2.28.2006

AH, SEGUNDAS-FEIRAS

Ah, Segundas-feiras.

Acordou bem disposto: era Segunda-feira de carnaval. Feriado. Gostava de pensar, Hoje é Segunda-feira e eu não vou trabalhar.

Era um dia de sol. Apanhou a namorada e dirigiram-se para a praia. Um certo engarrafamento já era esperado – afinal, era Segunda-feira e feriado, feriado de carnaval e com sol. Não eram os únicos a querer ir à praia.

Escolheu mal, a praia – e com insistência, como contaria depois. Ouvira falar muito bem de lá, queria ir àquela praia de qualquer jeito, embora ela tivesse argumentado, Hoje não é um bom dia, é dia de carnaval, tudo por lá vai estar lotado. Mas ele insistiu, Você é sempre muito resistente a qualquer idéia nova, se dependesse de você iríamos sempre aos mesmos lugares. Lembra daquela vez, em Parati? Não conheceríamos Parati se fosse por você. Vai valer a pena, me falaram muito bem dessa praia, vamos lá. Confie em mim.

E resolveu brincar com ela, para amenizar:

- Seu mal é bom-senso. Você é uma mulher que sofre de bom-senso – ele disse a ela, passando a mão carinhosamente na perna da namorada, com um sorriso. Ela, da sua parte, ficou séria, não achou graça, não. Ele pôs de novo a mão no volante.

Chegaram, duas horas depois do previsto, e a coisa não estava boa, não. A praia não era lá o que lhe haviam dito, a maré estava cheia e o bar em frente, muito ruim. Desandou a falar mal do Brasil, Como é que um país que quer se fazer de turístico tem um despreparo desses? Como é que o sujeito diz, Não estamos preparados para esse movimento? Pombas, então fecha o estabelecimento, ora!

Por insistência dele, almoçaram em outro lugar. Dessa vez, acertou: um bom restaurante de um bom hotel que permitiu o ingresso deles somente para almoçar, na frente de outra praia muito melhor. Ela já estava de bom-humor, novamente; ligou para a melhor amiga, Menina, uma roubada – mas agora está tudo bem. Ela desligou, com um sorriso nos lábios; ele desancou a argumentar, Você não tem maturidade. Que roubada foi essa, ora? Não mergulhamos, você não viu peixinho e tudo no fundo do mar, peixe com riscas, que nem uma zebra do mar, peixe transparente, peixe pequeno, peixe grande? Agora estamos aqui, de frente pro mar novamente, um dia lindo, boa comida e boa bebida, está reclamando de que? De umas horinhas no trânsito? Você precisa passar por uma roubada, para saber do que se trata, uma verdadeira roubada. Te falta isso.

Pronto: ganhou a discussão. Inapelavelmente. E perdeu a namorada. Inapelavelmente.

Ah, Segundas-feiras.

2.25.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- TRÊS: POR PARTE DA MÃE –

(4) (o último da cronologia:) O longo trajeto da chegada da mãe de Rita

A trajetória de chegada ao mundo da mãe de Rita foi tão longa quanto a de qualquer contemporâneo seu. Nada de novo – apenas para o menino Ricardo VI, com sete anos em 2010.

Ricardo VI não entendeu bem aquela história da pirâmide dupla, sua mãe lhe dizendo do mistério da ancestralidade, para cada ser uma cadeia imensa de casais, dois pais, quatro avós, cada um deles com pai e mãe, já contava oito, que, por sua vez, tiveram seus pais e suas mães, dezesseis, trinta e dois... De cima para baixo, um casal tem quatro, dos quatro, três procriam, um faz dois, ou três, outro dezoito, dos dezoito, quinze têm muitos filhos, uma filharada, uma netada, populando o mundo, gente fazendo gente, gato fazendo gato, cachorro fazendo cachorro, cobra fazendo cobra, mosquito fazendo mosquito, micróbio fazendo micróbio, macaco fazendo macaco. Aí pensou, em voz alta:

- Sou filho de Deus, mas descendo do macaco. Aliás, de uma grande macacada.

Rita andava exagerando um pouco nas doses de uisque que dera para beber naquele ano – pararia na terceira crise de vômitos e enxaqueca de dias inteiros - e, assim, a explicação veio um tanto confusa para o filho. Afinal, foi ela quem teve que contar a história da sua genealogia para o menino, de modo a satisfazer sua curiosidade, despertada pelo pai, que só queria se ensimesmar com os assuntos que tivera com o Coronel Fernando (que, mais tarde, sete anos depois, ficaria conhecido como O General). Ainda não havia as pastilhas multilingües; Rita falava um pouco em Inglês, um pouco em Português – nas piores partes da narrativa, pois, se normalmente, seu sotaque já não ajudava, o efeito de uns uisquinhos a mais obrigava o garoto a verdadeiros exercícios mentais.

Traduzindo a gravação feita por Ricardo VI e sem qualquer tentativa de aferição – pois nenhum interesse há em precisões genealógicas nessa narrativa, tão somente o de permitir que se perceba um pouco mais de alguns dos indivíduos com alguma relevância na Revolução de 2017 -, o que se pode contar é o seguinte.

Sarah Shaw Almanendez Chermont – este o sobrenome da avó de Ricardo VI. O Chermont já se sabe de onde veio, como anteriormente narrado. Shaw é sobrenome irlandês e Almanendez é espanhol – nada mais óbvio. O problema é que Rita quis encontrar seus antepassados principalmente na época dos primeiros espanhóis que se aventuraram nas costas do sudeste norte-americano, acompanhando Alvarez de Pindea, que descobriu a foz do Mississipi em 1519.

Onde hoje fica Nova Orleans, reconstruída após a tragédia de 2005, causada pelo furacão Katrina, que desnudou algumas varizes americanas, umas sociais, outras de postura de governo, havia uma vila indígena: Tchoutchuoma. Quando a expedição de Hernando de Soto descobriu o rio Mississipi e o desceu em direção ao México, entre os anos de 1541 e 1543, Tchoutchuoma já não existia mais. Supõe-se, na família da mãe de Rita, que foi nesta época que chegou ao continente americano o primeiro Almanendez.

Rita queria se convencer – mais que ao filho – que seu primeiro antepassado a chegar nas terras que, em 1682, com a expedição de Cavelier de la Salle, viria a ser batizada como Louisiana (e a cidade desaparecida em 2005, Nouvelle Orleans), seria um dos três heróicos náufragos que acompanharam Álvar Núñes Cabeza de Vaca, sobrevivente de um naufrágio, na sua incrível caminhada, nu em pelo, da Flórida ao México. Ocorre que, em 1542, Cabeza de Vaca estava na América do Sul – mais precisamente nas cataratas do Iguaçu. (No dia 31 de Janeiro daquele ano, em um canoa; deparou-se com as cataratas e gritou: "Santa Maria, que beleza!".) Sua caminhada pelo continente ao norte do hemisfério se iniciou em 1527, e ele e mais três pelados só reapareceram na Espanha oito anos depois; e foi da Flórida – separada da Louisiana por Alabama e Massachusetts - às imediações da cidade do México. Há, portanto, impossibilidades tanto temporais quanto geográficas nas suposições da família de Rita, e dela mesma, quanto a descender de um dos poucos desbravadores pacíficos de seu país e seus vizinhos, que chegou a ser tido como xamã por indígenas norte-americanos com os quais se relacionou (seu relato da sua viagem ao sul do depois português Brasil até terras atualmente paraguaias já descreve embates com algumas tribos sul-americanas).

Em compensação, Rita foi perfeitamente capaz, depois de vomitar um pouco, de descrever ao filho alguns dos feitos da família da mãe dela. Citou um advogado de pobres da Nova Orleans dos mesmos tempos da adolescência de Louis Armstrong, dois professores, um escritor e um engenheiro; mencionou uma tia chefe de cozinha, uma cantora e uma prima da sua mãe que é médica, a quem Ricardo VI conheceu, naquela estada em Orlando, onde passara a morar a família de Rita - sua cidade natal; falou de um trisavô fazendeiro que deixava seus escravos fugirem; e de uma romântica história de amor entre os pais dela, e nesse ponto Rita ficou muda.

No Rio, viu uma foto imensa de Pixinguinha ao lado de Louis Armstrong, os dois já com alguma idade, os dois negros, bons, músicos e seus instrumentos, seus sorrisos e lábios mudos e generosos, sua proximidade. Emocionou-se e pensou “Como eu e Ricardo estamos distantes”.

Já de volta, em casa, em Minaçu, em uma noite quando soprava uma brisa, o marido e o filho dormindo, Rita saiu de seu quarto vestindo somente uma calcinha. Bebeu água na cozinha, olhou-se no espelho da sala, desvencilhou-se da calcinha, jogou seus cabelos para trás. Ricardo V surgiu na soleira da porta para o corredor, admirou sua mulher ruiva apaixonadamente, abraçou-a; passou a crise que perdurava entre os dois, amaram-se no chão, tal e qual foram flagrados pelo filho, que não compreendeu o que viu mas percebeu que não estavam brigando, aquilo era um abraço, não era briga, não, que voltou ao seu quarto e dormiu outra vez.

Profundamente.

2.20.2006

O NOME DELE

O NOME DELE

Ele pouco sabia da empresa e seus chefes. Tinha perfeita noção do seu anacronismo – um negro de carapinha branca uniformizado, pilotando um elevador movido a manivela, com portas corrediças de madeira envernizada - como as paredes -, o grande espelho atrás de si, seu banco giratório de madeira almofadada em vermelho.

Começou pilotando aquilo quando havia um ventilador preso a uma das paredes. Naquele tempo, conhecia muito bem o chefe – aliás, o dono -, que subia e descia com ele diariamente e com ele conversava. Quando o dono estava com alguém, podia ouvir um pouco da conversa, aos sussurros trocados entre o chefe e quem o acompanhava, ou dela participar, sendo, inclusive, consultado. Por exemplo, se sapatos de cromo alemão ainda combinavam bem, se deveriam ser usados ou não.

Agora era diferente. Sabia que quem mandava chegava de helicóptero. Não havia mais ventilador; seu veículo era, agora, climatizado. Através dos anos pode perceber, no sobe e desce característico da sua profissão, que sabia não existir mais, a não ser ali, só a dele e para ele e naquele lugar, que o dono já não aparecia. Vieram americanos, franceses, africanos, árabes, japoneses, baianos, chineses, todos quase sempre acompanhados por alguém que concordava com tudo que eles dissessem.

Agora era ainda mais diferente. Seu transporte passou a ser um prêmio solitário. Quando um dos chefes – assim eles os imaginava – precisava pensar em solidão, não era no banheiro que se trancava: apertava o botão daquele elevador - o único do prédio – e da cidade – a operar comandado por uma pessoa presente o tempo todo - e ordenava: “Garagem”. “Térreo, por favor”. “Terraço – e, depois, térreo; térreo, não: sub-solo. Terraço outra vez e, depois, décimo. Foi no décimo que entrei, não foi?”.

Havia outros que ele tinha toda certeza – a de quem leva pessoas há muitos anos para cima e para baixo –que não eram chefes, mas, como podia perceber um certo sorriso em comum naquele tipo de indivíduo, – que freqüentemente usava saias ou, de calças compridas, seios - o mesmo de certos acompanhantes do dono de outrora, aos quais ele costumava convidar para subir ou descer no elevador em sua companhia – a qual, por si só, já era um prêmio, sinal de reconhecimento, antecipação de bom futuro -, sabia ser um prêmio o que trazia àqueles e aquelas sorridentes a companhia dele, silenciosa e profissional, porque a do chefe de antigamente tudo indicava já não ser mais possível.

Ele era a atração do prédio, da firma, do poder constituído ou em formação: um ser obsoleto, comandando um equipamento obsoleto.

Havia típicos espertos, que entravam ali sorrateiros, fingindo auto-confiança, comandando, terceiro, quinto, décimo, terraço.

Até que, um final de tarde, alguém que não conseguiu decifrar - se chefe, sub-chefe, puxa-saco, aspirante ou aventureiro - ordenou-lhe:

- Inferno. Depois o céu. E a realidade - por favor.

E o elevador andou sozinho, sem precisar que ele girasse a manivela, abrisse as portas de madeira envernizada com as mãos, ambas livres para fazer juntas seu sinal cortês, tão dele próprio e inseparável, mostrando que o andar pedido havia chegado, por aqui, por favor, seu andar é este.

Depois da cortesia, saiu caminhando a exibir seus sapatos de cromo alemão. Só ficou em dúvida aos olhos de quem: se da divindade, perversidade ou neutralidade. O que seria pior?

Jonas era seu nome; a baleia que se danasse.

2.18.2006

SEGUNDA PARTE:

UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- TRÊS: POR PARTE DA MÃE –

(4) O que foi que o General – quando ainda era Coronel – viu:

- A Inteligência do Exército, que vem se revigorando com o passar do tempo, de vez em quando entra em seara alheia. Por exemplo, na da Polícia Federal. Vínhamos acompanhando aqueles arremedos de espiões havia algum tempo. Sua reação, senhor Ricardo, foi muito adequada; o senhor soube tourear aquela gente. E foi por acaso que, atirando no que víamos, acertamos no que nem sabíamos que existia. Eles se isolaram no meio do nada na Chapada dos Veadeiros, formaram uma comunidade. Você entra, lê, pergunta, ninguém responde nada. Pra começo de conversa, não há conversa – nem uma única palavra: é o silêncio mais organizado que já vi. Entrei lá sozinho, na trilha, meus ajudantes se perderam de mim. Apareci fardado, portando um facão na mão para abrir uma picada e, na cintura, uma pistola automática. Uma menininha lourinha, com uns, sei lá, treze anos de idade, parada à minha frente. Associei aquilo com o tráfico de drogas, os meninos nos morros portando pistolas e fuzis, comunicando-se com os postos mais altos, informando a chegada de um intruso, metendo medo nele. A garotinha não portava arma alguma; apenas me olhou nos olhos firmemente, como se aquilo tivesse sido ensaiado, ou então como quem já está acostumado a encarar um invasor somente olhando nos olhos dele. Depois foi chegando mais gente, ninguém portando arma. Pertinho dali, a reserva indígena, dos avá-canoeiro. Se Dona Rita houvesse continuado com as pesquisas dela, teria achado esse povoado antes de mim. Lá dentro, tem de tudo: branco, preto, mulato, cafuzo, e não dá pra saber que língua eles falam – porque eles não falam, simplesmente não dizem uma palavra, pode perguntar você o que quiser. Sou um soldado, treinado – e, quer saber?, tive que servir à ditadura, sim senhor, com dezoito anos, 1976, um ano após a morte do Vladimir Herzog, eu tenho certeza de que o senhor, estudioso como é, sabe de quem estou falando; e de que época; que tempos! Sou um soldado, acostumado a enfrentar o inimigo, acostumado a fazer até o que eu nunca tive vontade nem convicção de fazer. Faço parte da Inteligência do Exército, conheço todas as manhas e artimanhas. E não consegui arrancar uma palavra que fosse daquela gente! Me ofereceram chá – acredita? Chá, biscoitos feitos lá, verduras, carne, sim senhor – nada lá é proibido. Uma aguardente muito saborosa, que não é de cana e não sei do que é, me ofereceram – sem dizer nada, só me mostrando a garrafa e o copinho. Bebi um pouco e dormi, no meio do mato, sem medo de cobra nem de onça, sem ser ameaçado nem por uma nem por outra. Acordei sozinho, perto da estrada, já não tenho certeza se sei voltar lá. Que lugar, rapaz! Que gente! Que diabos de sociedade construíram lá? Gente é igual em qualquer lugar, bom e mau caráter se revelando mais num, menos no outro, às vezes tudo de ruim num só ou meia dúzia, às vezes tudo no outro. Mas... o silêncio! Que silêncio impressionante! Já pensou, seu Ricardo Coração dos Outros de quinta geração, viver em absoluto silêncio? Num mundo sem palavras? Como viveria um escritor num lugar assim? Talvez bem, talvez bem; a palavra escrita deve circular por lá, não é possível que não. Mas como, se não existe a falada? Ou foi só uma farsa, naquela tarde-noite? Será que eu delirei? Acho que não.

2.14.2006

IDA E VOLTA A BRASÍLIA

Ele acordou de madrugada, tomou banho, vestiu-se no escuro e partiu para o aeroporto, não sem antes dar um beijo desajeitado no rosto dela, que, dormindo, respondeu algo parecido com Vai com Deus. Dirigiu na cidade ainda no escuro, naqueles momentos em que vícios e virtudes, assassinatos e paixões, sonhos e pesadelos, espancamentos e apedrejamentos não podem ser vistos; quando só se expõem umas poucas freadas bruscas, algumas colisões mortais, um cachorro vagabundo, um corredor insone, um mendigo. Encarou a fila do check-in, esperou pacientemente a emissão do cartão de embarque, tranqüilizou-se ao saber que não ficaria em um assento de meio, desajeitado, espremido, incomodado. Tomou café com pão de queijo, foi para a sala de embarque, embarcou.

No avião ouviu os discursos de praxe, dormitou um pouco, acordou com o próprio ligeiro ronco. O comandante disse qualquer coisa como “nosso estimado de pouso”, referindo-se ao horário previsto para pousar em Brasília. No chamado “procedimento de descida” – viajante contumaz, freqüente, no mínimo semanal –, resolveu prestar atenção ao que a aeromoça dizia: “Afivele o cinto de segurança, retornando o encosto da poltrona para a posição original e mantendo a mesinha da poltrona da frente travada.”. E se alguém, algum dia, realmente tentar fazer as três coisas ao mesmo tempo?

Brasília – era fevereiro – manteve-se com boa umidade mas sem chuvas, temperatura amena, exceto na reunião de que participou. Viera para isso; fazer o quê?

Não há tempo nem espaço para contar o dia dela como foi, fica para uma outra vez, mas foi um dia bom, com alguns momentos difíceis, intensos, a vida profissional anda muito corrida, as pessoas, muito nervosas, todos se cobram muito e aos outros também, o trânsito andou um pouco parado em alguns momentos, crianças na rua se fazendo de malabaristas, quem foi que ensinou isso a elas e pra quê?, a maior das burrices, a exclusão, o mar aliviou um pouco isso tudo, é doce morar no mar, perto do mar, em cidade litorânea.

Ele voltou no vôo das vinte e vinte e oito, com vários políticos a bordo. Nesse horário costuma sentir-se enjoado, mas sem vomitar; com sono, mas sem dormir; entravado, preso, cansado.

No saguão do aeroporto viu sua imagem refletida: era agora uma cama de armar barata, que desarmara entre a parede e o guarda-roupa de um quarto vagabundo, com cheiro de tábua de passar. Vive assim até hoje; nunca mais se reencontraram.

2.11.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- TRÊS: POR PARTE DA MÃE –

(3) Outras Dinastias: a do pai de Rita

Se Satchmo já tivesse idade, teria sido em outro estabelecimento que não o de Henry Ponce que teria iniciado sua carreira na música profissional.

Poucos anos antes de Lima Barreto escrever a biografia de Policarpo e seu professor de violão, Ricardo Coração dos Outros, quando Louis Armstrong (Satchmo) jogava tijolos em um dos namorados da mãe a quem presenciara batendo nela, jurando-o de morte pelo resto da sua vida iluminada, com direito a detenção na “Colored” Waif’s Home for Boys - não pelos tijolos, mas por uns tiros para o alto com o 38 que encontrara em casa de um outro namorado de Mayann, como ela era chamada -, Chermont la Belle cuidava de sua honky-tonk com mais zelo que qualquer creollo macho da Nova Orleans daqueles anos de estréia do Século XX.

Não se pode acusar la Belle de vida indigna; dava emprego a músicos e moças que precisavam de um lugar para proporcionar diversão a homens solitários e enfrentava concorrentes invejosos no braço, sempre que preciso. Entretanto, haverá quem considere ainda mais digna a vida de André Chermont, que por lá chegou quando da retomada do território da Louisiana pela Corte Francesa, em 1731. Não se sabe bem o que foi que ele fez, mas é tido como herói pela família por ter sido capaz de resistir aos índios natchez e aos ingleses - aos quais foi cedida Nova Orleans após a Guerra dos Sete Anos, quando Espanha e França foram aliadas, e à segunda foi reconhecida pela primeira a posse de tudo ali à leste do Mississipi que Nova Orleans não fosse.

De André a la Belle, muito originalmente Louise de batismo, houve um rico na família, que prosperou do algodão e se tornou um nobre: André Joseph Levitt Chermont II – título que ignorou dois ou três Chermonts entre o pioneiro e ele, em um período de cerca de cem anos. Aí por volta de quando Ricardo Coração dos Outros fugiu do Rio de Janeiro com sua Olga, quando Nova Orleans já era Estado Americano, Chermont II faleceu, deixando em vida, além de umas filhas que desapareceram Mississipi acima com ou sem maridos, um tuberculoso André Joseph Levitt Chermont III com cinqüenta e cinco anos, sobrevivente da Guerra da Secessão, cuja mulher, Jean Marie Stweart, passava dias e noites trancada em seu quarto, imitando sons que ouvia de uns poucos negros que ainda roçavam por uns poucos cobres lá fora, no que restara da um dia fazenda, a essa altura, já um tanto arruinada de pragas, melancolia e abandono. Dos quatro filhos que tivera, três foram homens; os três morreram antes dos dez anos. Dois anos depois, pai e mãe infortunados pela guerra e a morte prematura de três dos quatro filhos morreram dentro da casa decadente do que fora espécie de palácio rural de Chermont dito II, não se sabe se voluntariamente ou não; o fato é que um dos negros que acabaram ficando por lá, de posse informal da terra ou do que dela restara foi à cidade cantar para Louise la Belle, que já estava com seus trinta e cinco anos e iniciava sua carreira de proprietária de uma honky-tonk – nunca teve nada de bela, o apelido era do mais cruel sarcasmo -, a canção que permaneceria na família do pai de Rita para sempre:

A woman-bird sings and sings
A woman-bird sings and sings
Index, middle, little finger
Index, middle, little finger

Fine three fingers, sweet three rings
Fine three fingers, sweet three rings

Who’d stolen woman’s rings?
Who’d stolen woman’s rings?

No more fingers, now’s your turn
No more fingers, now’s your turn

Now’s your turn you brave thumb
Now’s your turn you brave thumb.

La Belle quis passar a se chamar Chermont the Thumb, mas já não era mais possível mudar de alcunha, o que poderia, aliás, prejudicar seus negócios. Mas, que negócios? - ela se perguntou. La Belle vendeu sua honky-tonk, ingressou no Charity Hospital, foi aprendendo novo ofício. Dez anos depois, lá conheceu um convalescente muito mais moço que ela, tão ou mais carente que ela. Casaram-se. Foi mãe adotiva de Charles Chermont Stevens, aos quarenta e sete anos, abandonado a presumíveis quatro meses de seu nascimento na porta do Charity. La Belle – melhor dizendo, Louise Chermont Stevens – foi a trisavó de Rita. O Stevens desapareceu com o tempo; Charles era negro.

2.07.2006

O INGLÊS, O PORTUGUÊS E O AUSTRÍACO

Aconselhava Bernard Shaw que mulheres deveriam fazer o possível para casar e os homens o impossível para não casar. Não se sabe ao certo se o conselho continua válido, nesses dias de 2006. Mulheres das classes alta e média são criadas para a auto-suficiência; se ficam nas casas de seus pais até concluirem o após-pós-doutorado, aí é outra coisa, de conjuntura, tempos difíceis, muito concorridos. Homens desses mesmos tempos e classes passam pela mesma situação. Nas classes mais baixas, a dificuldade é tanta, mas tanta, que é a mesma de sempre: pouco emprego, de faxina, de pedreiro, de perda do emprego de pedreiro e consolo na cachaça e tome porrada na mulher, faxineira. Não é de se presumir que o conselho do inglês teatrólogo seja dos melhores para essas classes, isto é: todas. Nas baixas, é porrada na certa; nas altas, ganhar dinheiro é preciso, viver, já não se sabe - que nos perdoe o poeta português.
Outra questão a pensar é que homens se esforçaram tanto para ser tidos como atletas do sexo que muitas mulheres gostaram da idéia e passaram a exigir deles um desempenho digno de premiação. Perguntas do próximo vestibular: (1) O Viagra foi inventado por (a) Homens (b) Mulheres (c) Pink e Cérebro; (2) Sua invenção se deu para (a) Resolver problemas de ereção (b) Criar problemas variados (c) Você não tem nada a ver com isso.
Mas algumas respostas são certas e atemporais: (1) Mulheres são mães desde o dia em que nascem; (2) Homens são filhos desde o dia em que nascem; (3) Quando se casam, é assim que se comportam.
Tanta volta, somente para uma vez mais dar razão a ele mesmo: o austríaco Freud. Calma! E mulheres, enquanto não se casam, são mães ou filhas?
Enquanto não se casam.

2.04.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- TRÊS: POR PARTE DA MÃE –

(2) O Café da Manhã com o General

- O senhor me chama de general, mas sou coronel.

- Desculpe, é que não sei distinguir fardas, quer dizer, seus sinais, suas convenções, seus... Desculpe, não foi por mal – explicou-se Ricardo V.

- Não há de quê. Não sei ainda se vou chegar a esse posto, o de general. Quem sabe, só na reserva.

Na véspera, o General – que ainda era e continuava sendo na manhã seguinte Coronel – começara a falar do lugar estranho que conhecera, perto de Minaçu, onde teve contato com um silêncio coletivo. Mais que isso – ou menos ou tanto quanto – significativo. Aflitivo! Encontrara a palavra em algum momento da conversa. Ricardo V, porém, não conseguiu prestar atenção na medida necessária ao que o militar dizia; arranjou, então, de convidar aquele que viria a ser uma das principais personagens da revolução de 2017 a tomar café com ele, no hotel onde estava hospedado, com Rita e o filho deles, Ricardo VI.

Quando chegou ao quarto do hotel para dormir, foi um mal estar tremendo. Ricardo V, que pouco bebe, chegou tonto e confuso do jantar. Rita estava acordada, com um copo de uisque nas mãos, sem gelo, mas meio aguado. O menino Ricardo VI dormia. Ricardo V arrancou do corpo a roupa que usava e jogou-a aos cantos, no chão, em um resto de poltrona, já parcialmente ocupada por roupas da mulher, Rita, e irritou-se com isso, com a desorganização, ao mesmo tempo em que precisava dela, da desorganização (do abandono, do esquecimento). A conversa com o General (que ainda não o era) fora perturbadora, ainda ou porque incompleta. Despertou na manhã seguinte ligando para a agência de viagens adiando por um dia a ida da família para os Estados Unidos, à revelia e sob protestos veementes da mulher e do filho, uma dor de cabeça desagradável, insistente, uma espécie de isolamento acústico entre crânio e cérebro, um incomodamento na nuca, nas têmporas, uma irritação, tudo à flor da pele, à beira da exaustão. Avisou, então, que tomaria café com o General (assim ele o percebia).

- Eu e seu filho, ficamos no quarto, escondidos? Com medo desse General?

- Claro que não – Ricardo V respondeu à sua mulher.

- Vamos todos tomar café com ele? – quis saber Ricardo VI.

- Não, não dá, filho, é preciso que eu saiba, afinal, do que é que o General quer falar comigo, que história é essa, de comunidade secreta em Minaçu.

- Secreta? Em Minaçu? – perguntou Ricardo VI.

- Perto, perto de Minaçu.

- Onde? – quis saber Rita. A resposta de Ricardo V foi mal-humorada, típica de quem está inquieto, inseguro, aflito, tudo agravado por uma ressaca, mas nem tanto.