7.24.2011

DO QUE ELAS QUERIAM FALAR

De olhos fechados, vejo rostos que não conheço.
Como não conheço a imensa maioria das pessoas, não deveria me assustar com isso.
Mas me assusto.
Com meus olhos fechados, vejo pessoas que me mostram seus olhos, sorrisos, expressões, perfis.
Há uma negra que chora, deve ser pela morte de Amy Winehouse.
No rádio, só pelo primeiro acorde, já reconheço o toque, já adivinho a voz.
Buddy Guy.
Depois dele, Paulinho Moska e Kevin Joahnsen,
Waiting for the sun to shine.
Ao saber ontem da notícia, como todo mundo, claro, lembrei de Janis Joplin.
Janis disse uma vez que, com o tempo, queria aprender a cantar em voz baixa, como Ella Fitzgerald e Billie Holiday.
Amy disse uma vez que tinha nascido para ser mãe.
Não era de morte que elas queriam falar, era de vida.
Elas gostavam da vida, só não tinham a medida.
Alguém tem?
Abro os olhos e procuro rostos conhecidos pela casa e os há e se não os houvesse eu iria até a rua e veria rostos parecidos com os que vejo com meus olhos fechados, rostos que não me assustam mais, afinal, continuo não conhecendo a maioria das pessoas, que estão por aí, por perto, seus credos, suas rezas, suas certezas, seus medos, seu palavrório, seus silêncios, cigarros, copos, joggings, automóveis, seringas, latas de lixo, calções de banho, tubos de soro, biquínis, relógios de pulso, carteiras, bolsas, pés descalços, sorrisos com e sem dentes, as mãos estendidas, um assalto, uma esmola, um cumprimento.
Quando tiver vontade de morrer, faça que nem o cara da velha piada, que, quando tem muita vontade de trabalhar, fica quietinho num canto, até a vontade passar.
É de vida que queremos falar.
O tempo todo.

7.17.2011

COMENTÁRIOS E WOODY ALLEN

Um dos textos deste blog se chama "Para Karl Valentim". Já foi escrito há muito tempo, nem me lembro dele (claro que eu poderia ir até lá na gaveta do blog e buscá-lo, mas domingo não é dia de se mexer em gavetas). O que esse texto recebe de comentários é impressionante - apenas todos incompreensíveis, porque spam é algo incompreensível, tanto quanto aquele papel de propaganda que prendem no limpador do para-brisa do automóvel. Será que alguém pensa que de fato vamos comprar alguma coisa anunciada em um papel que se esparrama, se espana molhado, arranhando o para-brisa na hora em que começa a chover e ligamos o limpador, e este e suas borrachas, além de levarem de um lado pro outro o papel que se desfaz em tinta, ficam cantando uma triste canção, borrada, chorosa e irritante? Assim faz o spam, espanando, esparramando bobagem e porcaria na caixa de correio e na gaveta dos outros.

Hoje é domingo, dia de tirar da gaveta e da caixa porcarias e jogá-las fora, no lixo que não se recicla, apenas se renova de bobagens, e sem remexer no que mais estiver lá dentro delas, sem buscar mais nada, deixando lá dentro o que deve haver de bom, uma foto, uma carta, um bilhete, um número de telefone que já não se sabe mais de quem é.

Aqui em Floripa venta cinza, triste e ruidoso, depois de um sábado azul. As temperaturas já são mais amenas e amenas são as canções que tocam agora no rádio. Há um jazz, agora, e há o filme do Woody Allen em cartaz, Meia-noite em Paris, suas viagens geniais, Kathy Bates genial como Gertrude Stein, alguns perdoáveis clichês e estereótipos e a tentativa de explicar a mais inexplicável nostalgia, a de se viver em um tempo que não é o nosso. Há uma melindrosa das mais misteriosas e belas e há um certo sumiço que já valeria o filme. Não sirvo para crítico de cinema, não tenho pretensão maior que não a de ir de vez em quando assistir a um filme. Dessa nostalgia de que fala o filme, não sofro - ao contrário, me lembro de Oscar Niemeyer quando fez 90 anos. Ao ser perguntado pela jornalista algo relacionado à idade e à morte, respondeu: - Ah, ninguém quer deixar o espetáculo.

Nem os caras do spam, Niemeyer. Nem eles. Pena que o vento que sopra hoje seja mais ruidoso que a música suave que tocava há pouco no rádio.

7.03.2011

EU E A CAIXA DE CORREIO

Nem só de contas vive a caixa de correio - a tradicional, que já foi das cartas de amor, quando houve um dia em que “a marquesa saiu às cinco horas”. Domingo passado, eu ia saindo para me encontrar com minha mulher num restaurante, e o porteiro me veio com um envelope parrudo, “Não tinha como deixar na sua caixa de correio, Seu Mario”. Mas era para estar lá aquele envelope, se ele conseguisse passar pela fresta feita somente para os que trazem as contas e traziam as cartas, suas juras e seus ciúmes, assim o envelope queria, assim minha caixa de correio desejava. O porteiro completou, “Pode deixar aqui, o Sr. está saindo, na volta o Sr. pega”, e eu, “Não, meu amigo, isso é coisa muito especial, vou levar comigo”. No restaurante, com minha rima pobre e roubada, mostrei todo prosa à minha morena Rosa o livro que ganhei do Ronaldo Werneck, com suas deliciosas crônicas, “Há controvérsias 2”, com uma dedicatória só pra mim, e uma outra, a impressa, com vinte e dois nomes, dentre eles o do nosso amigo Carlos Sérgio Bittencourt. Outro é o do baterista Afonso Vieira, que, assim como o Ronaldo, conheci no apartamento do Leblon do Carlos Sérgio, os três de Cataguases, que então moravam no Rio. Rosa leu em voz alta o fechamento da dedicatória impressa - “22 amigos do peito, dois times mais-que-perfeitos” - e me disse, “Puxa, que coisa mais delicada”.

Tão delicada, Rosa, que me fez lembrar de quando eu e o Carlos Sérgio dividíamos a autoria de textos de teatro, de quando eu fiz parte de um elenco de uma peça dele, “Os visionários da noite”, encenada no Teatro da Praia, em Copacabana, e não faz tanto tempo assim, era um tempo em que eu trabalhava de dia e de noite em projetos de engenharia e o Carlinhos cismou de me convidar para ensaiar uma vez por semana, às 11 da noite, na Fundição Progresso, no velho centro do Rio, que aos poucos vem sendo remodelado, transformando armazéns e fundições, que estes me perdoem, em aproveitamentos bem mais interessantes, como bares, espaços culturais, antiquários com músicos e seus saxofones, assim é minha lembrança. (Ou minha imaginação?) Nos ensaios, no começo, eu não tinha texto: havia o receio de que, só ensaiando uma vez por semana, eu nunca fosse capaz de gravá-lo; mas, devagarzinho, o texto foi-se mostrando importante, foi sendo inventado, íamos inventando juntos, na hora, com sotaque gaúcho ainda por cima, porque eu contracenava com uma gaúcha, que depois se foi para Israel, e a irmã dela, como costuma fazer a vida em suas idas e vindas, veio morar aqui, em Florianópolis. (Ou eu estou errado, Rubens, André e Carlos Sérgio?)

Depois de inventado e escrito o texto, aconteceu o que se temia: todas as vezes eu o esquecia. Chegamos nos ensaios finais, com figurinos, cenário, no Teatro da Praia, e eu, errando o texto. Era engenharia demais me ocupando a cabeça. Mas... Na hora certa, com plateia no escuro, luz difusa no palco, o texto saiu inteiro, a figurinista, descrente quando me via claudicante nos ensaios, me abraçou depois da peça, o elenco todo se abraçava. Parafraseando Noel, fazer teatro é um privilégio, que não se aprende no colégio.

Ao meu amigo poeta, magistral em seus poemas concretos de “Doris by night”, meu amigo cronista, que ainda vai nos explicar porque a marquesa do Paul Valéry saiu às cinco horas, meu amigo Ronaldo Werneck: muito obrigado por me propiciar, além da leitura das suas crônicas, tantas boas lembranças, das noites no apartamento do Carlos Sérgio onde nos conhecemos e conversávamos até de madrugada, quando uma cadelinha chorava toda vez que ele perguntava, Cadê a Carla?, porque a Carla, filha do Carlinhos, havia saído.

Dona caixa de correio: as contas são suas; o livro do Ronaldo é meu; e as cartas de amor também.