2.10.2008

ACHADO, ROUBADO E DEVOLVIDO

Foi no sábado. Ela deixou seu telefone celular cair no gramado em frente ao prédio do casal de amigos que visitara e não percebeu. Muito distraída, tinha certeza de que o aparelho estava em casa ou então no carro. Somente na segunda-feira à noite é que se convenceu de tê-lo mesmo perdido e foi na operadora providenciar o bloqueio e a substituição por um novo - mais moderno, até -, que saiu de graça - isto é: pago pelos pontos acumulados pelo uso freqüente da linha. Claro, deveria ter providenciado o bloqueio assim que deu pela falta do aparelho e, se depois o achasse, reabilitaria a linha - o que também não renderia nenhuma história.

Na quarta-feira de manhã, um desconhecido, que sabia seu nome, telefona para seu novo celular, que teve mantido o número do perdido, e informa a ela que este fora achado por ele, no tal gramado. Ela anota o número do sujeito e fica de ligar depois.

No sábado seguinte, ela pede ao marido que ligue para o sujeito - que diz que dentro de meia hora estará em casa, “depois de deixar meu serviço”, e dá seu endereço. O marido vai com ela ao encontro do indivíduo, residente na mesma rua onde fica o prédio que visitaram havia uma semana. Olham bem em volta antes de parar o carro, para ver se não seriam surpreendidos por uma armadilha (“Isto é um assalto!”). Um rapaz sobre uma bicicleta a chama pelo nome.

- Como é que você sabe meu nome?
- Estava na tela do aparelho, junto com tua foto – o rapaz explica. – A memória do telefone celular tem também o número da linha, por isso te liguei. Peço desculpas, mas eu apaguei tua agenda.
- Por quê você apagou minha agenda?
- Porque eu pretendia ficar com o celular para mim. Mas, aí, me arrependi, eu pensei, afinal, o celular é dela, ela vai precisar dele. Peço desculpas também por ter apagado a foto.
- Você usou o celular? Fez alguma ligação?
- Não – ele responde. Depois: - Só duas vezes. No sábado mesmo.
- Você ligou para o exterior? – o marido dela pergunta ao rapaz. Rindo, o rapaz diz que não, claro que não. Foi para aqui mesmo, só duas ligações. Peço desculpas por isso também.

E vai embora, na bicicleta, que se supõe seja dele, que a ele pertença.

Marido e mulher entram no carro e perguntam-se: - Terá sido mesmo arrependimento? Ou o pai ou a mãe dele foi quem ordenou a devolução, com ameaças de polícia e outros castigos? Devolveu só porque - e depois que - percebeu que o aparelho havia sido bloqueado? Mas, se assim tinha sido, devolver porque? Por que não deixá-lo perdido em algum outro lugar, ou mesmo no mesmo gramado onde fora encontrado? Minha foto na tela – ela continuou a conjeturar – era ao seu lado, era uma foto de nós dois, um casal; ele esperava por alguma recompensa, ou uma perspectiva de mais um furto, se dar bem; e – ela constata e conclui - não foi nada disso.

Mas houve uma recompensa – que quase não aconteceu, depois da confissão do roubo e do arrependimento. Se é que um livro (com dedicatória e autógrafo) possa ser considerado uma recompensa. Livro que o rapaz saiu lendo, seguro por uma das mãos; com a outra, manejava a bicicleta.

2.03.2008

CAVALOS

Em Petrópolis, a charrete percorre as ruas entre automóveis esparsos. O condutor também é guia, mostra a casa de Santos Dumont, a do príncipe recém falecido, aquela onde Fernando Henrique se hospedava, “Lula nunca veio aqui”. Mostra a estátua do arquiteto e, atrás, a Catedral. De quando em quando, dá uma chicotada nos cavalos da parelha, que apressam o trote preguiçoso e servil. Submissos, os olhos, tampados nas laterais. Sacos amarrados nos seus lombos recolhem seus rejeitos alimentares transformados nas suas tripas em dejetos. O guia pronuncia “coêler” ao invés de “quéler”. No término do passeio, ele, novamente condutor, puxa as rédeas e pára no sinal fechado. Um dos cavalos torna a cabeça na direção do seu par e parece dizer alguma coisa a ele. Provavelmente, algo como “De noite, a gente pára e descansa”, ou “Um dia, isso acaba”.

Em Florianópolis, chove demais. Uma catástrofe, ruas inundadas, casas inundadas, pessoas jogadas na lama, em abrigos, o aeroporto, fechado. No caminho dessa descoberta, uma pastagem; por trás, a baía. O cavalo, amarrado a um toco no chão, a cabeça baixa, o dorso sob a chuva, debaixo do temporal, a céu aberto, céu cinzento, chuva, chuva, chuva, no lombo do cavalo. “Uma hora, isso passa”.

No apartamento, um vento, para ela, é tufão; uma chuvinha fina, temporal; um espirro do filho, pneumonia. Tudo é pretexto para dar uma desculpa no trabalho e faltar e ficar em casa. A tempestade é tão verdadeira e intensa que dispensa a desculpa. “Uma hora, isso passa”.