A crase não foi feita para humilhar ninguém (Ferreira Gullar).
Hermenêutica e Propedêutica se
encontravam na farmácia de Hermético para acabar com a peste da Epistemologia. Mas
foi no Palácio de Vernáculo que Vocabulário disse à terceira:
- Tu és a pior de todas – isso na
frente de Etimologia, amante da ofendida e princesa, rival da rainha Erudição.
Esta, percebendo na contenda uma oportunidade, potente em postura e volume, ordenou à sua premirère
femme de chambre:
- Cultura! Mata o povaréu a
paulada!
De Rubem Braga a LF Veríssimo,
brincar com o sentido das palavras não é nenhuma exclusividade. Na fábula
metafórica acima, Cultura, mesmo sendo humilde dama de quarto da sua ama e senhora
Erudição, tem o poder de funcionar como madeira de dar no povo. Afinal, no
Brasil, se não for a cultura em sentido amplo, das tradições e dos costumes do
povo, fica restrita a poucos, deixando a maioria entregue a manipulações de
variadas ordens, ainda mais agora, relegada a uma caixinha esquecida em um
organograma que ninguém conhece, muito mais para destruí-la do que
fortificá-la. Já a poderosa Erudição é o que a Cultura é em nosso país, só que perfumada
de enfado e arrogância. Pelo mesmo motivo, a farmácia da fábula pertence a
Hermético, do deus grego Hermes, entre outras coisas senhor de conhecimentos
nunca dantes revelados. Nem depois.
Mesmo assim, e mesmo tendo acesso
à cultura, à educação e à informação, ninguém que não faça uso corriqueiro das
palavras empregadas com significados diferentes dos seus verdadeiros na metáfora
tem obrigação de conhecê-los. O que isso tem a ver com a Constituição logo se
verá.
É claro que epistemologia não é
palavra usual, tampouco uma peste. É preciso recorrer a um bom dicionário (há
alguns confiáveis inclusive na internet) para saber ou mesmo lembrar que
episteme significa ciência, e logos, teoria, em grego, língua do deus Hermes e
seus pares. Trata-se portanto da teoria da ciência, do conhecimento, da
cognição. Por sua vez, a que assistiu Vocabulário ofender Epistemologia e
responde por Etimologia é a ciência que permite encontrar o significado
original dos vocábulos, ou das palavras. Já o Palácio de Vernáculo, ora, é o do
vernáculo, do escravo nascido na terra do amo, por isso significa aquilo que é
próprio de um país - por exemplo, a língua. Quem nos ensina isso é o Dicionário
Houaiss. Antigamente se dizia que dicionário era o pai dos burros, e burro é
teimoso por não querer obedecer ao amo, ao senhor humano; só que, em matéria
humana, burrice é teimar em não recorrer aos dicionários.
Só faltou falar das duas que têm
nomes de remédio, que também vêm do grego, o que não é o caso de vocabulário e
vernáculo, que se originam no latim. Como não falamos grego (nem latim), vamos
aos dicionários novamente.
Tanto no Houaiss como no
Dicionário Filosófico de Japiassú e Marcondes, veremos que propedêutica
corresponde ao estudo introdutório para conhecer uma ciência. E é a
hermenêutica – técnica ou ciência para interpretação de textos, originalmente
religiosos, bíblicos – que, em matéria jurídica, consiste em um conjunto de
regras ou princípios para interpretar as leis.
E aí chegamos à Constituição.
Juízes e ministros do STF que
põem em liberdade alguém que muitos gostariam que fosse mantido preso se
baseiam na lei, porém sem às vezes levar em conta outros instrumentos legais –
outras leis e a jurisprudência, que nos tribunais anglo-saxões se chama de
precedentes (precedents), ou julgados precedentes, – e a doutrina: o
ensinamento de juristas. Nesses casos de soltura estranha para a maioria, a
hermenêutica pode se basear na letra da lei, que determina com critério e
precisão quando, e por quanto tempo, se pode privar uma pessoa da sua
liberdade.
Recentemente, um ministro do STF,
conhecido por frequentemente devolver a liberdade a alguém que acabou de
perdê-la, defendeu renovar os mandatos dos então presidentes do Senado e da
Câmara por achar que uma leitura sistêmica da Constituição seria capaz de
demonstrar que o constituinte não queria dizer o que disse, justamente no
artigo em que a palavra usada é “vedado”. Quem veda proíbe alguma coisa a
alguém, ensinou a sua professora, assim como uma colega do referido ministro
ensinou a ele. Só para lembrar, hermenêutica é a ciência ou a técnica da
interpretação de textos. Se há ou deveria haver limites para uso da
hermenêutica em matéria do direito, como ou quais seriam e quem os determinaria,
foge muito à nossa despretensão.
Mas, se para a justiça brasileira
criássemos outra fábula e a levássemos para o cinema, sem dúvida a celebridade
seria a Prisão Em Segunda Instância. Já estrelou
vários episódios como vilã e vários outros como mocinha, a depender de quem
assistiu ao episódio da vez e quem com ela o estrelava, principalmente no lado
réu, e réu, bom também lembrar, é quem se defende. O motivo está no uso da
hermenêutica, remédio para uns, purgante para outros, é só saber de que lado
estão uns e outros no momento da interpretação do texto legal, que sempre
estará associada a argumentos da defesa e da acusação. Mas quem decide é quem
julga.
Nossa celebridade, como não
poderia deixar de ser, teve e sempre terá como coadjuvante, diga-se, candidata
ao Oscar, ela de novo, a hermenêutica, principalmente na interpretação de três
incisos do art. 5º da Constituição Federal - a depender de quem julga, sem a
eles se limitar:
Art. 5º. Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
LIV
- ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal;
LV
- aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes;
[...]
LVII
- ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória;
[...
– o artigo 5º possui 78 incisos].
As palavras-chave são Princípios
Constitucionais: Devido Processo Legal; Contraditório; e Ampla Defesa. O
Trânsito em Julgado se dá quando a última instância provocada pela defesa ou
acusação dá seu veredicto. É de se ter a curiosidade de ler voto a voto os
julgados que fizeram a prisão em segunda instância ora ter sido constitucional,
ora inconstitucional. Mas por ora ficamos por aqui, propedêutica, hermenêutica
e quem sabe hermeticamente, embora a intenção fosse a oposta. Fato é que, se
ninguém tem o direito de alegar o desconhecimento da lei, ninguém tem o direito
de tirar conhecimento de ninguém nem negar a cultura a ninguém. É vedado deixar
quem quer que seja na escuridão da ignorância.