8.28.2006

VOCÊ, LEITOR

No caso deste blog, o título aí em cima é de um realismo acachapante. Eis aqui um blog de um leitor só – não necessariamente solitário, mas muito provavelmente sempre o mesmo. Pode, aliás, ser uma leitora, a incrementar o contador de visitantes sempre de 1 – lembrando uma torcida, a gritar depois de um gol: “mais um”.

Injustiça da minha parte com você, este outro ou outra você, que também ajuda a incrementar o contador, eu sei. Um é pouco, dois é bom, três, então, nem se fala. Sem demagogia – não se vive neste espaço de votos, vive-se aqui até sem salário, que dirá de mensalão -, quantidade não é o que se deseja por aqui. Melhor - aqui - é essa qualidade que é própria de você, leitor, nesta sua condição ímpar; esse intimismo, com S, de nem próximo nem distante. Intimismo do mesmo diâmetro de uma mesa de bar e com a profundidade e a poesia que lhe são peculiares e, principalmente, a conversa fora e a perspectiva de chamar um táxi e deixar o carro próprio no lugar que lhe é próprio: o estacionamento. Até a noite seguinte.

Temos planos. A começar por leitura especializada – e você, leitor, se enquadra nessa categoria. Quer se candidatar a crítico dessa obra fragmentada entre Terças e Sábados?

Buscamos concursos – e aceitamos sugestões.

Pensamos em organizar esta bagunça – esta com T, de tocante de tão próxima – e criar desvios do blog para seções: “A DINASTIA”, “PAREDES QUE FALAM”, “POEMAS”, “CRÔNICAS”, e outras pretensões. Ficará mais fácil e engenheirístico – face que este autor fará sempre questão de mostrar. Oferecer, não: nem no boxe, onde o adversário é como deve ser um adversário: um saco.

Ficará, de certo, mais bonito, embora desconsertar deva ser - às vezes, pelo menos - o papel da arte. Se não, Nelson Rodrigues não teria afirmado que toda mulher gosta de apanhar nem que ninguém gosta de preto porque nem o preto gosta de preto. Desconsertos assim provocam o que a arte mais gosta de provocar: reação. Do gênero “Eu, não”. E aí a perspectiva de grandes mudanças para melhor, mudando o que e quem – principalmente – deve ser mudado. Grande Nelson. Quem somos nós?

Vez por outra algo que pretende ousar um pouco mais, explorar o belo idioma que nos coube um pouco mais, descobrir suas veias, suas coxas, seu sexo, nuances e buços. Outras vezes a tentar provocar um risinho de canto de boca, uma careta, uma ruga passageira de desconfiança ou curiosidade. Em todas elas, uma cumplicidade.

Com você, leitor. Ou leitora. Você vai bem? Volte sempre, hein?

Por favor.

E obrigado.

8.21.2006

TÉDIO

(1)

E se você fosse um grande entediado
Na estréia de uma Segunda-feira
Uma temperatura extrema
Frio ou calor, tanto faz

E saísse a caminhar na hora do almoço
Tanto faz se frio ou quente o ar lá fora sopra
Sob um sol que só deixou de fora raios
Rajando seu corpo e a calçada

E o céu ficou azul e sem vergonha
E o ar e o sol e o céu levantaram
Mais que saias
Humores

Continuaria assim entediado
Ou faria como eu fiz
– e era frio que fazia –
E jogaria o tédio precipício abaixo?

(2)

Se o problema é esse noticiário
Pior ainda saber que o que está acontecendo
É bem pior do que isso que eles contam
Pode ficar tranqüilo
Isso não é tédio não
É revolta
Não cura com o sol não
Mas o tédio passa
Fica somente a revolta.

Coisa pouca.

8.15.2006

SOCIEDADE ANÔNIMA

Era só o começo. Era antes.

Os órgãos de comunicação atuantes no país foram advertidos de que qualquer tentativa de manipulação da opinião pública, omissão, divulgação irresponsável e/ou falsa de notícias seria respondida por ampla divulgação via organismos paralelos independentes e um boicote generalizado. A iniciativa privada acabou por acatar o convite para que provesse os recursos para o combate ao crime organizado e seus derivados, parcialmente como investimento, parcialmente como substituição de impostos – primeiro, unilateralmente decidida; depois, divulgada e negociada com o poder público. O repasse de verbas foi através de um fundo gerido por particulares e publicamente auditado por vários dos mesmos anteriormente advertidos veículos de comunicação.

Enquanto o poder público continuava a abarrotar as já hiper-lotadas cadeias, parte daqueles recursos da iniciativa privada possibilitou contratar a construção de maiores e melhores presídios. Sua expansão era planejada por meio de estatísticas, continuamente aferidas no decorrer dos fatos. Nas novas prisões, à exceção de desbalanceamentos momentâneos, só toleráveis por um ou dois dias, nunca uma cela seria habitada por mais nem menos que três presos – porque um, mais que pouco, seria caro; dois, uma fórmula boa demais para a cumplicidade revoltosa; a partir de quatro foi considerado superpopulação; e a infância mostrava que dois geralmente se aliam e alijam um terceiro, que passa a se defender, minando os planos dos outros dois. Foi instituído o trabalho remunerado para presidiários. Parte da remuneração ia para as famílias dos presos e parte era depositada para uso deles, depois do cumprimento de suas penas. Nos presídios, toda e qualquer conversa telefônica passou a ser ouvida e automaticamente gravada, em tempo real, local e remotamente, sempre com o conhecimento prévio de quem conversava. Posteriormente, essas práticas incorporaram-se à legislação. Apesar do veemente protesto de alguns setores da sociedade informada e instruída – “Assim, todo mundo vai querer ir pra cadeia” -, insistiram em programas de educação e re-enquadramento social. “Sangue bão” foi uma das expressões que desapareceram. A reclusão e reorientação de menores de 16 anos infratores baseou-se em substancial assistência médica, psicológica e educacional. Casos tidos como patológicos e sem retorno foram encaminhados para centros de reclusão especiais, onde o exercício de atividades produtivas era incentivado. Do lado de fora, por meio da gestão de instituições religiosas previamente analisadas, investigadas e qualificadas, desenvolveram-se programas de assistência a viciados para maximizar a cura e minimizar a dependência. Agências de propaganda e marketing realizaram, por conta própria e sem remuneração, campanhas de educação e alerta contra o uso de drogas pesadas. A maconha foi liberada. A exploração de pontos para a sua venda foi concedida a ex-traficantes cumprindo penas em regime semi-aberto, compatíveis com seus atos praticados no período do tráfico, desde que estes não incluíssem crimes de morte, tortura ou seqüestro. Todas as demais drogas traficadas foram mantidas na ilegalidade e assim combatidas, até que índices do nível de educação e qualidade de vida da grande maioria da população alcançassem padrões mundialmente tidos como satisfatórios. Já com o envolvimento do poder público, para combater o tráfico remanescente, o armamento, preparo e remuneração das forças armadas federais e das polícias federal e estaduais teve incremento expressivo, simultaneamente a estratégias de aceleração de substituição, julgamento e punição dos corruptos. Diminuição da pena, programas de reabilitação e re-enquadramento social, proteção e troca de identidade foram concedidos a alguns criminosos, em troca de confissão e delação. As fontes de renda foram ainda suplementadas por meio do reingresso incentivado e condicional de dinheiro anterior e ilicitamente expatriado, perdão parcial e condicional à sonegação e aporte voluntário de pessoas naturais do país e exterior. Para inibir a continuada proliferação do vício, organizações não-governamentais passaram a prover assistência psico-social a famílias ou pessoas de baixa renda e/ou de desempregados e também àquelas que se candidatassem ao programa em troca de trabalho voluntário ou a contribuir com recursos, financeiros ou não.

Tudo em meio a tenebrosos atos de terror. Em resposta, persistência.

Nomes de candidatos corruptos circulavam em listas, na mídia e boca-a-boca, especialmente nas regiões mais ermas e/ou de analfabetismo pronunciado. Eles ocupam hoje algumas das celas das novas prisões. Sempre em número de três.

Grandes fornecedoras de obras e serviços públicos foram convencidas a firmar de público um pacto que liquidou com velhos esquemas de corrupção e acerto prévio do resultado de concorrências. Inibiu novos. Funcionários públicos de histórico honrado foram prestigiados com homenagens e aumento de salários. Agências supra-partidárias foram encarregadas da gestão da carreira do funcionalismo público, que passou a competir em perspectivas de ascensão por mérito e resultados com as típicas do setor privado. A demissão de funcionários públicos incompetentes e não dispostos a progredir e colaborar passou a ser praticada. Empresas estatais e privadas concordaram com a criação de um fundo para desempregados, preparando os dispostos ao reingresso no mercado produtivo e suportando-os minimamente até que ele ocorresse.

Para a remodelagem estrutural do país, com o poder público já devidamente ciente de suas atribuições e responsabilidades e com uma visibilidade jamais vivida de seus atos, com verbas da parcial ou integral concessão à iniciativa privada da exploração de empresas públicas por prazo determinado, regulada por agências supra-partidárias fortalecidas, além da proveniente de uma racional reforma tributária, foi implantado um amplo programa de valorização do magistério, com ênfase nos salários e no preparo. A complementação educacional a domicílio foi oferecida a famílias e pessoas de baixa renda e/ou sem acesso a expressões artístico-culturais. Banidos foram os exames de avaliação de cursos por meio das provas a que se submetiam seus alunos e ex-alunos. As cotas para minorias foram substituídas por cursos de preparação para o vestibular para os estudantes em escolas públicas, até que estas atingissem o devido grau de competitividade com as particulares.

A verdadeira droga foi finalmente banida: a ignorância.

Antes era só o começo. Antes era 2006.

8.08.2006

DE CABRITOS E CANIVETES

“Bom cabrito é o que não berra” - será verdade?

Aquela viagem pelo interior, que incluiu estradas rurais ou coisa parecida – mais pra coisa parecida -, trilhas a pé, rios, percurso de barco - tudo a trabalho, nada de eco-turismo -, iniciou-se por sugerir uma prosa sobre cabritos (lembrando que bodes são muito espaçosos).

Antes do almoço, corcoveando dentro de uma camionete que era pra ser confortável, proseou-se sobre a provável reeleição do executivo-mor. Constatou-se que o excesso de sua exposição na mídia é que lhe esgota a inspiração para tiradas de efeito. Já do lado de quem as ouve, a paciência é que vai agonizando. Essa experiência já foi vivida com o mandatário anterior; tudo indica que a viveremos outra vez. Do lado do mandatário, portanto, constatou-se que bom cabrito é o que não fala.

Enquanto almoçavam em acampamento de obras bem no meio daquilo tudo, mata, rios, um calor seco sob nuvens a ensaiar uma chuvinha que não viria, falaram do barco no qual pretendiam navegar dali a algumas poucas horas:

- O motor anda bebendo demais.
- Não vai dar pra ir e voltar.
- Claro que dá.
- Ce tá louco, sô; não dá, não.
- Dá.
- Não dá.

E continuou aquela discussão de cabritos roucos, absolutamente inaudíveis, nenhum capaz de convencer ao outro. Aliás, ninguém ali era cabrito, eram pessoas vividas, experientes. Sem ofensa, estavam mais pra bodes. Se havia algum cabrito, era justamente o barqueiro, cuja opinião sequer era ouvida, que dirá considerada. Pra convencer bode, cabrito tem que ser muito bom de berro.

Depois de novas trilhas a pé e quase-estradas na referida camionete que era pra ser confortável, fizeram seu trajeto no referido barco. Na ausência de coletes salva-vidas, a tranqüilizar a todos, um par de remos. E um homem não é muito mais que um par de remos.

As águas, a paisagem, tudo aquilo foi ressuscitando corpos e mentes cansados do poder e da falta dele. E homens não são muito mais que sua ressurreição.

Que bode ou cabrito foi que venceu a discussão, ninguém sabe - mas a gasolina do barco acabou, no meio do percurso de retorno.

Quem pratica boxe conclui, precipitadamente, que um homem não é muito mais que suas luvas de boxe. Já quem anda de bicicleta entende que um homem não é muito mais que sua bicicleta – tanto assim que sempre se pergunta: casar ou comprar uma?

Porém, nem luvas de boxe nem bicicleta as havia.

O barqueiro revelou:

- Tem um pouco de gasolina no tanque e um pouco mais nesta vasilha – e perguntou:

- Alguém tem um canivete?

Sem ter a menor idéia da utilidade que poderia ter um canivete naquele instante, o mais peixe fora d’água de todos, nascido e criado em beira de praia de cidade grande, respondeu:

- Sim. Eu tenho um canivete.

E aí lhe foi dada a divina graça da revelação: seu canivete serviria para cortar o fundo de uma garrafa plástica de água mineral; esta, depois de cortada, se prestaria como funil entre a vasilha avulsa com gasolina e o tanque do barco, a fazer o motor à explosão explodir à vontade outra vez, pondo o barco a navegar de novo e de volta à terra, prometida e quase-firme.

Foi assim que ficou provado que – sem entrar no mérito da ressurreição -, um homem não só não é muito mais que seus remos, luvas de boxe e bicicleta, como, definitivamente, um homem nada mais é que seu canivete.

Portanto, minha amiga, da próxima vez que seu namorado lhe convidar a um motel, antes que alguma coisa deixe de funcionar, pergunte a ele:

- O canivete veio?

Ou fique a ouvir bodes e cabritos.

8.01.2006

A ESCOLHA É SUA

Se você pudesse escolher, claro, passaria a vida de bom humor. Aquele estado de espírito que mantém você bem disposto, uma alegria pertinho da superfície, pronta para aflorar à mais fraquinha das piadas. Você, aliás, hoje, está um ótimo contador de piadas. Contador, que nada: inventor. Você – com este seu bom humor – está afiadíssimo, criativo, tudo é oportunidade para uma grande tirada. Seus amigos percebem, ficam olhando pra você com um ar de O que foi que deu nele? - já percebeu? Você já acordou assim, de bom humor. Foi carinhoso com a mulher, brincou com o cachorro, nem se importou de ter pisado no cocô que ele fez no tapete novo da sala. E olha que você estava descalço. Foi pro trabalho a pé, de tão bem disposto, e não houve nada de novo, não. Nem hoje, nem ontem: nenhum aumento, promoção, nova oportunidade, nem mesmo uma insinuação da gostozona que voltou de férias. Nada disso, pura rotina, pura, rasa, medíocre mesmice; e você não é medíocre pra gostar da mediocridade nem da mesmice - tanto assim que, vira e mexe, se irrita com essas duas, quer mudar tudo, fazer tudo diferente. Fica até de mau humor. Mas hoje, não: nada abalou este sorriso envolvente. O papo da mesa é que está ficando um pouco chato, engraçado, todos estavam de bom humor, você – especialmente - estava tão bem humorado, o que foi que fez você mudar de humor assim de repente?

Podendo escolher, não perderia seu tempo procurando um livro interessante quando as livrarias só oferecem Como manter a calma, Como vencer na vida, Como vencer o stress, Como ter sempre bom humor, Como ser líder em vez de chefe, Como chefiar seu chefe, Como comer e emagrecer, como, como, como, o quê, o quê, o quê... Quem? Você? Quando?

Aquela revista já traz pergunta e resposta na capa: “COMO ACABAR COM O CRIME ORGANIZADO? SEIS PASSOS INFALÍVEIS, BASEADOS NA EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL E NA LÓGICA DE ESPECIALISTAS”.

Se você pudesse escolher, iría pra casa agora, amaria sua mulher perdidamente, deixaria a TV ligada no programa que fosse o mais imbecil de todos – sem perder tempo com essa terrível escolha -, comeria batatas fritas e dormiria sobre a cerveja derramada, um pé com a meia, o outro, sem. Sua mulher está, de fato, ao seu lado, mas algo rodeia você, sai de dentro da sua cabeça e passeia à volta da sua cabeça, lhe expõe cenários de vida e de morte, dos caminhos de poder - poder subir, parar, desaparecer, meter a porrada no primeiro que se atrevesse. Sua mulher se queixa de um cansaço que afirma nunca ter sentido, um vazio, uma vontade de chorar, ela não sabe expressar bem o que está sentindo. Perguntar se não é TPM seria reduzi-la a alguém sem escolha; você não faz isso e, se pudesse, daria um abraço nela, diria a ela, amanhã é outro dia, você vai ver, isso passa, tudo se resolve, é só ter calma, já passamos por tanta...

Na TV, um exército dizimou trinta e sete crianças.