhe esgota a inspiração para tiradas de efeito. Já do lado de quem as ouve, a paciência é que vai agonizando. Essa experiência já foi vivida com o mandatário anterior; tudo indica que a viveremos outra vez. Do lado do mandatário, portanto, constatou-se que bom cabrito é o que não fala.

Enquanto almoçavam em acampamento de obras bem no meio daquilo tudo, mata, rios, um calor seco sob nuvens a ensaiar uma chuvinha que não viria, falaram do barco no qual pretendiam navegar dali a algumas poucas horas:

- O motor anda bebendo demais.
- Não vai dar pra ir e voltar.
- Claro que dá.
- Ce tá louco, sô; não dá, não.
- Dá.
- Não dá.

E continuou aquela discussão de cabritos roucos, absolutamente inaudíveis, nenhum capaz de convencer ao outro. Aliás, ninguém ali era cabrito, eram pessoas vividas, experientes. Sem ofensa, estavam mais pra bodes. Se havia algum cabrito, era justamente o barqueiro, cuja opinião sequer era ouvida, que dirá considerada. Pra convencer bode, cabrito tem que ser muito bom de berro.

Depois de novas trilhas a pé e quase-estradas na referida camionete que era pra ser confortável, fizeram seu trajeto no referido barco. Na ausência de coletes salva-vidas, a tranqüilizar a todos, um par de remos. E um homem não é muito mais que um par de remos.

As águas, a paisagem, tudo aquilo foi ressuscitando corpos e mentes cansados do poder e da falta dele. E homens não são muito mais que sua ressurreição.

Que bode ou cabrito foi que venceu a discussão, ninguém sabe - mas a gasolina do barco acabou, no meio do percurso de retorno.

Quem pratica boxe conclui, precipitadamente, que um homem não é muito mais que suas luvas de boxe. Já quem anda de bicicleta entende que um homem não é muito mais que sua bicicleta – tanto assim que sempre se pergunta: casar ou comprar uma?

Porém, nem luvas de boxe nem bicicleta as havia.

O barqueiro revelou:

- Tem um pouco de gasolina no tanque e um pouco mais nesta vasilha – e perguntou:

- Alguém tem um canivete?

Sem ter a menor idéia da utilidade que poderia ter um canivete naquele instante, o mais peixe fora d’água de todos, nascido e criado em beira de praia de cidade grande, respondeu:

- Sim. Eu tenho um canivete.

E aí lhe foi dada a divina graça da revelação: seu canivete serviria para cortar o fundo de uma garrafa plástica de água mineral; esta, depois de cortada, se prestaria como funil entre a vasilha avulsa com gasolina e o tanque do barco, a fazer o motor à explosão explodir à vontade outra vez, pondo o barco a navegar de novo e de volta à terra, prometida e quase-firme.

Foi assim que ficou provado que – sem entrar no mérito da ressurreição -, um homem não só não é muito mais que seus remos, luvas de boxe e bicicleta, como, definitivamente, um homem nada mais é que seu canivete.

Portanto, minha amiga, da próxima vez que seu namorado lhe convidar a um motel, antes que alguma coisa deixe de funcionar, pergunte a ele:

- O canivete veio?

Ou fique a ouvir bodes e cabritos.

8.01.2006

A ESCOLHA É SUA

Se você pudesse escolher, claro, passaria a vida de bom humor. Aquele estado de espírito que mantém você bem disposto, uma alegria pertinho da superfície, pronta para aflorar à mais fraquinha das piadas. Você, aliás, hoje, está um ótimo contador de piadas. Contador, que nada: inventor. Você – com este seu bom humor – está afiadíssimo, criativo, tudo é oportunidade para uma grande tirada. Seus amigos percebem, ficam olhando pra você com um ar de O que foi que deu nele? - já percebeu? Você já acordou assim, de bom humor. Foi carinhoso com a mulher, brincou com o cachorro, nem se importou de ter pisado no cocô que ele fez no tapete novo da sala. E olha que você estava descalço. Foi pro trabalho a pé, de tão bem disposto, e não houve nada de novo, não. Nem hoje, nem ontem: nenhum aumento, promoção, nova oportunidade, nem mesmo uma insinuação da gostozona que voltou de férias. Nada disso, pura rotina, pura, rasa, medíocre mesmice; e você não é medíocre pra gostar da mediocridade nem da mesmice - tanto assim que, vira e mexe, se irrita com essas duas, quer mudar tudo, fazer tudo diferente. Fica até de mau humor. Mas hoje, não: nada abalou este sorriso envolvente. O papo da mesa é que está ficando um pouco chato, engraçado, todos estavam de bom humor, você – especialmente - estava tão bem humorado, o que foi que fez você mudar de humor assim de repente?

Podendo escolher, não perderia seu tempo procurando um livro interessante quando as livrarias só oferecem Como manter a calma, Como vencer na vida, Como vencer o stress, Como ter sempre bom humor, Como ser líder em vez de chefe, Como chefiar seu chefe, Como comer e emagrecer, como, como, como, o quê, o quê, o quê... Quem? Você? Quando?

Aquela revista já traz pergunta e resposta na capa: “COMO ACABAR COM O CRIME ORGANIZADO? SEIS PASSOS INFALÍVEIS, BASEADOS NA EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL E NA LÓGICA DE ESPECIALISTAS”.

Se você pudesse escolher, iría pra casa agora, amaria sua mulher perdidamente, deixaria a TV ligada no programa que fosse o mais imbecil de todos – sem perder tempo com essa terrível escolha -, comeria batatas fritas e dormiria sobre a cerveja derramada, um pé com a meia, o outro, sem. Sua mulher está, de fato, ao seu lado, mas algo rodeia você, sai de dentro da sua cabeça e passeia à volta da sua cabeça, lhe expõe cenários de vida e de morte, dos caminhos de poder - poder subir, parar, desaparecer, meter a porrada no primeiro que se atrevesse. Sua mulher se queixa de um cansaço que afirma nunca ter sentido, um vazio, uma vontade de chorar, ela não sabe expressar bem o que está sentindo. Perguntar se não é TPM seria reduzi-la a alguém sem escolha; você não faz isso e, se pudesse, daria um abraço nela, diria a ela, amanhã é outro dia, você vai ver, isso passa, tudo se resolve, é só ter calma, já passamos por tanta...

Na TV, um exército dizimou trinta e sete crianças.

7.25.2006

EXPERIÊNCIA OU MORTE – OU DEUS SERÁ O GARÇOM?

Você já foi mais velho? Não? Eu já fui mais moço.

Ser solteiro é melhor que ser casado. Você já foi casado? Eu já fui solteiro.

O falso moralismo nasceu. Seu parteiro era o verdadeiro. O verdadeiro morreu. De parto súbito.

Há uma obviedade mentirosa, o que é um paradoxo, pois mentira que é óbvia não é mentira, mentira que é mentira se parece com a verdade e verdade verdadeira nunca é óbvia. Sexo é uma coisa e amor é outra. Que alguém me diga, do sexo – saudável – se ele é desamor. Se não é desamor - amor não é?

Toda vida após a morte é plausível, já que é plausível existir um código a se formar da mistura de códigos trazidos em diferentes líquidos e, misturados os códigos, se instalar um novo dentro de alguém - que é código feito de mistura de outros códigos trazidos em líquidos. Tal como esta, a mistura recém-chegada viverá a questionar a vida e a morte e, se quiser e puder, a repetir a mistura líquida de códigos. O que jamais se explicará é a vida curtinha, de natimortos, de bebês mortos, de jovenzinhos e crianças mortas, sem tempo para questionar.

Se você acha que está mais perto da morte é porque se esqueceu daquela vez em que quase foi atropelado, afogado, dormiu dirigindo, deu de cara com o cara armado, o elevador chegou dois degraus acima, o avião teve um susto e deu uma chacoalhada que criou o milagre do copo solto no ar, dormiu debaixo do viaduto, foi cachorro ou gato ou tatu e atravessou a pista, ali era só mato, agora é cimento é aço, comeu sabão pensando ou querendo que fosse comida, cheirou o cheiro que não deveria ter cheirado, bebeu do líquido que não deveria ser bebido, meteu-se – foi metida? – onde – por quem? – não deveria ter sido, olhou e viu o que era proibido, escutou e ouviu um tiro, ou então foi só um zumbido, era uma faca a cortar você a extirpar de seu dentro um apêndice. Você é que é um apêndice. A morte é que é inteira. A vida é um quase.

- Garçom! Minha quase, por favor.

7.18.2006

SONETO PARA UMA MENINA-MOÇA

Para uma menina-moça
Desprovida de artificialismos
Cheia de arte
Matemática e Línguas

Para uma menina
Que gosta mesmo é da verdade
E de verdade
Gosta mais de fantasia

Para uma mocinha
Que escreve poemas
E estuda Ciências e Geografia

Que sabe onde fica
Exatamente
O coração da gente.

7.12.2006

EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA

ESCRITÓRIO E ESTREBARIA

Deus faz criaturas únicas.
Fato
Algumas se parecem
No tédio
Inveja
Sobrancelhas
Sorrisos.
Da minha parte
Gostaria muito
De ter sobrevivido
E até agora o consegui.
Gostaria mais
Eu
Criatura única/inda
Que parecida com tantas outras
De poder variar um pouco
De não ver minha face tantas vezes em outras
Especialmente a da falsidade
A que diariamente expressa a verdade
A vontade
De estar em outro lugar.

7.11.2006

A FOTO DE SATCHMO E PIXINGUINHA

A FOTO DE SATCHMO E PIXINGUINHA



(I)

Ela tem vinte anos
Vê a foto dos dois
Negros geniais músicos
Seus instrumentos nas mãos
Trazem o formato
Do riso
Das suas bocas.

Ela se pergunta
O que será que os dois conversam
Momentos antes e depois
Do momento da foto?

Dirá Pixinguinha – Eu vim
De uma roda de choro?
E Louis Armstrong – dirá
Que acabou de chegar
De New Orleans?
Ambos dirão ter medo do fim
Do choro e de New Orleans?

Ela tem vinte anos
Percebe na foto dos dois
O que foi dito antes e depois:

O sax de Pixinguinha
O trompete de Louis Armstrong
De tanta arte inspiração que trazem

Esses instrumentos moldados
Pelas bocas daqueles dois
Cantam terna eternamente

What a wonderful world.

(II)

She’s twenty years old
She looks at the picture
Black genius musicians
Their instruments in their hands
Got the shape
Of the smile
Of their mouths.


She asks herself
What about are they talking
Moments before and after
The very moment of the picture?

Does Pixinguinha say -
I just came from a choro session?
Does Louis Armstrong tell him -
I just arrived
From New Orleans?
Did they fear the end
Of choro and New Orleans?

She’s twenty years old
She understands perfectly
What have been said before and after:

Pixinguinhas’ sax
And Louis Armstrong’s trumpet
As much art inspiration they bring together

Those instruments shaped
By the mouths of them both
Forever and tenderly all they say is

What a wonderful world.

7.04.2006

UMA DOENÇA INCURÁVEL

Saudosismo é coisa de velho ou de nostálgico prematuro; futebol é coisa de criança. Futebol é uma doença incurável adquirida na infância. Jamais será aceitável acusar um clube de propaganda enganosa se, na sua infância ou adolescência, o clube tenha tido um timaço por um ou dois anos e, depois, desandou a perder e a permanecer na lanterna. Você poderia, neste caso, trocar de clube - alegariam os cartolas por ele (ir-) responsáveis - e sua causa estaria perdida. Fato é que sequer isso passa pela sua cabeça, pois você, eu e qualquer outro brasileiro adquirimos na infância essa doença que se chama futebol.

E a doença, ainda que incurável, raramente mata. Mais que isso, é coberta de razões, nenhuma delas doentia. A razão da sua doença pode ter sido Zico ou Jairzinho, Pelé ou Garrincha, Gerson ou Rivelino, Ademir ou Leônidas, Junior ou Nilton Santos, Falcão ou Sócrates... Pode ser Dunga, pode ser Tostão. Não pode mesmo ter cura uma doença - ainda mais adquirida na infância - com qualquer motivo dessa grandeza.

Mas sua doença infantil e incurável é benigna. Viu, com seus olhos de criança - que são ainda estes mesmos que se escondem meio chorosos sob suas sobrancelhas -, essa gente que causou sua doença incurável vestindo uma camisa e vibrando com ela a cada gol, sem nunca ter beijado o escudo que ela trazia e, no entanto, você sabia que era de verdade aquela emoção. Depois a camisa do seu clube passou a ser a de um clube maior ainda, que encampava o seu, com a camisa pintada de verde e amarelo (às vezes, azul). E você vibrava e se entristecia de verdade com a alegria e a tristeza verdadeiras de reincidentes causadores da sua doença incurável, a cada gol feito ou perdido ou tomado.

Quando o seu clube ou seu clubão verde-amarelo perdia, você ficava de cabeça inchada; recebia umas gozações e, dois dias depois, estava curado da cabeça inchada. Mas nunca da doença benigna e incurável que adquiriu na infância.

Era o que eu tinha a dizer, alusivamente a esta dita seleção de 2006 e seu respectivo técnico. Desta vez, eu faço questão de assinar:

Mario Benevides.

6.27.2006

INDECISÕES

Sejamos francos: quando era para se aproximar, você se afastou; quando você me pediu socorro, eu não vi. Tive que sair correndo para desfazer a encrenca que acabei criando, por causa da indecisão.

Na hora de resolver e agir, não resolvemos e não agimos – ao contrário, reagimos - e tudo foi mais difícil.

Repare que conversamos a respeito antes, combinamos tudo direitinho, mas, pra valer, não nos entendemos. E olha que nos gostamos e nos respeitamos e somos gostados e respeitados, hein?

A indecisão é que atrapalha. Parece que vai, mas demora a ir. Fica a impressão de que foi bom, pra você e pra mim, inclusive, mas poderia ter sido melhor – aliás, a impressão que fica é que poderia ter sido pior - e que poderá, mesmo, ser pior.

É perigoso. Ninguém gosta de não saber o que fazer no momento da tomada de decisão - e sair fazendo de qualquer jeito é correr um risco muito alto.

O que era para ser prazer vira dor, ou, no mínimo, aborrecimento. Quando acaba, é mais alívio que alegria. Mas pode até dar certo, não é? Vamos continuar tentando. Despediram-se assim, para começar mais um destreino, antes de um novo desjogo, a dizerem, Assim é que o Parreira quer, a nos contar na véspera o que foi que indecidiu.

6.20.2006

A GRAVATA E SEUS ACESSÓRIOS

No princípio era a gravata.

Ginástica & Fisioterapia
Andar depressa depressa depressa
E de-va-gar.

Caixão de defunto.

Tempo para viajar
Tempo
Como se sabe
É dinheiro.

Dois litros de uisque
Um enfarte
Um transplante
Uma dieta
Um spa.

Vinhos.

Livros dos super
Dos que superaram
Dos que saíram vivos sorridentes
Da vida estratégica competitiva
Ricos vencedores
Segundo eles
É preciso comprá-los
Lê-los.

Jesus Cristo era Deus
Agora é psicólogo.

Um charuto
Uma vodka
Uma cerveja
Pelo amor de Deus
Sem mencionar o colarinho.

Buda
Agora executivo
Era Buda.

Um psiquiatra.
(No princípio era a psicoterapeuta.)

O proibido
Para quem o tem como permitido.

O adeus à barriga
Ela volta
Estufada e depressiva
Como é que pode?

Imediatamente faça amor
Diga alguma coisa inteligente
DesconTraia
Se.

HomeoApatia.
FAlopatia.

O psicopata é o piloto que vence
Passando por cima de todo mundo
Palmas para ele
Sorrindo
Aperte o nó
Dentro de você.

E pensar
No princípio
Era só afrouxar o nó.

6.13.2006

EU USO ÓCULOS

Eu uso óculos – já diziam os Paralamas do Sucesso.

Duvido que alguém o diga com orgulho – ou mesmo prazer.

Há quem chame o par de lentes apoiado no nariz de prótese; e não está errado, não.

Óculos pesam. O nariz de quem os usa fica marcado pelas borboletas que servem de contato entre o nariz e eles – os óculos. E se sua namorada usa lentes de contato, termine o namoro - ou nunca vá à piscina, praia nem cinema com ela. Namorar no carro, nem pensar.

Tenha sempre uma pia por perto. Óculos sujam. Flanelinhas só arranham os óculos – e não me refiro aos malas ou pobres diabos ou diabos mesmo que ficam passando pano sujo no carro da gente e a gente ainda paga por isso. Pronto: os desafetos Paralamas e Lobão já podem me processar, por tê-los deixado distantes entre si não mais que uns poucos parágrafos.

Óculos ficam tortos, arranham, empenam. Quebram - quando caem no chão e são pisados por quem os usa e abruptamente acorda depois de dormir assistindo a um chato - de óculos - na TV.

Ninguém fica mais intelectual por causa deles. Fica mais burro, porque, de tempos em tempos, briga com o grau das lentes – e sempre perde, ganhando mais graus.

Óculos sempre deixam quem os usa embaraçado, porque nunca sabe se deve perguntar cadê o MEU ou cadê os MEUS óculos. Esteja certo de duas coisas: eles cismam de desaparecer sempre que você os põe por instantes sobre qualquer prateleira, mesa, pia de banheiro público ou balcão de oficina mecânica; e são dois – no mínimo. São sempre plurais. Mais: eles são muitos e SABEM voar. Pronto: entre os já citados roqueiros, o cearense Ednardo há de apartá-los, me livrando de um processo criminal por abuso de aproximação.

Óculos: ame-os e não os deixe - a não ser que você goste da idéia de entregar seus olhos nas mãos de um sujeito que a vida inteira receitou óculos pra você.

Eu uso óculos. Apenas sem o orgulho característico de quem diz “Sou tijucano, com muito orgulho”.

Aí também seria demais.

6.06.2006

IDÉIAS, MELHOR NÃO TÊ-LAS?

O que não pode é a pessoa ter uma idéia e depois esquecê-la. Daquelas que não é a ficha que cai; quem cai é o próprio orelhão.

Andar com agenda de bolso pode ser uma boa idéia, desde que seja lembrado de que ela – a agenda - está no bolso.

No fim de semana, umas boas idéias passam pela cabeça da pessoa, mas dá uma certa preguiça, logo quando era possível até mesmo começar a por em pé o projeto que se desenhou mentalmente tão perfeito e bem acabado. Amanhã eu desenvolvo isso, tenho boa memória – o pensador de idéias pensa. E aí, quando chega a Segunda-feira, cadê a idéia?

Porque esse negócio de ficar ouvindo discurso cretino e imbecil, assistindo troca de insultos, chorando mais uma morte por tentativa de reação a tentativa de assalto ou de garoto vendendo ou comprando porcaria, entristece e embota o pensamento; é preciso ter idéias.

E namorar é preciso; viver não é preciso. Melhor fará quem tiver idéias no momento em que estiver namorando que instantaneamente as guarde em recanto cerebral reservado para boas e inoportunas idéias – pois não é recomendável pedir um instante, meu bem, vou anotar uma idéia e já volto.

Uma boa idéia pode, até, surgir durante uma boa conversa para, imediatamente, ser anotada na agenda de bolso. Pode-se inclusive ser generoso com o interlocutor e dizer que ele é que deu uma idéia tão boa que você resolveu anotá-la. Na verdade a idéia anotada será a sua, a que você teve, muito melhor que a dele, mas ele não precisa saber disso – a menos que quem esteja nessa conversa com você seja dado a cobrar direitos autorais por qualquer idéia que ele tenha, principalmente as ruins, más, péssimas idéias. Nesse caso, utilize-se do já citado RCRBII - Recanto Cerebral Reservado às Boas Idéias Inoportunas. E fique com a agenda coçando no seu bolso.

Mas, atenção: o RCRBII não abre nos fins de semana.

E que a idéia era boa, era.

5.30.2006

DE TECLADO, DE LUVAS E KIMONOS

O teclado é pequeno demais para nós onze. Continuemos assim, semi-non-sense, treinando boxe, observando jiu-jitsu no tatame em frente. O boxe é knock-out, black-out, o outro-out: o outro fora do ar, apagado, religado somente no momento de erguer o braço do vencedor, a ratificar: você venceu. O outro – o que perdeu - levanta-se da lona com as pernas exaustas, uma vesguice nos ombros, os olhos vergados, a falência do fígado, a embriaguez dos rins, um sangramento no sexo. Trôpego, mas de pé novamente, tem um dos braços erguidos pela mão do vencedor - que está com as pernas exaustas, uma vesguice nos ombros, os olhos vergados, o fígado nos rins, um sangramento no sexo. O jiu-jitsu continua, no tatame em frente. Obstrui, contém, aprisiona, imobiliza. Humilha. O outro. Que está sob você – que venceu novamente. Os dois deitados no tatame, cada qual num quimono, sem saber se faz frio ou calor, lá fora dos seus quimonos. Um, ativo. O outro, passivo; imobilizado; depreciado. De repente, levantam-se; e cumprimentam-se, curvando suas cabeças um para o outro.

Há uma imensidão incontável de gentes comuns, gentis, gentias, pacíficas. É a maioria. E, dentre as minorias, há uma que, vira e mexe, é mais forte que a maioria. É ela a capaz da sedução própria da serpente, da imposição, do desprezo por qualquer existência que não seja a sua própria. Essa minoria seduz, submete, derrota e usa a maioria. Até que um dia se trai, não consegue se esquivar de si nem cuspir a tempo a baba do próprio veneno, em transe com o ruído do chocalho, do guiso que traz dentro da cabeça, cabeça própria de serpente, e vai ao chão, knock-out, black-out. Fica exausta, inativa, depreciada, e ninguém a mantém desse jeito, imóvel, imobilizada, depreciada. Põe-se agora de quatro, se levanta, se joga nas cordas, procura um braço de vencedor para erguer. Encontra somente um tatame vazio. Numa lona desabitada; num estádio sem platéia.

O teclado é que é invariavelmente pequeno demais para nós doze.

5.23.2006

UM HOMEM, AFINAL, O QUE É?

(Para Maria Luiza e Maria Beatriz (Bia))

Um homem não é muito mais que sua mulher
Sua filha
Seu irmão
Sua sobrinha
Poucos pares de meias
De amigos
De amigas
Sua profissão.

Um homem não é muito mais que seus sonhos
Projetos
Ex-namoradas
Beijos
Camas.

Mulher não é muito mais que um homem
A não ser muito mais
Coragem
Medo
Valentia.

Um homem
Pode ser um picareta
Um egoísta
Safado
Corrupto
Psicopata pensando em si
Somente em si mesmo
Somente em seus planos
De vitória
Sempre discutível
Para os outros
Não para ele
Para ele seu sucesso
Esse tipo de homem
Não tem discussão
É sempre sua vitória só o que interessa
O dono da verdade
Da história
Da morte
Da vida
Alheias.

Mas aí não será um homem.
Mas aí não será uma mulher.
Mas aí não será ninguém.

5.15.2006

UM, DOIS, FEIJÃO COM ARROZ; E UM ESQUELETO

Um homem dentro de casa mexendo em seus canivetes, malas, recolhendo o lixo, olhando-se no espelho, levando a bicicleta ao médico ou o cachorro a fazer xixi e cocô, um filme. Uma canção antiga, um pai que sabia limpar canivetes, pintar paredes, lixar, envernizar, passar o Sábado. Eu nunca soube.

***

Fumar é inspirar a morte, profundamente; e expirar a vida, lentamente. Inspirar a morte é aspirar a vida. Palavra de ex-fumante.

***

Ninguém entende mais de gente que tapete. Aos gênios, serve-se a voar; aos medíocres, pisar; aos sonhadores, escorregar.

***

Limítrofes:

Atores; boêmios; poetas; cantoras de boate; freqüentadores de bingo; Bolívia.

***

Quando se anda por aí, tolamente, a olhar o mar, paralelamente aos automóveis e seus autômatos a dirigi-los, quando se vai à farmácia ou à padaria, quando se é gente de bairro, atenção: é um raro momento em que uma bomba deixou de explodir ao seu lado.

***

Mulheres e suas bundas: nada de novo no front.

***

O Word é um software puritano. Assinala bundas em vermelho e depois não deixa que elas sejam adicionadas ao dicionário. Também não permite que se as ignore.

Um puritano incorrigível.

***

Depois não me diga que eu não telefonei, que eu não escrevi, não lhe pisquei o olho, não me atrevi, não me arrisquei, não contei piada nem me zanguei. Apenas eu não era quem você queria. O que me aborrece é que isso me poderia ter sido dito na primeira vez em que eu telefonei, que eu escrevi, lhe pisquei o olho, me atrevi, me arrisquei, contei piada e me zanguei. Exatamente quando eu era quem você queria.

***

O poeta Aldo Votto me deu de presente um livro de sua autoria, com direito a dedicatória. De repente me saiu de dentro do livro algo que dizem às vezes sair de dentro do armário, mas que concluo ter saído na verdade de dentro do universo, quando ele era ainda uma casca de ovo. Seu poema ESQUELETO diz assim:

Mais triste
Que o prédio abandonado
É o que foi deixado
Em construção

Em que o musgo
Tomou o lugar da cal
E a sombra,
O lugar do reflexo.

Desfaz-se a obra
Que ainda não se fizera
E os tijolos viram tigelas
Para algum pombo citadino.

A altura, em vez de imponência,
É ameaça de acidente.
Mais que tudo,
O prédio inacabado
É oco de gente;

Espaço semi-construído,
Sequer meio vivido.

O que me fez concluir o seguinte:

Esqueleto,
Poema do poeta Aldo Votto,
Não tem recheio de carne
Tampouco é feito de osso.

Mas, por ser esqueleto de todo jeito,
Permite imaginarem-se ossos nele
E aí é que se percebe,
Entre cada par de vértebras,
Entre cada duas costelas,
Nas juntas, falanges, rótulas
Uma alma.
E, como alma gosta muito
De habitar gente
E gente que tem esqueleto,
Essas almas vão-se multiplicando
Infinitamente.

Herman Hesse
Em O lobo da estepe
Prova
Germanicamente
Que homens e mulheres são feitos de infinitas
Almas.
Tivesse lido o poema do poeta Aldo Votto,
Teria dito uma só frase
Feita de dois versos
Tão somente.

Leiam Esqueleto,
Poema do poeta Aldo Votto.

***

Ou
Como diria
Vinicius
De Moraes
Na agenda
De janeiro
Mês de férias
É preciso
Deixar todas as datas vazias
Para que haja espaço
Para o súbito
O não dito

A súbita
Poesia.

***

Muito obrigado, Aldo.

5.09.2006

DVINICIUSD

Vinicius em DVD, coisa que jamais passou pela cabeça dele, Vinicius de Moraes. Vinicius na telona do cinema, isso ele tinha todo direito de imaginar: não só crítico da arte ele foi, como viu seu Orfeu da Conceição, o Orfeu Negro, passar do palco para Cannes, e talvez nem fosse isso o que ele quisesse ou disso fizesse questão. Vinicius agora fica à disposição na prateleira, mais que em sons e imagens, em depoimentos extraordinários, como os de suas filhas, muito especialmente da mais velha, porque a que podia contar e contou mais histórias dele e o bem e o estrago que causavam, nele e em quem estivesse por perto, e por motivo que ele conheceu mais que nenhum outro: ao invés de escassez, excesso de amor. Como os de Chico, Tônia Carreiro, Edu Lobo, Caetano Veloso e Toquinho. Tom Jobim, claro, está lá. Maria Betânia. E estão lá interpretações magistrais por cantores e cantoras magistrais de canções de Vinicius & Vinicius, Vinicius & Tom, & Baden, & Toquinho, & Chico &... Os assassinos de Emmet em ritmo que ele provavelmente também não imaginaria (nem mesmo ele). Camila Morgado e Ricardo Blat a fazer teatro, teatro de verdade, sentido, profundo, interpretado, palavra, silêncio, gesto, respiração, idade, tempo. Antônio Cândido, que presença no filme de Miguel Faria Jr. E que filme, o de Miguel Faria Jr., que extraordinária peça para se ver e rever na telona, para se ter na prateleira e repetir sua imagem em 14 ou quantas forem as polegadas domésticas, a cantar, a pedir a beleza de amar.

Minha filha, quando for sua vez de ensinar alguém a ler, que seja Monteiro Lobato sua cartilha; quando for sua vez de desejar, Jorge Amado é caminho dengoso e perigoso, como deve e cabe ser; mas se for amar, amar a vida, aos homens e mulheres que são de amar em paz, é Vinicius, a abrir as portas de todos os que conheceu em vida e pensamento e cita generosa e fraternalmente em seus livros: Drummond, Bandeira, Cecília Meireles, João Cabral, Murilo Mendes, Oswald e Mario de Andrade, Rubem Braga, tantos outros, além de outros ainda de outras patriazinhas, como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Rilke...

Humano, demasiadamente humano? Vinicius.

E todas as vezes que surgirem esses doutores em coisa nenhuma a determinar qual o melhor poeta brasileiro, ouça, minha filha, ouça uma voz tanto humilde quanto sacana, que sempre responde de dentro dos verdadeiros puros:

- Quem é o melhor poeta eu não sei, mas, o melhor Vinicius, é o de Moraes.

5.01.2006

MÍNIMAS

Alguém já disse isto.

Entre a ecologia e a economia, sabe quem? A engenharia.

Eu sei, tu sabes, ele sabe. Nós calamos, vós também, eles continuam do mesmo jeito.

A pressa é inimiga da refeição.

O pai dele morreu.
O que dizer a ele,
Pêsames, sinto muito?
Coragem.
O filho dele nasceu.
O que dizer a ele,
Parabéns, felicidades, coragem?
Parabéns.

Alternativas para ordem e progresso: liberdade e respeito; ciência e ousadia; fôda-se todo mundo que o que eu quero é o meu.

Se alguém diz pra você que a paixão acaba quando o amor começa e que o amor acaba quando o casamento começa, não aumente a aposta: pague pra não ver. E pague pra ver.

O savoir faire, o know how e o saber fazer de nada são capazes diante da arrogância
Que é gêmea da ignorância.

A pressa é inimiga da afeição.

Alguém já disse isso.

4.24.2006

DILEMAS

Suponhamos que hoje seja dia de folga e que nada de sério se deva comentar. Vamos falar de pequenos dilemas diários, na vida de quem pode se dar ao luxo cada vez mais raro do lazer. Um dos grandes quem vive é o carioca da Zona Sul do Rio – não, ninguém vai falar da dúvida entre usar ou não relógio, onde guardar o dinheiro do assaltante, ou, para os mais abastados, blindar ou não blindar, eis a questão; como dito, hoje é dia de folga. Falamos do carioca que ainda vai à praia, que se convenceu de que poluição não dá em praia, um cara simples, de hábitos simples, que dá seus mergulhos, se deita na areia e dá uma andada olhando quem vem e que passa a caminho do mar, lembrando Tom e Vinicius, como quem não quer nada. Esse carioca viverá, a cada dia de sol que não for de fim de semana ou feriado a angústia de não poder ir à praia; e quando for Sábado, Domingo ou feriado, se estiver fazendo sol, terá que se proibir de passar por perto dos bares do Leblon – porque, se o fizer, viverá um dilema típico de sua alma de homem simples e que mora perto do mar sem ser numa favela: o bar ou o mar? Os bares do Leblon têm um burburinho e um chope e um tira-gosto que são impossíveis de resistir, a esse indivíduo de quem falamos pelas costas. Ele irá sofrer demais se passar por aqueles bares; por isso, resoluto, irá direto para a praia, passando por transversais somente de edifícios, butiques e lojas de sucos – e olhe lá; pois, se forem dessas que vendem sucos também de cevada, olha o dilema aí, gente. Agora, se um mineiro ler este parágrafo, sentir-se-á o mais feliz dos homens, não é? Minas não tem mar; é bar - e pronto. Dilema zero.

Tem também o do indivíduo que está com uma sede danada e, ao mesmo tempo, vontade de fazer xixi. E agora? O que fazer primeiro?

Ir ou não de terno parece ser coisa do passado. Depois que se percebeu que terno e gravata vestem a maioria dos defuntos, esse traje vai-se tornando cada vez mais raro. Hoje é todo mundo casual. A depender do nível social, a pronúncia será a inglesa; mas deixa pra lá: o bom é poder deixar o terno dentro do armário e abraçando um cabide, o máximo tempo em que assim for possível.

Um dos bons: vou a pé ou de bicicleta? A pé a gente é adolescente; de bicicleta, criança.

Telefonar ou não pra ela? Opa – devemos pedir desculpas: dissemos que não falaríamos de coisas sérias.

Mas nenhum é pior do que aquele do carioca. Portanto, você já sabe: se estiver no Rio nas redondezas do Leblon com intenção de ir à praia, nada de passar perto do Jobi, do Clip, etc.

A não ser que você seja mineiro. Ou que não goste tanto assim de praia. Dizem que está poluída, não é?

4.22.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
ROMANCE INÉDITO DE MARIO BENEVIDES
2005-2006

EPÍLOGO

“[Olga] Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as casas, as igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do Campo [de Santana, Rio de Janeiro]... Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.”


Para quem não sabe ou não se lembra, é assim que Lima Barreto conclui sua biografia de Policarpo Quaresma.

Destacar o encontro no palácio presidencial em 2017 para lembrar a marcante mudança na mentalidade dominante brasileira que se deu naquele ano foi apenas porque lá estava um descendente de Ricardo Coração dos Outros.

Contar episódios havidos desde então até 2017 como se estivéssemos em 2020, quando o ano é 2053, teve a intenção de mais uma vez demonstrar que a modernidade é sempre passageira. Se isso é óbvio é porque a modernidade o é. Surpreendemo-nos com a tecnologia e, no entanto, ela apenas realiza algo que desejamos, precisamos ou vamos precisar. Quando surge uma novidade tecnológica, pensamos, Afinal nunca precisamos disso, para que diabos isso serve? - e, pouco depois, nos fazemos outra pergunta: Como foi que vivemos tantos anos sem essa coisa? Foi assim com os barcos, o automóvel, o avião, as hidro e termelétricas, o petróleo e sua substituição, a pipoca e o micro-ondas e a pipoca de microondas, o computador de sala, mesa, mala, mão e cérebro, o celular e as células-combustíveis. Hoje, mais que nunca, vivemos do Hidrogênio. E nos perguntamos ainda Para que diabos? e cultuamos o diabo tanto quanto a Deus, em suas variadas manifestações e principalmente na ausência delas.

Ora, a origem da chamada revolução de mentalidade foi o interior do Brasil; foi especialmente o interior de Goiás que deu origem a um movimento sem liderança conhecida, primeiro de boicote quase destrutivo para depois construir algo de realmente inovador, movimento surgido de anseios seculares da história do Brasil e que produziu a grande transformação do país, sem mortes, ameaças ou imposição. Tanto assim que foi motivo de destaque do noticiário mundial a participação ativa e teatral daqueles jovens estudantes de Minaçu dos primeiros anos deste século XXI, que faziam peças teatrais na cidade naqueles tempos, e que levaram adiante silenciosas dramatizações em Brasília na dita Revolução Brasileira de 2017.

Hoje é um dia de sol de 2053 e a distribuição da renda nacional permite uma vida razoavelmente tranqüila em sociedade, ainda que sofrimento, injustiça e desacesso ocorram e sejam noticiados, tal como alienações químicas. Mas a massificação da desgraça e o terror do tráfico aliciando a infância excluída e aprisionando adolescência e vida adulta desesperadas e despreparadas se foram. A indiferença diminuiu, o desaforo do desdém pela coisa pública costuma ser logo conhecido e execrado, a competência supera o estrelismo; aliás, no mundo inteiro a competência passou a ser percebida como talento. As desavenças estão aí, parece que são entranhadas na condição não só humana quanto de todo na de estar vivo em um planeta teimoso, a girar em torno do sol curando males das transformações causadas muito principalmente e não só pelos seus homens e suas mulheres, que hoje o habitam em praticamente iguais proporção e força transformadora e produtiva.

Aquela família de que tanto se falou, a ponto de se a descrever como dinastia, e seus mais próximos, em 2020 ficaram assim.

A que vivia com uma pessoa fazia igual a tantas outras, a viver com uma pessoa, embora isso, naquele tempo, mais antes de 2020 que propriamente naquele ano, a expressão “aquela pessoa” tivesse propósitos de escondê-la – a pessoa – sabe-se lá de que preconceitos.

Ricardo IV seguiu como brilhante advogado e episódico imperador em seu roupão caseiro.

O General continuou a exibir sua nudez à sua indiferente empregada e ao amigo Almir. Ela – a empregada do General - escreveu um livro: “A vista da Avenida Atlântica do Rio de Janeiro”; ele – Almir - enlouqueceu um pouquinho.

Muitos que residiam em Minaçu de lá se mudaram; outros, para lá é que se foram.

Sérgia tornou-se membro permanente da ONU, casada com Ricardo IV só de vez em quando.

A médica que foi amante de Ricardo IV, bem, não se pode revelar seu nome.

Rita e Ricardo V continuaram casados - ele, escritor, ela, incansável pesquisadora das etnias – não só das silvícolas do Brasil como também das do mundo árabe. Secretamente ainda buscava saber de que irlandês terá vindo o “Shaw” do sobrenome materno. Já sua mãe passou a permanecer em Orlando o mínimo possível, visitando Rita onde ela estivesse, Rio, Bagdá, Cavalcante, Minaçu, Xingu.

A irmã da que sempre foi vista como a viver com “uma pessoa”, que costumava não se fixar a nenhuma companhia, casou-se; com uma pessoa.

Da minha parte, enquanto meus pais se mudaram para o Rio, preferi freqüentar a Universidade Federal de Santa Catarina a fazer qualquer curso à distância. Agradam-me mais temperaturas mais amenas, passei por muito calor onde nasci. É em Florianópolis que vivo, até hoje. De 2020 até hoje, ora, alguns morreram, outros continuam neste planeta, que permanece a enlouquecer um pouco a cada dia. Florianópolis, 22 de abril de 2053, Ricardo Coração dos Outros VI.

- FIM -

4.17.2006

SEU LINO MORREU E MEU LIVRO ACABOU

Seu Lino morreu. Se você é o persistente leitor das reincidentes visitas a este blog, sabe de quem estou falando. Seu Lino estava com cento e quatro anos. Todos os longevos dos quais se tem notícia apresentam semelhanças: alimentação muito diferente do receituário da moda, bebida alcoólica citada e moderada, amigos sim mas autonomia antes que seja cedo e... Relógio de pêndulo. Quem dá as horas é o pêndulo; quem as avisa, o cuco; quem as determina, o dono do relógio. Os ingredientes complementares são água, terra, fogo e ar. Seu Lino teve tosse, que rapidamente virou pneumonia; disse que queria comer camarão e comeu; foi para o quarto, deu um adeusinho – expressão dos de sua geração e de outras um pouco mais recentes, mas gesto, nele, inesperado – deitou-se, virou de lado e, no dia seguinte, acordou. Despertou do lado de lá, depois de cento e quatro anos do lado de cá. É assim que se vive. É assim que se morre.

Meu romance “A dinastia de Ricardo Coração dos Outros” acabou. Na verdade, acabará no próximo Sábado. Seu final já está guardado na máquina de escrever alemã Olympia que herdei do meu pai, na qual ele escrevia para minha mãe todas as vezes em que ela viajava, na mesma em que ela traduzia livros do Inglês, máquina onde escrevi textinhos e poeminhas para amigos e namoradas, que hoje é objeto de decoração e lembrança, e é na lembrança das suas teclas que pré-escrevo o que quer que escreva: é nelas onde já escrevi o final que escreverei de fato em teclado e tela de computador para publicar no blog no próximo Sábado, 22 de abril de 2006. Qual será o lado de lá do meu livro? E deste glorioso tanto quanto botafoguense blog? Do livro, o próximo passo será a busca do passado – não o da máquina do meu pai, mas o das letras impressas em papel, livro de se levar em viagem, ao banheiro, à estante, de se perder no banco do ônibus.

Se será bom de ler, aí já é outra história.

E será de outra história que viverá este blog.

Um abraço, Seu Lino. Não tive o prazer de lhe conhecer pessoalmente e sim por meio de seu neto, motorista de táxi, que hoje de manhã me disse da sua morte. Não tenho religião e tenho entretanto a certeza de que o senhor lerá esta crônica.

Se o senhor vai gostar...

Aí já é outra história.

4.16.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 - 2006

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- SETE –

Depois do silêncio, algumas pessoas se retiraram; outras ocuparam seus lugares. Um deputado fez um discurso em tom antiquado, de palanque; mais silêncio. Ricardo V desandou a escrever em seu palm-top com teclado e tela virtuais. Pediu licença para projetar o que havia escrito. O deputado ainda falou por muitos instantes, até que se calou e sentou-se. A platéia permaneceu em silêncio, que só não era absoluto por causa do entra e sai de pessoas no anfiteatro e do corre-corre de profissionais da mídia e da segurança.

O que Ricardo V escrevera, projetado em ampla tela de ultra-máxima definição levada aos olhos de cada um dos presentes via “perfect-vision”, dizia o seguinte:

“A reunião perdera o sentido. O único efeito que dela ficou foi ter vazado, como disse o General, e com isso, parte do silêncio foi rompido. O pronunciamento de Dona Eduarda calou fundo na mente dos políticos profissionais – o que, a princípio, pareceu não ser verdadeiro. Terminada a reunião, lideres da política profissional reuniram-se dias a fio, reestruturando propostas de reformulação da prática política que se encontravam engavetadas, guardadas em mídias das mais diferentes gerações tecnológicas, para depois apresentá-las à população. Riscaram de vez de seus discursos a palavra “povo”, que sempre dera a impressão de que o povo fosse uma coisa à parte deles, os políticos, e delas, as elites culturais e sócio-econômicas. Povo era sempre empregado com fins demagógicos em seus discursos – deles, os políticos profissionais, os quais assim admitiram. Povo, não; população, sim. Propuseram uma administração em condomínio, onde exerceriam suas outras atividades econômicas às claras, dedicando apenas parte do seu tempo à prática política. O Executivo e o Judiciário deveriam continuar trabalhando com dedicação exclusiva, eles pensavam, mas o Legislativo, afora estudiosos do arcabouço e detalhamento do permanente pensamento das leis do país, deveria exclusivamente se reunir para apresentar e discutir propostas, tomando decisões de interesse público, maior para o funcionamento do país, sua economia, sua ecologia, sua gente. As campanhas passariam a ser sempre por colegiados, despersonificando-as o mais que fosse possível, buscando, antes de tudo, saber, de perto e a contento, metódica e sistematicamente, o que, afinal, os indivíduos da população queriam da política, do Estado e das empresas. A consciência de que políticos são empregados da população – e não o contrário – finalmente se estabeleceu. Antropólogos, psicólogos, psiquiatras, mães, avós, avôs, pais, adolescentes e artistas foram convidados a formarem núcleos para rediscussão do interesse pelas drogas, que já começava a ultrapassar novamente o controle da oferta pela saúde pública para viciados em programas de superação do vício e o que era possível de conviver à vista grossa, como ocorria no resto do mundo, e ao jeitinho brasileiro, nas esquinas, calçadas, residências, escritórios, igrejas, bares e repartições. A necessidade de repensar e re-projetar cárceres era premente. Não admitir que a Amazônia e reservas indígenas fossem desprotegidas a ponto de dar oportunidade a potências estrangeiras de proporem administrá-las em bloco era consenso nacional. Inclusão social todos os dias passou a ser prática corrente de Estado, empresas e indivíduos. Assistencialismo, nunca mais. A tecnologia foi invadindo saudavelmente assentamentos e fazendas, propiciando oportunidades e não tirando empregos. Irrigação por gravidade foi sendo substituída pelo que há de mais econômico e eficiente em todas as regiões rurais produtoras; a repartição de bens como a água foi resolvida racionalmente – e não demagógica ou imperativamente. A mídia passou a perguntar – e não a importar, adaptar e impor – o que, afinal, a sociedade queria ver e ouvir, como gostaria de se divertir e de ser informada – e, principalmente, do que cada indivíduo gostaria de ser informado. Deslizes, desonestidades, equívocos na política e no convívio da sociedade continuaram a acontecer, mas vigiados de perto, desprezados em forma e conteúdo pela população, punidos, corrigidos, rápida e eficazmente. O Brasil não estava se tornando uma potência – mas eliminando em ritmo acelerado o fosso social e deixando de permitir que se instalasse coletivamente o desânimo que Lima Barreto conferiu a Policarpo Quaresma nas últimas páginas da biografia deste, cuja vida foi vivida nos últimos anos do Século XIX, e que tantas vezes tornara a se instalar na alma brasileira ao longo da história do Brasil, até esses dias de 2017. Desânimo nunca mais; imposições nunca mais; demagogia nunca mais; corporativismo nunca mais; inclusão, progresso econômico, financeiro e social, sempre. Democracia sempre. Esclarecimento sempre. Cultura, educação, capacitação – sempre. Assim foi.”

A platéia leu aquelas palavras projetadas bem perto dos seus olhos, permaneceu em silêncio mais alguns instantes, até que um homem visivelmente humilde e ligeiramente embriagado levantou-se e disse, alto e bom som:

- Assim seja!

Todos ficaram de pé; Sérgia desceu com Ricardo V e o General para juntarem-se a Rita e Dona Eduarda dentre a audiência. A frase do senhor humilde e gentilmente bêbado foi repetida coletivamente, unissonamente:

- Assim seja!

Todos voltaram os olhos para os políticos presentes – deputados, senadores, o Presidente da República. Este tomou a palavra e declarou:

- Assim será.

E baixou a cabeça.

Todos se retiraram. Alguns sorrisos, alguns abraços. Em silêncio.

4.10.2006

AO TELEFONE, DE FRENTE PARA O MAR

A vida vira morte de um instante para o outro e isso não é nenhuma novidade. Mesmo naqueles casos de leito de doença prolongada que se sabe é a morte chegando; mesmo quando, no momento em que ela se aproxima, provoca sonhos com outros mortos e os membros e órgãos vão sendo aos poucos desligados do cérebro, quando realmente chega, a morte é abrupta. E assim foi para um casal – ele primeiro, ela depois.

Um outro casal, com dois filhos mais velhos que os três órfãos do que falecera, herdou-os para criar. Isso faz alguns anos.

Pois ele - o que se tornou, abruptamente, pai não de dois, mas de cinco - me ligou. Fiquei preocupado, futilmente, pois ele torce para o Botafogo, como eu, e – a experiência demonstra - botafoguenses não devem se falar em dia de decisão.

Nem sempre a experiência vence e, mais tarde, quem venceu foi o Botafogo; sagrou-se campeão, contra um time de subúrbio, o Madureira – mesmo bairro da Portela, cujos ensaios eram na quadra do Botafogo. Devo me dar conta que o assunto não era - e não é - futebol. Mas podia ser samba; da Portela, inclusive. E dos mais alegres.

Eu estava na praia. Era Domingo, um dia lindo, o mar atlântico estourava na beira da praia como quem quer comemorar, sua temperatura, densidade e docilidade, nem o útero materno conseguiria fazer melhor. Pergunto ao meu amigo ao telefone, Como vão as crianças, que já não são mais crianças? O mais velho, diz ele, na Alemanha, fazendo doutorado de Engenharia; a segunda, em casa, estudando Medicina com o namorado; o terceiro, faz Educação Física; a quarta, também cursa universidade; o caçula, bem, o caçula passou para Comunicação e Educação Física e ainda está indeciso, mas sem pressa.

Não sei que reação essa história provocará em quem a ler, neste já persistente blog. Da minha parte, que a ouvi no original, confesso que fiquei rindo sozinho.

Obrigado, Leda, valeu, Zé. Vocês me fazem concluir que, perto da vida, a morte não passa de uma idiota. Abrupta e idiota.

4.07.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario BenevidesBrasil, 2005 - 2006

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- SEIS –

Rita saiu quase que escorraçada depois da sua fala. Por mais que tenha frisado ser casada com um brasileiro, mãe de filho brasileiro e residente no Brasil havia quinze anos, seu sotaque de americana causou desconforto em alguns nacionalistas, extremados demais para discutir a questão indígena com uma americana.

Perguntaram-lhe da sua experiência e formação; disse-lhes dos seus títulos e citou suas experiências no Brasil e na Bolívia – que foram consideradas episódicas por um dos presentes, tendo o Presidente da República em pessoa dito a ela que já tinham levado em consideração suas contribuições e que ela por favor desse a vez a outros presentes.

Rita agradeceu e foi saindo do auditório da presidência; seu marido, Ricardo V, foi atrás dela, às pressas, percebendo a mágoa da mulher com o visível desinteresse e debochados bocejos que percebera enquanto se expressava. O General, que havia insistido para que Ricardo V fosse àquele encontro, foi atrás dele e, atrás do General, Sérgia, mãe de Ricardo V. Dona Eduarda foi saindo um pouco mais vagarosamente que os demais. Alguém pediu a palavra, mas iniciou-se um burburinho. O General voltou trazendo Ricardo V esbaforido e ofendido pelo braço e deu a seguinte notícia:

- Esse nosso encontro vazou; todo mundo está sabendo e há uma multidão lá fora. ONGs, movimentos, estudantes, o diabo.

O Presidente da República rapidamente acionou a Segurança do Palácio; o chefe da Segurança pediu-lhe calma: “A situação está sob controle”. O Presidente deu a notícia aos demais e pediu que o General tomasse a palavra – e brincou: “O Governo, não; só a palavra, General.”.

O General expressou-se pela manutenção das reservas indígenas dentro das fronteiras e sob a responsabilidade exclusivamente do Brasil. Propôs que fosse feita uma revisão geral da estrutura orçamentária do país, e que as nações interessadas na independência das tribos fossem convidadas a contribuir com recursos para manter as tribos protegidas, em seus limites de terra, saúde e bem estar, conservadas suas tradições. Uns balançaram a cabeça; outros aplaudiram. O Presidente da República disse “Muito bem, está aceita a proposta”. Foi quando Rita e Dona Eduarda retornaram; o General, percebendo os olhos mareados de Rita, pediu a Ricardo V que tomasse a palavra.

Ricardo V convidou a mulher para que o acompanhasse no palanque; ela não quis. Alguém chegou de fora correndo e foi ao ouvido do Presidente; este fez um ar preocupado, baixou a cabeça e disse:

- Mande-os entrar.

Ricardo V percebeu o mal estar e aguardou. Cerca de duzentas pessoas tiveram acesso ao ambiente; mantiveram-se de pé e, aos poucos, foram-se sentando.

Deram a palavra a Ricardo V novamente. Enquanto ele foi falando, mais umas trezentas pessoas entraram no auditório recentemente reformado e foram tomando seus assentos. Algumas preferiram ficar de pé.

Ricardo V disse assim:

- O que está acontecendo já era para ter acontecido há muitos anos e é só a ponta do iceberg. Muito bom que tenha havido um começo de solução para o tráfico em 2014 e que a situação nesse aspecto esteja hoje melhor do que foi até 2010. Porém, o avanço nas instituições e procedimentos da democracia brasileira, as práticas da política, foi pífio depois da crise de 2005 e 2006.

- Pífio? – um senador indignou-se. “Pífio” – repetiu Ricardo V.

Alguns da platéia aplaudiram; um chiado partido da mesa pediu silêncio. Mais pessoas entraram no ambiente; alguns esparsos aplausos para o que Ricardo V havia dito. Este continuou:

- O tráfico já começou a se reorganizar novamente.

- Protesto! – um deputado presente à mesa interrompeu. O tráfico não está na pauta! Não foi considerado crítico, não foi incluído na lista de consenso! Desde 2014, como declarou mesmo o senhor, nobre escritor futurólogo, a questão foi equacionada!

Ricardo retomou a palavra:

- A questão das drogas só teve uma solução temporária; atenção, deputado, atenção, senhores: este silêncio coletivo diz muito mais coisas do que se pensa. Cuidado, senhoras e senhores: é como se tivéssemos perdido um elo qualquer com aquilo que sonhamos. Tem sido assim sucessivamente. O descrédito com relação à política em 2005 e 2006 foi o começo dessa sensação, deste... vazio. Individual e coletivo.

- Superado! Foi superado! – gritou o mesmo deputado, batendo com as mãos sobre a mesa.

- Temporariamente, deputado; só temporariamente. Ainda viveríamos, como vivemos e vivenciamos, terríveis crises, incluindo a convulsão social de 2010.

- Ora, o senhor vai voltar no tempo? Viemos aqui para tratar do presente e do futuro!

- Deputado, o senhor não ouviu o que disse Dona Eduarda?

Fez-se um breve silêncio.

4.04.2006

SS: O SONETO SUBVERSIVO

Pode ser que um dia a turma fique esperta e perceba/
Que esse negócio de privatizar primeiro/
Obter investimentos privados/
E depois reestatizar//

Com discursos inflamados/
Isso é bem público/
Pertence ao povo/
Boliviano venezuelano brasileiro//

Fica sendo bom negócio pra quem vive/
De discurso/
Quem vive de investimento//

Fica a ver navios/
Quem simplesmente vive/
A ouvir discursos.///

4.01.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 - 2006


TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- CINCO –

Ricardo V apresentou-se à mesa, deixando Rita e Dona Eduarda na primeira fileira do anfiteatro do palácio de governo, onde algumas poucas pessoas já se encontravam, provavelmente tão inesperadas e inexpressivas para a maioria como as duas.

Foi dada a palavra a Ricardo V:

- Acredito que este fenômeno silencioso, de apatia popular em relação à mídia e à política no Brasil, possa ser melhor explicado por Dona Eduarda, a quem gostaria de apresentar a todos e passar a palavra.

Houve alguns protestos. Alguém disse a Ricardo V que seu atraso havia-lhe impedido de acompanhar importantes debates, que uma lista de pontos de consenso já fora estabelecida e que o fenômeno do silêncio e apatia coletivos já havia sido compreendido pelo grupo de notáveis presentes, pelo menos em tese.

- Pois o que estou propondo é que Dona Eduarda o explique na prática.

- Quem é Dona Eduarda? – quis saber um dos que protestaram contra o atraso e as companhias de Ricardo V.

- Uma residente num dos assentamentos agrários do norte de Goiás.

Depois de algum silêncio, Ricardo V convidou Dona Eduarda a subir no palco e acessar o palanque ao lado dele.

- A palavra é sua, Dona Eduarda – ele disse.

- Boa tarde – ela disse, com seu sotaque característico da sua região. Meu nome é Eduarda das Neves, moro em Cavalcante, município do Estado de Goiás, em assentamento com mais vinte e três famílias, perto da comunidade kalunga. Vivemos ali por um tempo com muito pouca água, depois instalaram pra nós uma irrigação que precisava pagar pela energia, depois nós fizemos um sistema por gravidade com ajuda de uns engenheiros que moram por lá. Hoje temos água e energia. Temos a tele-multi-mídia e as redes, tratamos da nossa água, cada lote de terra, cada residência paga por sua luz e energia ao nosso condomínio. Nossa associação paga pelo acesso à água que é canalizada, paga pela luz, pela eletricidade. Temos bateria solar também, temos desses cata-ventos que também geram energia, temos uma fábrica de utensílios pra nossa lavoura, temos bons equipamentos de aragem. Temos um contrato pra vender nossa produção no comércio local, temos de um tudo por lá.

- Não falta nada, então? – perguntou alguém, com alguma ironia.

- Respeito. O que falta por lá é respeito.

- Da parte de quem? – quis saber o General.

- Tão fazendo pouco da nossa inteligência. Qualquer pessoa acessa qualquer das duas redes, lê os noticiários que chegam em papel, vê as notícias na tele-multi-mídia e é tudo igual. Tudo repetido, e parecem que querem alegrar a gente ou então entristecer, como se nós fôssemos idiotas. Nós temos escola, temos livros, temos tudo que a cidade tem.

- As cidades também estão em silêncio e sem acessar nem as redes nem a tele-multi-mídia – explicou Sérgia.

- Ninguém agüenta mais. Depois não dá pra entender como é que ainda tem tanto pobre no Brasil, muita coisa já evoluiu, eu tô com sessenta e cinco anos, já vi foi coisa. Aí os políticos visita nós, às vezes vão lá, outras vezes aparecem de repente na tele-multi-mídia, nos mandam mensagem com a cara deles nas telas de bolso e de mesa, no banheiro, na sala, no quarto, na lavoura, e dizem sempre a mesma coisa, tudo falando empolado, tudo agora tem diploma e nós também tem, tudo é profissional, treinado, e ainda tem muita miséria no Brasil, tá errado, não é justo nem é certo nem inteligente.

- O que que a senhora pensa dos índios? – perguntou o Presidente da República.

- Dos índios? Onde eu moro não tem.

- Posso falar? – ofereceu-se Rita, levantando-se.

3.27.2006

O QUE VOCÊ QUER LER?

Mas afinal, o que é que você gostaria de ler?

Da minha parte, li que a candidatura da oposição já nasce com suspeitas de favorecimento de verbas para aliados e que a da situação, enquanto permanecer no cargo, trocará de ministros, tanto os que pretendem se candidatar a cargos eletivos como aquele sobre cuja cabeça pairam tantas suspeitas e acusações.

Li que o tráfico modernizou-se, lançou a cota extra gratuita, de prêmio, disponível a cada dez compras.

Que há mares antes navegáveis e agora, intragáveis.

De um ator de novelas que está fazendo novela que diz ter-se cansado de fazer novela; perguntassem a ele, Você já pensou em quem as assiste?

Quebraram o sigilo bancário de um caseiro! Essa, sim, deveria ser a manchete do ano.

Consta da capa de uma revista que uma cantora afirma e pergunta, Sou bi, e daí? Pois é: e daí? Mais precisamente: e nós com isso? Se ela pelo menos cantasse – houve um tempo em que cantoras cantavam! Não é fantástico?

Saudosismo? Nada disso. Sentir saudades é mirar do alto de calças curtas botas de cano longo, marchando no meio da cidade. Parece que foi ontem – e foi: as tropas saíram por aí PDV porque lhes roubaram as armas debaixo dos narizes. Caramba! Parece que foi sempre.

À procura de um tema capaz de responder à pergunta lá de cima – única realmente importante para esses dedos que vão pintando de preto uma tela em branco, tolas teclas ritmadas ao invés de poéticos pincéis ou nanquins ou grafites, tela que se desfará depois em mudo e inexpressivo cinza e não uma capaz de fixar os dedos de Diego Rivera ou a multifacetada sua mulher Frida Callo -, passei por um quarto de dormir onde de fato dormia alguém, uma menina de doze anos, com um sorriso nos lábios, metade do seu rosto na penumbra, metade clareada por uma nesga de sol que penetrou pela janela sem pedir licença. Não sei se era isso que você queria ler – provavelmente não –, mas era isso o que se tinha a dizer. Mais: era isso que se tinha de dizer.

Por escrito.

3.25.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- QUATRO –

De nada adiantou que o país fosse auto-suficiente em petróleo a partir de 2010, por causa da bem explorada capacidade do sub-solo “on” e “off-shore”, do uso massivo do álcool nos automóveis e da expansão da biomassa na energia elétrica: foi em 2010 que manifestou-se a desorganizada e perigosa convulsão social, que saiu pipocando pelas cinco regiões geopolíticas do Brasil de maneira pavorosa. Ainda era o país da concentração de renda, fosse nos períodos de crescimento, mais ainda nos de contenção.

Agora era diferente. Em 2017, ninguém explicitava seus anseios e frustrações. Ninguém sequer cruzava os braços, muito menos os que perderam seus trabalhos por força do boicote coletivo aos meios de comunicação e à política. Uma proposta de governo militar, “saneador”, foi recebida do mesmo modo: ao invés de indignação e palavras de ordem ou acolhedora aclamação, silêncio. Foi quando o presidente da república, em conversa com o General Fernando, que fora convidado para apaziguar os ânimos das tropas em regime, foi por este convencido a convocar homens de letras, sociologia e antropologia (dentre eles, Ricardo V e sua mãe, Sérgia), matemáticos e físicos, (estarrecidos) políticos, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, (desesperados) profissionais de comunicação e reportagens, empresários e sindicalistas. Formou-se um fórum de setenta e oito pessoas, reunidas no palácio de governo, em Brasília - fato este que foi noticiado, para audiência alguma.

Daquele seleto grupo, onde a presença de mãe e filho – Sérgia e Ricardo V – só não era espantosa porque, ela, há muito defendia o ponto de vista de que a raiz dos problemas era a cultural e enraizada exclusão e má-distribuição da renda, ele, por ter ensaiado algo de parecido com o que estava ocorrendo, em livro que se tornara best-seller, 55% eram homens, 45% mulheres, dos quais, 15% homo ou bissexuais; 58% mestiços e os restantes 42% predominantemente negros ou brancos em, praticamente, igual proporção – o que não ocorria relativamente à distribuição geográfica: região a região, havia mais paulistas, sulistas, nordestinos e radicados ou nascidos no centro-oeste que cariocas e nortistas.

Depois de algumas horas, surgiu, afinal, uma lista de pontos de consenso:

As comunicações se haviam tornado insossas, repetitivas e sem crédito. Programas de entretenimento das massas haviam chegado ao auge da banalização ou mesmo da boçalidade;
A política, por mais esforços que tivessem havido para torná-la o mais transparente possível referentemente à obtenção de recursos e à sua utilização, caíra em terreno tão árido quanto o que estavam experimentando as comunicações;
Era preciso de uma vez por todas haver uma definição da causa indígena: criar uma nação independente, fomentada pelos países interessados na medida – o que causava tenebroso mal estar em alguns setores, como o militar – a Nação Xingu era o exemplo mais citado -, manter as reservas como se encontravam, sabendo de antemão que as verbas públicas para tanto pareciam ser eternamente insuficientes, órgãos indigienistas dando a impressão de abandono, seus escritórios, até de falta de higiene, ou aculturar e absorver de vez os silvícolas remanescentes na sociedade cidadã - o que era duramente combatido por ONGs, governos nacionais e internacionais ou quem quer que se apresentasse disposto a abraçar a causa que fosse e onde fosse;
Ações do Ministério Público, do Governo e do Judiciário em suas outras esferas para punição, anistia parcial e repatriamento de capital transferido para o exterior por brasileiros, abastados ou agraciados (lícita e ilicitamente) mas descontentes com a tributação e respectiva utilização em solo pátrio, de forma ilícita (ainda que tacitamente aceita como usual e correta) não eram percebidas pela população, ou, se o eram, era nada capaz de causar emoção ou contentamento – nada parecia mais despertar ufanismo, desejado por muitos como algo a deixar perceber satisfação patriótica, nem mesmo o velho futebol;
A concentração de renda ainda persistia, embora a fome e o analfabetismo tivessem atingido níveis bastante baixos frente aos padrões da história do Brasil;
A tecnologia avançava em seu ritmo já assimilado mundialmente, ou seja, vertiginoso, o que significava que existiam lares de chão de barro e/ou telhado de palha e/ou parede de adobe no Brasil e mundo afora, onde a tele-multi-mídia exibia toda sua exuberância, nas paredes e bolsos e mesas.

Foi neste momento, quando a lista de pontos de consenso foi concluída, que chegou Ricardo V, acompanhado de duas mulheres: sua mulher, Rita; e Dona Eduarda - até então, ilustre desconhecida. Ele foi recebido com alguns aplausos e expressões entre a recriminação e a estranheza pelo seu atraso; as duas, como se fossem penetras de uma festa para a qual sua presença não havia sido nem muito remotamente cogitada.

Gelidamente.