7.06.2007

Meu Rio

O Rio que passa na TV é o da bala perdida, do PAN, da bunda, do Cristo Redentor, da Baía de Guanabara, do Pão de Açúcar, da Garota de Ipanema. É Copacabana. É o Funk, o Rap, o Tom Jobim, o Chico Buarque, o Cartola. É a Ana Maria Botafogo de atriz de novela. É um Rio de grã-finos, de novos ricos, de Barra da Tijuca, de pobretões, de uma mulher chorando a filha morta quando ela ia para a escola que fica na favela ou então no sinal, uma bala achada e não perdida, numa cabeça adolescente.

Um dia vou dizer do meu Brasil. Hoje eu quero é dizer do meu Rio, que não é o da TV. Não é o do Vinicius de Moraes nem o do Carlinhos Niemeyer, do Paulo ou do Oscar Niemeyer. Meu Rio é tão pessoal que não é nem Leila Diniz. Não é Fernanda Montenegro nem Banda de Ipanema nem Ponte Rio-Niterói. Não é Zezé Mota, como não é Sérgio Porto nem Nelson Rodrigues. Paulinho da Viola meu Rio não é, do mesmo jeito que não é torcida do Flamengo nem do Botafogo. Nem regata nem camisa de regata. Nem pivete nem garoto lavando o pára-brisa sem a gente pedir, nem sujeito vendendo amendoim de paletó e gravata, nem o rifle apontado para a minha cabeça. Não é Luma de Oliveira, não é Camila Pitanga, não é a sede do Jóquei Clube nem a serra de Petrópolis. A rua do Lavradio fica lá, o beco do Manoel Bandeira é perto, o gasômetro; nada disso é meu Rio.

Porque meu Rio é a cidade onde eu nasci. É um cheiro de peixe misturado com cheiro de asfalto. É um par de pés femininos caminhando à minha frente descalços. É uma areia de praia fazendo um barulhinho que deixou de fazer faz tempo, quando fazia um frio danado às sete da manhã dentro do mar e eu esperando onda pra descer de jacaré para ir pro colégio depois. De noite, uma bola de meia na calçada. Um pedaço de pizza no Beco da Fome, que em tempos que eu não vivi foi o das Garrafas, onde uma nata musical se formou. Lá, só fui capaz de comer pizza e puta. (Graças a Deus e graças às putas.) Meu Rio é meu pai serrando qualquer coisa, minha mãe fazendo sanduíche domingo à noite, uma mulher no prédio em frente trocando a roupa, loura, menos onde ela está sem roupa. Um par de seios e seus bicos. Uma barriga e seu umbigo. Um cão. Um doente que morde minha prancha de isopor e meu pai pergunta a ele, Você gostou? Meu irmão de tênis rasgado no bico; foi tropeção ou porta de elevador?

O câncer da minha mãe é meu Rio. E sua morte. A formatura do meu irmão, o nascimento da minha filha, meus tropeços nos cadarços dos meus sapatos. Escadas de uma casa no Cosme Velho e um sótão na Rua Umari. Bares proibidos, manhãs de dores de cabeça colossais, amigos e sua incomensurável tolerância para com meus vôos sem nave, minhas presenças ausentes. Meus amigos a não me ouvir porque miram uma face, uma bunda, um sorriso, uma possibilidade. Garçom, mais um chope, por favor. Meu primeiro casamento, seu desfecho sem morte, meus namoros. Uma inimaginável Florianópolis. Ou Minaçu. Ou Nova Iorque. São Salvador de El Salvador - ou do Tocantins. Poços de Caldas, Salvador, Bahia.

Minha mulher eterna.

O Rio não passa na televisão e nenhuma cidade passa e nenhuma vida passa. O que passa é o que fica. A cidade onde se nasce. O cheiro, o peixe, o cão, a mulher. A filha, o filho, os filhos. A opção: solidão ou companhia. Deus é a cidade onde se nasce.