9.11.2020

O MITO

 I – A operação Lava Jato

Mito é o primo rico da mentira e fato o primo pobre da verdade. Mito é fábula: a mentira criativa. Verdade cada um pode ter a sua, e o fato é a constatação.

Nada do que se fala aqui serve de consolo, nem de longe tem essa intenção, que é apenas mostrar como frequentemente mitos se passam por fatos.

O fato de que existe corrupção no Brasil há muitos anos criou uma série de mitos. Seria um traço cultural do Brasil, decorrente da colonização portuguesa. Há pesquisas que evidenciam fatos a desfazer esse mito. Em vez de lançar mão de algumas delas, vamos buscar o caminho da arte, que, mito ou fato, ora imita a vida e ora é por ela imitada. Erêndira, personagem de Gabriel Garcia Márquez, é obrigada por uma tia a se prostituir, e Tereza Batista, de Jorge Amado, é vendida por uma tia para satisfazer os ímpetos e crueldades sexuais de um homem. Dois exemplos a nos deixar, como em vários outros, presos ao dilema de quem imita quem. Voltando ao mito do ha ha hu hu, a corrupção é nossa, assista-se por exemplo à série e/ou ao filme SUBURRA, para conhecer um pouco da corrupção italiana contada por meio da ficção, mas com fatos de sobra, históricos e atuais, a embasá-la. Alguém será capaz de dizer, ora, italianos são latinos como nós, e por isso são corruptos. Assista-se então ao filme norte-americano A LAVANDERIA, com Meryl Streep, Gary Oldman e Antonio Bandeiras, baseado em fatos reais, que conta a história feita de muitas outras de corrupção, todas reais, fáticas, de empresas não só dos Estados Unidos da América como de uma, sim, brasileira. Ah, então a corrupção é do Novo Mundo e/ou latina. Uma das pedras que teimam em não sair desse sapato é o caso Lockheed, nome de uma empresa, sim, norte-americana, que nos anos 70 do século passado corrompeu poderosos alemães, holandeses e japoneses. A corrupção não tem pátria nem etnia, não faz parte de uma cultura, embora seja ela mesma, a corrupção, uma cultura.

Cuidado é preciso também quando se diz “somos corruptos”, a não ser nos casos de confissão disfarçada de justificativa.

A corrupção nunca tinha sido sistêmica. Fato ou mito, como saber? Ficamos sabendo da  sistemática da corrupção por meio da combinação de alguns fatores, alguns deles recentes em nosso país. No mundo inteiro, a investigação de práticas criminosas se torna a cada minuto mais dotada de ciência e tecnologia; no Brasil, a liberdade de comunicação e o jornalismo investigativo só foram ressuscitados entre 1985 e 1988, anos que ficaram marcados pelo fim do regime militar e ditatorial iniciado em 1964 e pela promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil; e foi em 2013, há poucos sete anos, que entrou em vigor a Lei  nº 12.850, que define organização criminosa, e enuncia, em seu artigo 3º, que, em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, determinados meios de obtenção da prova - entre eles o da colaboração premiada (sim, colaboração e não propriamente delação, que deve ser compreendida como uma das espécies da primeira). Tecnologia, liberdade e método de investigação permitiram que conhecêssemos tamanho, abrangência e profundidade da corrupção em nosso país. A operação Lava Jato fez uso intensivo e extensivo dessa combinação.

O mérito da Lava Jato, uma operação policial, foi desbaratar esquemas e permitir à Justiça investigar, julgar e  - finalmente, e com base na Lei, algo próprio da democracia - punir corruptos. Infelizmente, esse mérito teve a empaná-lo o sensacionalismo, a vaidade e a falta de limites de alguns, a generalização conceitual em relação à política e a necessidade de muitos de acreditar em mitos. Promotores, procuradores e juízes não se confundem com heróis, e via de regra, heróis são mitos.

Agora, o gosto amargo da desilusão e decepção com respeito à Lava Jato bate na boca dos que acreditaram na mitologia que se criou em torno dela, que foi e é nada mais, nada menos que uma operação policial de investigação de suspeitos de corrupção.

II – O “Mito”

A disputa entre razão e emoção tem um dos seus momentos mais acirrados e perigosos nas eleições. A avaliação de riscos e oportunidades se fragiliza diante de verdades daquelas que cada um tem a sua, de raivas, medos e preconceitos, dos truques do marketing político e do estresse de um noticiário que se vale disso tudo, desde o racionalismo da avaliação até a exaustão da emoção, que também invade corações e mentes de quem dá as notícias.

Um dos mitos fabricados para nos diminuir como povo e enfraquecer nossa democracia é: o brasileiro não sabe votar. Ora. O mundo não sabe votar e por isso todo mundo vota, essa é a lógica da escolha, que se baseia como sempre na humana mistura de razão e emoção, a mesma lógica da democracia e do voto. Assim não se deve julgar o voto de ninguém. Nem por isso devemos deixar de analisá-lo, pelo menos para tentar evitar repetições muito perigosas.

As eleições de 2018 no Brasil foram mitológicas. A começar pelo “mito”. Mito é aquilo ou aquele que não existe, mas que se materializa na mente de algumas e às vezes de muitas pessoas. Há os que se identifiquem com o presidente eleito, mas mostram as pesquisas que não são a maioria. A bem da verdade, a com V maiúsculo, a omissão e mesmo a pusilanimidade de algumas lideranças políticas foram a causa mais importante e revoltante do que aconteceu em outubro de 2018. Mas outra de decisiva importância foi uma série de mitos capazes de iludir a maioria.

Meu partido é o Brasil, como se o Brasil fosse um único ser, de pensamento uníssono. Quem pautou sua vida pelo desrespeito seria o bastião da ética. Um expulso do Exército por indisciplina seria um disciplinado. Um evangélico que prega matai-vos uns aos outros e ama o torturador como a ti mesmo. Existiria uma nova política. Os militares seriam mais capacitados que as outras classes  – sim, para a defesa, mas para governos, que se visite a história, daqui e do mundo. Todo político é corrupto, todos os partidos são corruptos, habitados cem por cento por corruptos. Um partido que tenha membros corruptos é e será um partido corrupto. Houve aparelhamento do Estado – como se houvesse alguma agremiação política que ao chegar ao poder não fizesse isso. Um outsider, com sete mandatos de deputado. Um economista de quem nunca se tinha ouvido falar seria um gênio, um superministro. Militares seriam partidários do liberalismo econômico. O liberalismo e o Estado mínimo seriam a solução para o Brasil - mito morto infelizmente junto com mais de uma centena de milhares de pessoas, até o momento (e o presidente diz, E daí?). O defensor e enaltecedor de ditaduras, ditadores, tortura e torturadores não traria nenhum risco à democracia (e não diria “E daí?”), ou a ditadura seria melhor que a democracia, exceto a cubana e a venezuelana – pois veja-se o que está acontecendo aqui e agora: há suspeitas de cooptação de membros da justiça e do judiciário, exatamente como aconteceu na Venezuela. A ditadura foi boa para o Brasil – logo ela, que, entre outras sequelas, deixou uma colossal dívida externa e inflação sem controle, só derrotadas, a duras penas, pela democracia. O patriotismo, liderado, desde a campanha, por um fiel seguidor do presidente dos Estados Unidos.

Mito é o primo rico da mentira e fato o primo pobre da verdade. Nas próximas eleições, optemos todos pelos fatos, ainda que a fúria das nossas emoções se esforce a nos fazer perdê-los de vista.