10.09.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E NOVE –

Era 2005. Hugo Chaves, presidente da Venezuela, com exemplar capacidade de comunicação e persuasão, defendia seu governo como democrático; salientava ter desenvolvido programa de medicina comunitária com auxílio de Cuba, e afirmava que cada favela venezuelana passara a contar com um médico residente; propunha uma aliança latino-americana muito mais ampla que o combalido Mercosul, com troca de investimentos entre os países; dizia-se um soldado, para sempre soldado, que vivia para a família, sem grandes ambições, até que um dia despertou para a pobreza da sua gente. Um político-pastor americano propôs publicamente seu assassinato pelo governo dos Estados Unidos, alegando ser Hugo Chaves um agente do terrorismo internacional. Hugo Chaves dizia com todas as letras que estava armando a população para defender o país de um provável ataque americano – pois, ao invés de rechaçar a proposta de assassinato daquele chefe de estado, Bush, presidente dos Estados Unidos, prestigiara o pastor-político, encarregando-o como um dos responsáveis pelo projeto de reconstrução de Nova Orleans.

No Brasil, poucos anos antes, no governo de Fernando Henrique Cardoso, em dado momento, todos comentavam que o homem com mais poder de Estado não era ele, mas sim um senador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães. Um publicamente desafeto de Antônio Carlos, senador pelo Pará, Jader Barbalho, passou a denunciar atos que tinha como pouco elegantes do seu colega baiano. E vice-versa. Fernando Henrique governou até o final do seu segundo mandato, final este já sem a presença dos dois senadores desafetos, que renunciaram, cada um por seus motivos, tidos por muitos como não muito elegantes.

Antes ainda, na primeira eleição direta para a presidência após a ditadura militar e o mandato civil de José Sarney, Fernando Collor tinha um homem forte em seu governo, chamado PC Farias. Uma desavença entre Fernando e seu irmão, Pedro Collor, que se disse prejudicado em negócios familiares de comunicações e iniciou uma série de denúncias de extorsões e corrupção, redundou por fazer cair o governante, por impeachment. Já no governo Lula, o homem forte foi, por bom tempo, José Dirceu. Ao chegarem ao noticiário denúncias de corrupção e extorsão comandadas dos escritórios do Correio Nacional, que envolviam diretamente um político com exemplar capacidade de comunicação e persuasão, chamado Roberto Jéferson, este não teve dúvidas: denunciou o “mensalão”, pago a vários deputados de diferentes partidos como condição para que votassem a favor dos projetos governistas. José Dirceu perdeu seu cargo no governo e Roberto Jéferson, seu mandato.

Ricardo Coração dos Outros IV, enquanto lia os primeiros rascunhos do que viria a ser o grande best-seller do seu filho, “A Revolução Brasileira de 2017”, publicado em 2009, revolução que, segundo o autor, aconteceria “pela influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da sua plebe e a involuntária conspiração de Newton e Gauss”, relembrava não só daqueles acontecimentos, então muito recentes, mas de outros que a história da humanidade tinha para contar, e comentou com as filhas gêmeas, Ricardina e Olga – esta, na companhia da pessoa com quem se casou, e Ricardina com o sobrinho Ricardo VI dormindo no seu colo, então com 3 anos:

- A descoberta mais importante do irmão de vocês não foi dele, mas de Newton: a sua Terceira Lei, ação e reação. A humanidade é isto: nada mais que isso.

As filhas e a pessoa com quem Olga se casou o olharam como quem nem concordava nem discordava; ainda não haviam lido os rascunhos do irmão e geralmente não prestavam atenção quando ele comentava qualquer coisa, quando vinha ao Rio. Ricardo IV concluiu, ao levantar-se com os papéis nas mãos e dirigir-se ao banheiro:

- A curva de Gauss vá lá, se aplica; mas faltou uma quarta dimensão: a arrogância. Que é gêmea da ignorância. Todo arrogante se defende da ignorância que lhe é própria. E os arrogantes caem por terra – assim disse o pai de Ricardo V e saiu e trancou-se no banheiro. Diria depois ter-se angustiado com as seguintes perguntas que se fez: “Chaves e Bush eram arrogantes? Ignorantes? Cairiam um dia derrotados por isso? E Lula – era arrogante? Teria sido arrogante quando discursou em Davos, na Suíça, para artistas como a Sharon Stone (atriz de cinema que ficara muito famosa por uma cruzada de pernas), falando em ‘um mundo mais justo, mais equânime’? Ou quando discursou na ONU, sobre a fome? Ou quando sempre e tanto faz da fome seu refrão? Ou quando afirmou que nenhum cidadão é mais ético que ele? Arrogante? Ignorante? Ou sincero?”.

Era Domingo de tarde. Ricardo IV foi ao espelho de cristal da sala envolto em seu roupão, tendo por baixo o pijama que usara na sesta e, perfilado, perguntou-se:

- Ricardo Coração dos Outros IV: sois um arrogante?

E retirou-se.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Mário,

Deixei meu comentário aí embaixo, na "Cidade Adulta", porque, entre outras razões, de certo modo vivi os últimos tempos da adolescência dela e aos poucos, vou me despedindo, deixando pedaços, quem sabe os mais saborosos, no prato da biografia de quem se sabe andejo, menos por escolha e mais por circunstância.
Um abraço,
Aldo Votto