11.12.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance inédito de Mario Benevides
- CAPÍTULO TRINTA E QUATRO -

Manuel Bandeira, estrela da vida inteira, minha amada quer ficar solteira. Não me olha nem de baixo pra cima nem de cima pra baixo, me sinto objeto de puro esculacho, menos pra sapato que pra capacho. Meu caro modernista, me dai uma pista, me aconselhai. Parei na contramão, não tenho dinheiro não, estou mais pra chuchu que pra camarão. Farei das tripas coração, dizei a mim, meu irmão, se vou-me embora pra Passárgada ou se minha vida é beco, sem solução.
Com essa letra, do seu samba "Minha estrela quer ficar solteira", que fez muito sucesso nos anos cinqüenta do século passado, Ricardo Coração dos Outros III tocou o coração do grande poeta pernambucano, que o quis conhecer. Marcaram encontro em Petrópolis, a cidade imperial na região serrana do Rio. Ricardo VI encontrou, no fundo de uma gaveta, uma carta de seu bisavô paterno ao poeta que tantos anos viveu na Lapa, no Rio, que diz assim:
Meu caro Poeta, com P maiúsculo,
Que presente a vida me deu. Esse negócio de inspiração é privilégio de gente como você, Gente com G maiúsculo, de Generosidade. Meu g é minúsculo, de modesta gratidão. Inspiração, no meu caso, é coisa que o vento carrega com ele e o primeiro e mais rápido vai lá e pega e põe numa canção. Foi assim com meu samba, no qual eu só queria mesmo era homenagear você, meu nobre Poeta, sua elegância e fidalguia. Que muitas gerações ainda possam ter o privilégio do seu convívio e do convívio e afeto pela raça humana que guardam seus inspirados versos. Quanto aos meus sambas, chorinhos e marchinhas, ora, são mais passageiros que o próprio vento que os trouxe para mim, assim, de graça, a mim, que nem os mereço.
Houve pelo menos mais um encontro dos dois em Petrópolis, dessa vez na presença ainda de Vinícius de Moraes, pouco antes de acontecer sua mais famosa parceria, com Tom Jobim. Foi desse encontro, registrado em carta de Ricardo III a um amigo seu, Alfredo das Neves, que nasceu a marchinha de carnaval "A marcha do operário que diz não", censurada, no final dos anos sessenta do mesmo século XX, que dizia assim:
O operário em construção disse não, não, não. Hoje não vou trabalhar, não, não, não. O meu pai morreu na guerra, minha mãe ficou na serra, não, não, não. Hoje eu vou ficar em casa, do franguinho, quero a asa, não, não, não. Eu não sou nenhum malandro, vagabundo ou preguiçoso, não, não, não. Eu trabalho pra caramba, tenho orgulho do meu samba, não, não, não. Mas eu vou ficar em casa, do franguinho, quero a asa, não, não, não. O operário em construção disse não, não, não. Hoje não vou trabalhar, não, não, não. E aí o operário, que não era salafrário, perdeu o salário e foi chamado de otário, não, não, não.
A marchinha terminava em breque – isto é, uma frase dita quase sem melodia:
Com saudades do Bandeira, o operário do Vinícius foi preso e morto sem vícios - tal e qual sua construção.
Por causa da marchinha censurada, e por conselho de amigos, foi para Petrópolis que Ricardo Coração dos Outros III fugiu, disfarçado de caseiro em casa de veraneio de rica família carioca, que resolveu protegê-lo por gostar muito dele e suas canções. Em uma outra carta a Alfredo das Neves, Ricardo III conta assim:
Querido Amigo,
Gosto desse friozinho e também de fazer o que eu faço por aqui. Arrumo o telhado da casa principal, coloco a antena no lugar, deixo o jardim arrumadinho e carregado de hortênsias, uma graça. Já chamo a amada de patroa, e ela está-se saindo muito melhor que a encomenda: faz uma galinha ao molho pardo que deixou Vinícius dormindo na poltrona depois do almoço com cara de anjo. Meus patrões, que são grandes amigos meus, deixaram o poetinha dormindo até o quanto ele quis. O poetinha, ao acordar, abriu um sorriso maroto, levantou-se e perguntou: "Alguém viu meu uisquinho?". Não falo nada do que fazia antes, pois, nesses tempos, é melhor ficar quieto, cumprimentar os vizinhos, trabalhar modestamente e, principalmente, não fazer barulho.
Saudades,
João.
(Claro: naqueles dias, Ricardo não podia assinar outro nome, que não fosse João.)
De um telefone público, ainda que com medo, foi que Ricardo III confessou:
- Mais difícil que usar barba e cabelo postiços, mais duro ainda que perceber minha mulher tristinha, chorando baixinho, é nem poder chegar perto do meu violão, que ficou aí, no Rio, e essa foi a condição dos meus amigos e patrões para me proteger nesse disfarce de caseiro. E não é que eles não gostem dos meus sambas, não, é que eles se preocupam tanto comigo e gostam tanto de mim, que me disseram assim: "João, você é tão bom violonista e compositor, tão conhecido, que se você pegar e tocar seu violão, toda a vizinhança vai logo saber quem é você, e aí..." E aí, meu amigo Alfredo das Neves, em vez de morrer o Neves, quem vai morrer sou eu.
Aquela fase seria encerrada e narrada em outra letra sua, da canção "João caseiro", que diz assim:
João gosta de ficar em casa, de trabalhar em casa, de não sair e falar com ninguém. Melhor ser João caseiro que João festeiro, que João Ninguém. Outros farão a história mas sem ficar na memória de ninguém. No entanto, João é modesto e reconhece: quem faz a história não é o famoso nem o festeiro nem o caseiro; quem faz a história, a verdadeira história, é João Ninguém.

Um comentário:

Anônimo disse...

caro Mário,
estou em Floripa, mas sem teu número e e-mail.
fico aqui até terça á tarde.
Se estiveres por aqui e quiseres marcar aquele café - ou chopp - meu número é 9981.3699.
levo um exemplar do "Quatro Nomes"
abraço,
aldo