2.04.2018

Caros Amigos - De poetas e política








Vendo a foto, Rosa comprovou uma vez mais a infalibilidade da intuição feminina: Esses seus amigos parecem educados e gentis, ela me disse. É o que são: Fulgêncio Duarte, a quem chamamos Fuja, é o de bigode; Aldo Votto, o que agora usa barba, com direito a bigode também. Faltou nosso mestre Julio Pavese, codinome (mais que apelido) Tucha – um permanente viajante em todo tipo de meio de transporte, de motocicleta a carro e avião, sempre com a máquina fotográfica, e duvidamos que de vez em quando um jegue não se interponha e se acrescente aos seus percursos.  Já o título desta crônica remete a uma revista, que tem como slogan “a primeira à esquerda”. Assim são esses meus amigos: de esquerda. Idealistas, acreditam que seja possível a convivência pacífica e camarada entre homens e mulheres em sociedade, trabalhando para o Estado, em prol da vida societária não-competitiva, solidária e feliz. Nesse encontro, fui menos evasivo que das outras vezes. Usei uma expressão idiota de um período idiota da história política mais ou menos recente: me defini como um radical de centro. A expressão surgiu meio como gozação aos que não queriam se declarar como nem de esquerda nem de direita. Intuitivamente, ainda muito moço, foi assim que me situei, menos por convicção que desilusão. Mais informado, fui percebendo que não acreditava na mão mágica do mercado resolvendo todos os nossos problemas sociais, econômicos e correlatos, nem no Estado perfeito, empregador de todos e em prol de todos, igualmente magnânimo em soluções. Tudo muito teórico, esquecendo-se de que mercado e Estado são ocupados por gente, com diferentes aptidões, interesses e ganâncias de poder e riqueza. Pior de tudo é que o posicionamento de centro, em dado momento definido pelo ex marxista Norberto Bobbio como socialismo liberal, e pelo ex integralista Miguel Reale como liberalismo social, no Brasil, descambou para algo puramente fisiológico, apelidado de centrão. Começou no governo Sarney e se mantém até agora, em tempos de Temer, como fiel da balança das decisões do legislativo em conexão com o executivo, em mero jogo de interesses declarados ou escusos. Fato é que não sou radical de coisa alguma. Sou verdadeiramente utópico, imaginando que um dia teremos abnegados amadores, sem remuneração, decidindo em condomínio o que de fato poderia ser melhor para a sociedade – assim está registrado em meu romance de 2007 “A revolução do silêncio”. Indo além, sou um anarquista, imaginando uma sociedade evoluída, capaz da autogestão. Comunidades e bairros com poder e orçamento para suas questões, cidades, estados e união com menos poder que hoje possuem: uma república realmente federativa, decomposta em células cada vez menores e mais autônomas, economicamente e em matéria legal. Isso é o que sou no mundo da lua; voltando à Terra, em busca de uma conciliação, líderes moderados e diplomáticos, lidando com gente com escola pública em tempo integral até a universidade, saúde, saneamento, segurança, moradia, preparada para competir (palavra proibida em certos entendimentos marxistas) com o mundo privado, com mais recursos. Isso nada mais é do que o Estado do Bem-Estar Social, que nossa Constituição Federal defende, ou delineia. Não acontece porque quem tem o dever de defendê-la a desrespeita; quem pode ter conhecimento dela, minimamente dos seus princípios e valores, a ignora; e quem é iletrado talvez nem saiba da sua existência.

Fato é que, na noite da foto, falamos de história, romances de ficção e, sim, política. Com nossas sutis diferenças do modo de pensar, chegamos ao consenso de que o Brasil se encontra ameaçado pelo fascismo; há muitos jovens desmotivados em relação à política, certos de que direita e esquerda no Brasil são farinha do mesmo saco; os partidos estão desacreditados; a agressividade vem cedendo a um silêncio de distância e desconsideração entre pontos de vista diferentes; tudo isso a nos dar a sensação de que, sim, o fascismo está latente em nosso país.

Nós os três presentes e nosso mestre Tucha trabalhamos em diferentes momentos com questões socioambientais relacionadas a empreendimentos – o que significa a exata convivência do capital com o meio ambiente e suas comunidades periféricas. Essa prática é que nos traz a um ponto de entendimento que transcende os conceitos clássicos de esquerda e direita, porque é a essência do convívio de estranhos que se tornam vizinhos, das relações de poder entre o comunitário e o empresarial, reivindicações e negativas, até o enfrentamento e o entendimento. Cada passo, cada avanço nessa área é uma vitória compartilhada. Transcende-se Estado, empresa, diferenças: o microssistema sociológico e socioeconômico é o que está em jogo, no tabuleiro balouçante, de pernas bambas. Precisa funcionar. E às vezes funciona, e assim nos faz pensar, por que não no resto, no macrossistema?

Começamos nossa noite no bar Alma Celta, que fica numa travessa no Centro Histórico de Florianópolis. Dois ou três chopes acompanhados de Fish and Chips, e fomos para a Avenida Hercílio Luz, até pararmos no Bar do Gringo, anexo ao hotel Oscar, para fugir do vento que desafiava os frequentadores dos barezinhos de cadeiras e mesas de plástico na calçada central da avenida, espécie de modesta, mas simpática rambla de Floripa. Mais uns dois chopes, saímos de lá, eu, com um livro que o poeta Aldo me deu de presente, com uma dedicatória que me comove a cada vez que a leio. Fui para casa lembrando de outros dois poetas: Vinicius, que, em uma crônica, se dirige à poesia e se declara sóbrio dentro da noite sem destino; e Borges, ao dizer “Felizes os que não querem ter razão. A razão é de todos ou não é de ninguém”. Borges disse mais: Felizes os felizes. Assim fomos embora naquela noite sem destino - ela, a noite, porque cada um de nós tinha o seu destino: sua casa. E nenhum querendo ter razão, por isso felizes porque felizes.
mariobenevides.blogspot.com.