3.31.2021

DE COMO SER PAI - V- SEXO, DROGAS E ROCK 'N' ROLL

 Ao chegar em casa, a sala cheia de adolescentes, Rosa me telefona e conta que o cheiro é de tênis com chiclete. Minha resposta foi:

- Que bom que o cheiro é de tênis com chiclete. Que continue assim por um bom tempo.

Ainda quando Maria Luiza fez 16 anos, um dos convidados trouxe outra questão:

- Maria Luíza, essa cerveja é sem álcool, não é?

O medo dos pais em relação às drogas é tão lícito quanto ilícita é a maioria delas.

A legalização de todas as drogas precisa ser discutida, e precisa ser discutida com a participação de especialistas nos riscos que as drogas representam para a saúde dos indivíduos e nos riscos que elas representam para a saúde da sociedade – mas sem tapar olhos, ouvidos e bocas para isto que a proibição e o combate armado às drogas têm representado para a sociedade. Na opinião deste pai, muito mais do que ganhos, perdas, principalmente de vidas.

O que não se pode é deixar de debater o tema. Como não se pode generalizar, é claro: cada droga tem seus efeitos e consequências. Mas o debate necessariamente tem que acontecer, ser aberto à sociedade, em linguagem compreensível para a maioria, e – tudo isso é sugestão – começando por se tentar responder a algumas perguntas:

- Por que há tantas drogas ilícitas?

- Por que há tantas drogas?

- Por que algumas são lícitas e outras não?

- Por que desde sempre, na maioria das sociedades, a grande maioria das pessoas prova e permanece experimentando bebidas alcóolicas e diferentes tipos de fumos?

- Por que as pessoas se drogam, por que algumas abusam, por que outras se viciam, por que, outras ainda, preferem as proibidas?

- Todas as proibidas devem permanecer proibidas?

- Uma vez legalizada uma droga, que tipo de esclarecimento haverá sobre efeitos e possíveis consequências do seu uso? Quem vai explorá-la e quem irá vendê-la?  

Enquanto a discussão não vem, dentro de casa a melhor droga de todas se chama diálogo. Se a criança ou o jovem não traz o assunto, seus pais ou responsáveis devem trazer, é o que sugere a experiência. Alertar com sinceridade, com informação, buscando se informar para poder informar e orientar, sem medo de revelar seus gostos e fraquezas; sempre com abertura para discutir o assunto, sem jamais tratar deste ou qualquer outro assunto como algo que represente vergonha ou tabu.

Pois há quem se envergonhe de ter um filho drogado, como há quem diga preferir que o filho ou a filha se drogue a que ele ou ela seja homossexual.

Como assim?

A teoria de que o homossexualismo é doença e tem cura é própria de charlatães. Não precisa refletir muito para perceber que desejo é descoberta, muito mais que escolha, tendência ou mesmo orientação. Basta que a própria pessoa reflita sobre a primeira vez em que sentiu atração sexual por alguém, e em todas as outras em que essa atração aconteceu por aquela, essa ou outra pessoa, e assim continua acontecendo: terá sido racional ou instintiva a atração? O desejo, terá sido escolha? Ora. Seja feliz e faça os outros felizes, como disse um cronista e compositor chamado Antônio Maria.

Todo mundo sabe que a droga que se compra na farmácia serve para curar ou controlar alguma coisa, de coriza a hipertensão. A droga que se compra no botequim ou no mercado se chama cigarro, cachaça, uísque, cerveja, vinho... Todas podem dar prazer e dor – de cabeça a outras bem piores. Mas estão lá, à sua, à minha, à nossa disposição. Outras drogas só podem ser encontradas em pontos de drogas. O vício em uma droga que se encontra no botequim ou no mercado só se difere do outro, que se manifesta por uma droga ilícita, porque este último traz um risco a mais, que se chama polícia, além de um outro, chamado traficante.

Nesse ponto, o que se pretende meramente observar é que vício é vício, vício é doença, que precisa de tratamento. Quem prefere ter filho viciado a ter filho homossexual está dizendo que prefere ter filho doente a ter filho saudável.

Sexo é assunto para se tratar com a mesma naturalidade que qualquer outro. Religiões proibitivas de sexo só por prazer, que Deus representam? Se as religiões defendem que Deus existe e a tudo criou, como seria Ele capaz de proibir o prazer que Ele mesmo criou, às criaturas que Ele criou?

Se foi Deus ou não que nos dotou de inteligência e capacidade de comunicação, o que se sugere é fazer uso intensivo e extensivo de uma e de outra. Seria fazer pouco de uma e de outra discorrer sobre de como se comunicar para fazer sexo e de como fazê-lo sem procriar, sem se expor a doenças, e assim por diante, não é mesmo? Deixar de conversar com a filha e o filho sobre sexo e deixar de falar sobre sexo nas escolas é disseminar desinformação, desorientação, medo, preconceito, tudo próprio de charlatães e de manipuladores. O que é para ser saudável pode virar doença, da alma, do corpo, da mente. Vamos de Antônio Maria de novo?

Eu nasci em novembro de 1955. Nos anos 60 do século passado eu era um garoto, 10 ou 15 anos mais moço do que aquele que amava os Beatles e os Rolling Stones e foi para a guerra do Vietnã. Sexo, drogas e rock ‘n’ roll é um jargão dos anos 60, dos hippies, dos Beatles, Rolling Stones e tantas outras bandas. Janis Joplin, Jimmy Hendrix e muitos outros, ilustres ou não, se foram por causa das drogas. Sim, havia a ideia de que drogas fossem libertadoras, mas elas já existiam desde muito antes; e o que havia mesmo naqueles anos, por trás do jargão, no original em inglês, sex, drugs and rock ‘n’ roll, eram mensagens como paz e amor; faça amor, não faça a guerra; liberdade, liberdade, liberdade – de ir e vir, de se vestir, de como usar os cabelos, de se expressar, de como trabalhar e amar, de como viver.

Falando em bandas, nas bandas de cá, Mutantes com Rita Lee, Chico, Gil, Caetano, Gal, Bethânia, Milton Nascimento e o Clube da Esquina, Tom, Vinicius, Edu Lobo, Jovem Guarda... e a ditadura.

Como fechamento desta série, ou pelo menos da sua primeira parte – ou temporada -, fica mais do que nunca a vontade de sugerir e repetir o que Antônio Maria deixou como título de um apanhado das suas crônicas. Em vez de comemorar a ditadura, em vez de se calar...

Seja feliz e faça os outros felizes.

3.29.2021

DE COMO SER PAI – IV – ORGULHO, PORQUE NÃO TE QUERO

 

Há variados significados para orgulho e vergonha, mas, em vez dele e dela, prefiro prazer e dor, alegria e tristeza, contentamento e descontentamento. Orgulho fica muito perto da soberba, e vergonha, para começar, é para quem tem vergonha. Tímidos – palavra de quem já foi muito tímido – têm vergonha de algo que não sabem o que é, e ninguém sabe o que é que faz o tímido ter vergonha quando em dado momento está em algum lugar onde talvez até tivesse vontade de estar. Mas a mais extrovertida das pessoas há de já ter sonhado em se ver nua em um ambiente em que todas as outras estão vestidas, e acordará com muita vergonha, que logo dará lugar ao prazer de perceber que foi apenas um sonho. Onde ficou o orgulho nisso tudo?

O orgulho do novo cargo, do novo emprego, da nova roupa, de algo conquistado por si - ou pela filha ou pelo filho. Por quê? Não será o sentimento mais imediato e espontâneo o do prazer, o da alegria, o do contentamento? Por que seria o orgulho o sentimento a aflorar de alguma conquista? O de quem pensa “Eis-me aqui em posição de superioridade, de destaque, por minha causa ou por causa da minha cria”? MINHA cria. Quando a cria se sai de algum modo mal, o mal deixa de ser relativo e passa a ser absoluto.

- Ah! Que vergonha da minha cria! Nem parece filha minha ou filho meu!

Se fosse de um lado contentamento e não orgulho, se fosse do outro descontentamento e não vergonha, a comemoração seria certa, pela vitória no primeiro caso, pela possibilidade de virar o jogo no segundo. A risada viria do prazer da vitória e de achar graça do tombo que se levou e do qual se pode levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima, como na canção de Paulo Vanzolini, o mesmo de Ronda (e que ninguém passe vergonha por não saber disso).

Orgulho é um paletó roto que nos veste mal, que só serve para quem tiver a grandeza de um Carlitos. Vergonha é para quem tem vergonha, não é coisa de desavergonhados, de sem-vergonhas. Para quem tem vergonha, ela passa com um sorriso, com um gesto de quem limpa as mãos, porque tem a alma limpa. Grande. Quando tudo vale a pena, e você acertou ao lembrar de Fernando Pessoa.

Filhos, filhas não são para nos fazer sentir orgulho nem vergonha. São para compartilhar conosco alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, conquistas e fracassos, todos sentimentos genuínos e espontâneos. Imediatos. Orgulho e vergonha são elaborados na oficina da incompreensão da real dimensão do que seja sentimento. Prazer e dor, não. Esses não precisam de elaboração nem de fórmula. São genuínos, conhecidos de pronto, saboreados na espuma do primeiro gole do chope bem tirado, com todo prazer. Prazer é o gozo. Orgulho é a lembrança do momento fugaz do egoísmo duradouro. Vergonha, se você a tem, parabéns. Você não é um sem-vergonha. Mas experimente trocá-la pelo descontentamento. Vai embora logo. Volta o gozo, se vai o egoísmo, o egoísmo da vergonha.

Filhas, filhos, que prazer, contentamento, alegria. Filhas, filhos, que a dor passe logo, que logo dê passagem à boa lembrança, ao bom porvir.

Quanto ao orgulho, prefiro a distância dele. Quando dele me aproximo, fico à beira de um abismo solitário, lá embaixo à minha espera a soberba que não quero conhecer.

Prefiro a nudez do sonho, com todos vestidos à minha volta.

Prefiro a timidez que já não tenho na intensidade que já foi.

Prefiro a alegria de ser pai.

3.22.2021

DIRETO DO BRASIL DA PANDEMIA

 

Todos os dias acordo brasileiro morando no Brasil.

Quem me acorda é o bem-te-vi.

Duvido

Sou bem-visto

Logo existo.

 

Às vezes me excedo

Outras me omito

Saber o tempo certo

É quando não grito.

 

Preso entre quatro paredes

Tento navegar nas redes.

Não estou só.

Não estava só, fomos milhões -

Não nos ouviram.

Agora se perguntam: - O que fazer? Esperar?

As pesquisas mostram uma insatisfação crescente

Falta ar oxigênio cilindro leito agulha seringa remédio

Falta tudo

Falta empatia

Respeito -

Mas como haveria - da parte de quem nunca teve?

Mas como viria - de onde nunca houve?

Que nunca mais acreditem que MILITARES resolvem tudo

Que nunca mais pensem que armas pagas pelo povo devam se voltar contra o povo

Ou idiotamente pensem ou cinicamente digam que as armas só se voltarão contra os

maus.

Quem são os maus? Os comunistas? Os não-brancos-héteros-homens?

Por quê? São muitos? Violentos?

Se armam ou armam outros contra prefeitos e governadores?

Ou os maus são os que roubam?

Quem usa nossas armas e as volta contra nós SABE distinguir os que roubam? Melhor

que a LEI?

Quem usa nossas armas e as volta contra nós QUER distinguir os que roubam?

Como, se quem usa nossas armas e as volta contra nós nos rouba a LEI?

Que nunca mais venham com a patetice

De não-quero-nada-disso-que-está-aí

Que política se faz sem política

Que governos se fazem com técnicos somente técnicos nada mais do que técnicos

De preferência militares

Ou que evoquem o AI 5.

Agora um tribunal autoriza que se comemore o golpe de 64 em 31 de março.

Chamar o golpe de 64 de – abre aspas - marco da democracia brasileira – fecha aspas -, segundo consta, - abre aspas - não ofende os postulados do Estado Democrático de Direito nem os valores constitucionais da separação dos Poderes ou da liberdade – fecha aspas.

Morremos todos os dias aos milhares de uma pandemia fortalecida pela negação;

Mas o importante é comemorar o golpe

Porque de golpe em golpe vão nos levando a vida e a democracia.

Mesmo esses que nos roubam a democracia cooptados ou abduzidos

Que acordem e percebam que, hoje, quem dá as cartas não são as Armas

Não é a mídia

O STF

O Congresso

Empresários

Trabalhadores

Os ricos os pobres a classe média

Os que passam fome e têm mais, muito mais sabedoria

do que idiotas de salão balançando uma taça de vinho

a professar

O importante é a economia.

Nem o Mercado dá as cartas hoje.

Quem dá as cartas hoje são os pseudopastores.

A Igreja perdeu o passo

A Igreja perdeu a vez

O Rei

É cínico.

Voltando aos ainda não cooptados ou abduzidos:

Acordai.

Usai vossa inteligência

Hoje e amanhã.

Usai vossa empatia

Vossa humildade

Usai vossa indignação

Usai vossa coragem

Usai vossos olhos ouvidos bocas.

Narizes usai para algo além do buquê do vinho caro

do rótulo que exibireis nas redes amanhã.

Acordai. Por favor

Acordai.

 

Quem me acorda é o bem-te-vi.

Duvido

Sou bem-visto

Logo existo.

 

Às vezes me excedo

Outras me omito

Saber o tempo certo

É quando não grito.

3.18.2021

DE COMO SER PAI – III – DE VOLTA PARA O PASSADO

 

Quem acredita em sereias sabe os segredos do mar, Fagner e o MPB4 cantaram e deixaram gravado para quem quiser ouvir. Quem não ouve, nem estrelas ouve, e Olavo Bilac vai raspar os bigodes, mas não os dele. Não é nada difícil ser pai e por isso é tão difícil compreender um pai que abandona um filho ou quem veja um filho como um estorvo, incômodo ou alguém a temer.

(Para quem não souber, Fagner e MPB4 (acho) permanecem na ativa. Fagner ficou famoso quando musicou e cantou uma poema da Cecília Meireles (Quando penso em você... fecho os olhos de saudade...), e o MPB4 pode ser visto em "Uma noite em 67", disponível (acho) no Youtube, que vale a pena ser visto - mais que um documentário, é um documento. Já o verso "Olha direis ouvir estrelas" é o mais célebre de Olavo Bilac, poeta que viveu de 1865 a 1918, um clássico da nossa poesia, e que usava bigodes.)

De como ser mãe, nada sei. Mas talvez possa ser útil a jovens mães e pais lembrar mais um pouquinho do comportamento materno durante e após a gravidez. Não me atrevo a falar sobre distúrbios como depressão pós-parto, se não sirvo pra mãe, menos ainda para charlatão. Já falei antes de como Rosa, mãe da Maria Luiza, estava se sentindo na véspera de nossa filha nascer. Tudo a incomodava. No primeiro ano de vida do presente que ganhamos, a história foi outra, com poucos traços de semelhança com a que antecedeu o parto. Rosa era toda atenção à Maria Luiza, em permanente estado de alerta. Naqueles anos ainda se fotografava com máquina fotográfica e se filmava com filmadora. Rosa é fotógrafa amadora de excepcional sensibilidade e precisão, e tem até hoje câmeras fotográficas de alta qualidade, tanto analógicas quanto digitais. Mas a filmadora teve que alugar, e passou um fim de semana inteiro filmando Maria Luiza e tudo ao redor da casa em que morávamos. Dois momentos da filmagem revelam como a mãe recente se sentia. Rosa, além do cuidado com a filha, dirigia e narrava as cenas. Em dado momento, já cansado das suas orientações e alertas, perguntei sugerindo:

- Já filmou ali?

“Ali” era suficientemente longe de mim, com Maria Luiza no colo, e assim distraí um pouco a diretora. Em outro momento, sugeri que pedíssemos uma pizza; também funcionou.

Outro “ali” era “lá”, em Teresópolis, em um belo hotel-fazenda num lugar chamado Quebra Frasco, onde costumávamos nos hospedar em fins de semana de inverno. O jantar de um sábado foi fondue, com aqueles espetos para espetar os nacos de carne e mergulhá-los no óleo quente, que depois são espetados por um garfo, que levamos a um dos 817 molhos postos à nossa frente e depois à boca para mastigar. Maria Luiza sentadinha numa cadeira para bebês, não parava quieta. Desde aquela noite, Rosa se senta na ponta da cadeira, como eu já disse, em permanente estado de alerta. Não me lembro o que foi que a bebezinha fez que chamou tanto a atenção da mãe, que, em vez do garfo, levou à boca o espeto com a carne, espeto e carne muito quentes, e em seguida se levantou para sequestrar nossa filha e fugir com ela para o quarto.  Não dei parte à polícia, mas tive que terminar o fondue às pressas e sozinho. No domingo, já de malas prontas para voltarmos para o Rio, Maria Luiza não parava de chorar, de pura manha. Dizem que carioca é esperto, e, pelo menos naquele dia, este aqui foi. Enquanto Rosa pagava a conta do hotel, eu fui para o jardim com a chorona no colo e fiquei gritando paracabum! umas tantas vezes, e mais uma vez a tese de que mãe é propriedade e pai é brinquedo da criança, no lugar do choro veio uma risadinha, e a volta foi tranquila, com Maria Luiza tirando um soninho naquela cadeira que o presidente do Matai-vos uns aos outros e Ama o torturador como a ti mesmo coerentemente quer banir.

(Entre outras razões, Rosa sugeriu esta série de reminiscências sobre minha experiência como pai para que eu falasse menos sobre política. Mas o atual presidente não deixa, exatamente por querer não deixar que falemos.)

Havia um outro “lá”, que era mais longe ainda, e aquele outro paraíso se chamava Vila Maria, no sul de Minas Gerais, na fronteira com Campos do Jordão, em São Paulo. Foi lá que, antes mesmo de andar com seus pezinhos, Maria Luiza andou a cavalo. Não comigo: tenho um respeito por cavalos do tamanho de um cavalo. Todas as vezes em que tentei cavalgar, me senti desconfortável por estar em cima do cavalo e percebi seu desconforto por estar embaixo de mim. Mas centauros existem, e um deles pegou nossa bebezinha com nossa ajuda e a pôs sentadinha no dorso do seu lado cavalo, e ela achou uma graça que nem na fotografia se pode perceber em tamanho e dimensão, a não ser para quem estava presente quando aquilo aconteceu. Um mês depois, no aniversário de um ano do amigo Bobe, que se chama Rubens mas para ela o nome dele era e sempre será Bobe, lá foi o pai da Maria Luiza andar depressa atrás dela - começando a andar, como o neguinho da canção de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, só que sem apanhar.

Agora é hora de falar da Miriam, que Maria Luiza até hoje chama de Mimi. Mimi trabalhava lá em casa e se tornou a babá da Maria Luiza. Até hoje é nossa amiga e a chama de caçulinha, embora Maria Luiza seja filha única. Não, ela não é nem nunca foi mimada, sempre viveu rodeada de amigas e amigos e logo aprendeu a dividir e somar.

No dia seguinte ao da sua curta cavalgada, no Baden Baden de Campos do Jordão, Maria Luiza de repente saiu do colo da mãe e escalou meu ombro, e eu fiquei tão alegre e surpreso que a chamei de minha periquitinha. Que periquito voa, até quem não acredita em sereias sabe. Alguns nascem em gaiolas, eu sei, é triste, mas há sempre alguém que nos dá um par de periquitos em uma gaiola. Mimi um dia foi alimentar os periquitos que alguém nos tinha dado e um deles voou. Aquilo foi o sinal para que eu contratasse outra espécie de ser alado para instalar uma tela, presa em umas cantoneiras metálicas, na mureta de uma ampla varanda da cobertura onde morávamos; afinal, minha periquitinha não tinha asas.

Por falar em bichos, jamais aceite um coelho de presente. Coelho não quer seu convívio, e gosta de ler bordas de livros com os dentes. Miriam deu um coelho para a Maria Luiza, e o que deixou a Mimi muito mais braba do que eu por causa dos meus livros foi compartilhar sua calça nova com os dentes do coelho.

Filho não é incômodo, é prazer. Um dia difícil ficava mais fácil só de pensar que logo mais à tardinha eu iria ao encontro da minha filha. Isso pode parecer piegas, mas não para quem já passou por isso. Não é piegas não, quando for a hora de ser pai, apenas seja.

Outra alegria que coelho não dá: criança fala.

- Rosa, me passa a batata, por favor.

- Babata!

Essa foi talvez a primeira palavra que a menininha de menos de dois anos disse depois de mamã e algo parecido com papai (além de Bobe, naturalmente). Uns dias depois, outra surpresa.

- Bala, papai.

Ela não gostava de bala, como então me pedia para trazer bala quando eu voltasse do trabalho? Ela insistiu, bala, papai, mexendo os braços. Claro! Ela me lembrou que eu ia pro trabalho sem levar a mala. Eu sei, você não acredita, embora tenha certeza de que cachorro lê nosso pensamento (eu também tenho).

Quer outra? Eu estava na cozinha tentando consertar qualquer coisa que até eu sou capaz de consertar, quando fui interrompido.

- Papai, papai.

- Filha, agora eu não posso, estou procurando a chave de fenda.

- Ali, papai, ali.

Pois é. Não são só os cachorros. Crianças também leem nosso pensamento.

Com três anos, a história é outra, cheia de palavras. Em um casamento na capela do Palácio Guanabara, de dia, Maria Luiza, em pé no banco da igreja, pergunta:

- Gente, aqui tem balanço?

No Natal, a tal da gente tem certeza de que Papai Noel existe, quando, por exemplo, a criança diz:

- Mas esse Papai Noel é muito legal, ele sabia que eu queria ganhar isso e ele me deu isso!

Quem acredita em sereias sabe os segredos do mar, Fagner e o MPB4 cantaram e deixaram gravado para quem quiser ouvir. Quem não ouve, nem estrelas ouve, e Olavo Bilac vai raspar os bigodes.

Mas não os dele.

3.11.2021

SE OUTUBRO DE 2022 FOSSE HOJE

Depois do discurso de Lula em 10 de março (ontem), o jornalista Octávio Guedes disse hoje de manhã o que eu gostaria de dizer. Extremistas são o Bolsonaro e o PCO (Partido da Causa Operária). Um prega Pinochet, Stroessner e Medici, o outro a ditadura do proletariado. Ainda nas palavras do jornalista, pode-se gostar ou não do PT, mas em 13 anos de poder respeitou a democracia. Sofreu impeachment e saiu, o líder foi condenado e se entregou à polícia. Lula atrai o povão que quer emprego, picanha e cerveja. O outro, o povão ressentido com a vida, com a própria vida, contra o sistema, precisa de um líder contra tudo. Palavras do jornalista, e eu assino embaixo.

Falando por mim, eu sempre pensei dessa maneira em relação ao eleitor-raiz do Bolsonaro: frustrado, ressentido, revoltado; o líder ofende, desrespeita, ele se vinga. (Recentemente, o Cidadão Mario veiculou um pequeno texto que diz: “Quem ainda apoia esse governo está de mal com si mesmo e os outros”). Já o eleitor-raiz do PT é o do chão de fábrica.

Voltando ao jornalista, a quem respeito muito, a terceira via também teria que ter – palavras dele - cheiro de povo, falar a língua do povo, e ele, neste momento, acha que só se teria o Luciano Huck com essa característica.

Da minha parte, prefiro um partido, e não vejo no momento outro partido com cheiro e cara de partido que não o PT. Não foi Lula nem Bolsonaro nem Dilma nem Haddad que me convenceu disso. O PSDB não é mais socialdemocrata e se desmoralizou por várias razões. O PT teve líderes corruptos que foram punidos, e permanece fiel às suas propostas para o País, que no fim das contas são dentro e não fora da democracia.

Mil restrições ao PT, mas ainda é um partido, com muito mais cara de socialdemocracia do que o PSDB. A Constituição Federal é socialdemocrata, típica de um Estado do Bem Estar Social. Como quarto fundamento desta nossa República, defende os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

A suposta solução Luciano Huck, com uma base necessariamente fisiológica, a mim não convence. Tampouco acredito em teorias liberais capazes de servir ao Brasil como se fossem luvas. Assistencialismo sem superação também não serve, e isso deve ser cobrado ao PT e aos demais.

Fiz, faço e farei críticas ao PT e ao Lula. Mas o primeiro é partido e outro é político - que sabe se articular, mesmo que  arrogante e demagogo em vários momentos, mas ainda é capaz de alguma grandeza; e levanta, sacode a poeira, dá volta por cima.

Se for outro do PT, se a eleição tiver essa configuração, terá meu voto. Eu quero um partido com cara de partido político e o PT é isso. O resto é fascismo ou fisiologismo (sim, o PT entrou nessa durante alguns anos, assim como o PSDB).

Se a eleição fosse hoje, o PT teria meu voto.

Assim penso hoje.

3.04.2021

DE COMO SER PAI – II – ASSIM SE PASSARAM DEZ ANOS

 

Todo homem sabe que nasceu para coadjuvante. Por isso os idiotas são machistas e os outros aprendem a não ser. A mulher é que nasceu para o estrelato. Isso fica evidente por exemplo na cerimônia de casamento, quando a noiva é a esperada, e o noivo, mais um a esperar por ela.

Nos primeiros anos de vida de uma criança, a mãe, por ser uma estrela, é propriedade da criança, enquanto o pai, quando muito um planeta fora de órbita, o seu brinquedo. Antes do nascimento, a barriga da mãe é a casa; depois, a criança muda de casa e vai morar no colo e nos seios da mãe. Brincar com o quê? Com bichinhos de pelúcia e penduricalhos do berço? Ora, pra que, se o pai está por perto? O colo da mãe é o melhor lugar para chorar e chorar até exasperar; o do pai, para achar graça das sacudidas, dos barulhos e das caretas que ele faz.

Quando Maria Luiza nasceu, havia um clube de futebol chamado Botafogo. Já quando o pai da Maria Luiza era garoto, havia um esporte chamado futebol, quando o Botafogo teve dois timaços, um logo depois do outro. De Garrincha, Nilton Santos, Didi, Amarildo e Zagalo a Carlos Roberto e Gerson, Rogério (depois Zequinha), Roberto, Jairzinho e Paulo Cesar. Isso sem falar em todos os outros jogadores daqueles dois assombros aos olhos dos competidores e admiradores de todo o mundo. Já lá em 1995, o Botafogo se sagraria campeão brasileiro, e o prenúncio disso foi o ano de véspera, quando Maria Luiza nasceu. Entre muitas e grandes qualidades, seu avô tinha lá seus defeitos e torcia para o Flamengo, algo que passou para a mãe da Maria Luiza. Aos três anos de idade, ela provou que pai é brinquedo e mãe propriedade.

- Mamãe, você tem que torcer pelo Botafogo.

- Mas eu sou Flamengo, filha.

Era hora do beiço tomar o lugar do lábio.

- Você tem que ser Botafogo, mãe!

- Tá bom, filha, eu sou Botafogo, pronto.

- De verdade, mãe?

- De verdade, filha. (Por alguns anos, somente.)

Ser botafoguense nada tem de sofredor, mais uma que aprendi por ser pai da Maria Luiza. Hora de falar de outro alvinegro: o Figueirense, de Florianópolis, onde moramos desde que o mundo acabou, em 2000. Enquanto o Botafogo tem na camisa a poética estrela solitária, o Carlitos daqui traz em seu escudo a bela figueira-símbolo da Ilha da Magia (embora seu estádio fique no continente, mas isso é pra ser dito pelos torcedores do Avaí). Tanto do Botafogo quanto do Figueirense, nenhum torcedor se esquece da semifinal da Copa do Brasil de 2007. Uma bandeirinha anulou injustamente dois gols do Glorioso, que, apesar de assim mesmo ter vencido por 3 a 1, foi desclassificado com o resultado (coisas do futebol, coisas do Botafogo). Maria Luiza viu o jogo ao meu lado por um tempo, até que foi para o quarto, teria que acordar cedo. Da sala, furibundo, protestei. Ainda acordada, Maria Luiza, na estrada dos louros, um facho de luz, a estrela (que não é solitária) que me conduz, me fez constatar:

- Nós ganhamos, pai. Fizemos cinco e eles um.

Tal como cantaram Emilinha Borba e Gal Costa, assim se passaram dez anos, dos três aos treze da Maria Luiza. Se voltaremos ou avançaremos no tempo nos próximos capítulos, todo flamenguista sabe: só o tempo dirá.

(Aqui cabe um PS, ainda por cima entre parênteses. Ao ler esse texto, Carine Bergmann, produtora do Cidadão Mario, espantou-se pelo apreço da minha família pelo futebol. Rosa nunca se interessou pelo tema, e Maria Luiza só até certo ponto, e já não mais: descobriu coisas bem mais interessantes, como a Medicina, entre outras. Da minha parte, prefiro fazer do futebol o mesmo que ela fazia comigo em seus primeiros anos de vida: um brinquedo.)