10.22.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005


- CAPÍTULO TRINTA E UM –

Da porta aberta da casa putridamente decadente, via-se o Ogro somente de short, sem sapatos e sem camisa. Sua cabeça branca de cabelos rentes e seu sorriso lhe davam um ar simpático, e despertaram no visitante em trajes civis, que batera à porta, um forte sentimento de pena. O Ogro, ainda demonstrando surpresa com a inesperada e desconhecida visita, empurrando com os pés uma cadela vira-latas muito suja, convidou-o a entrar e sentar-se. Ricardo Coração dos Outros II apresentou-se, esclarecendo que era um correspondente de guerra brasileiro, em razoável italiano. Ainda de pé, examinou mais detidamente o Ogro: uma enorme e despencada barriga, lanhada de feridas vermelhas; o tórax, muito suado, como o gordo pescoço; a canela da perna direita com uma ferida exposta, sem curativo e aspecto nojento; o olho esquerdo sem cor nem expressão; o direito, azul e arregalado, ainda perfeitamente capaz de expressar os sentimentos do Ogro, além de uma aterrorizante vivacidade, quem sabe, própria do olho e não dele, Ogro.

Ele ofereceu um cigarro que Ricardo II aceitou. Insuportável: cada tragada era um soco dentro de cada um dos pulmões. O Ogro disse assim:

- Vejo você como se estivéssemos dentro d’água. Não vejo seus olhos, apenas seu vulto. Não se impressione com meu olho, tive um derrame de manhã dentro dele, o que não causou nenhuma diferença: já via todo mundo como se todos estivéssemos dentro d’água o tempo todo, nada mudou, tudo continuou igual como estava antes.

(Não para ele, Ricardo II, como confessaria mais tarde ao seu amigo, trisavô de Danilo S., um dos mais conhecidos PCR da atualidade. Ricardo II, ainda que houvesse presenciado a algumas das barbáries da guerra, homens cujas pernas tinham sido arrancadas, outros, os braços ou a cabeça, não conseguia encarar o Ogro e seu olho derramado. Nem fumar seu terrível cigarro.)

O Ogro deu uma profunda tragada, coçou e arranhou um pouco mais o ventre e perguntou a Ricardo II:

- O que você quer comigo?

- Entrevistá-lo.

- Por quê?

- O Senhor desde o começo dessa guerra disse que Mussolini era nada mais que um fantoche de Hitler.

O Ogro suspirou profundamente e balançou a cabeça. Explicou que não usava mais os cinzeiros da casa porque não conseguia enxergá-los, e deixou Ricardo II à vontade para se desfazer das cinzas no chão. Ricardo, discretamente, largou e pisoteou no chão o cigarro que lhe dera o Ogro e acendeu um dos seus, que trouxera no bolso da camisa.

- Você é quem? O que é que você veio fazer aqui? – quis saber o Ogro.

- Sou um correspondente de guerra brasileiro - repetiu. Admiro seu idealismo, sua repugna ao fascismo e ao nazismo. Deu um largo sorriso e completou: - Admiro sua esperteza em manter-se escondido aqui mesmo, na Itália, nas barbas de Mussolini e de Hitler, depois de ter feito ataques tão contundentes e brilhantes contra o fascismo, o eixo e o nazismo. Seus textos, suas falas, seus discursos e conferências, logo no começo... Quanta coragem e precisão!

O Ogro levantou-se, “Você me dá licença um instante?”, ao que Ricardo respondeu, “Claro, claro que sim”.

O Ogro não demorou muito; voltou com uma Lugger, pistola alemã, e, diante do olhar atônito do correspondente de guerra brasileiro, disse a ele:

- Detesto idealistas - e meteu uma bala em Coração dos Outros II. Depois, deu um tiro em seu próprio olho, o opaco, atacado por um derrame na manhã daquele dia, caindo fulminado sobre seu corpo obeso e cheio de feridas. Seu olho bom continuou aberto e vivaz, mirando o teto, de dentro d’água.

A caminho de uma enfermaria de guerra da Força Expedicionária, a FEB, Ricardo II morreu - não sem antes dar seu relato ao amigo, trisavô de Danilo S., do que lhe acontecera na tentativa de entrevistar o Ogro, opositor de primeira hora a Mussolini. Fora chamado de Ogro pela imprensa por causa do olho direito, sempre azul e vivaz, e não pelo esquerdo, derrotado por um derrame de manhã e um tiro à tarde. O homem que passara a ver o mundo totalmente fora de foco por conta de um avançado estado de diabetes, que permanecera o tempo todo escondido na própria casa, na sua própria e derrotada Itália. O Ogro. Que se matara, depois de dar início ao fim da vida também de Ricardo Coração dos Outros II, quando este mal completara seus quarenta e cinco anos, pai de quatro filhos. Não fosse Danilo S. e ninguém saberia de nada disso.

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