5.28.2018

DA GREVE E OUTRAS COISAS MAIS


O Brasil tem um privilégio chamado matriz energética. Água, sol, vento, biomassa, carvão, óleo. De repente, percebemos que já tivemos ônibus elétrico, trem, que poderíamos continuar a ter e tendo mais e mais e melhor transporte público e de cargas. Não temos, como não temos diversas outras coisas, porque, no Brasil, há quem ganhe muito dinheiro e poder para que as coisas deixem de existir, não existam, ou só existam quando alguém decida que o que todos querem atingiu o preço que o tal alguém queria. Outra discussão que surgiu possa, talvez, ser simplificada. Ou, ao contrário, sofisticada. Uma administração supostamente inspirada em Keynes deixou prejuízos, e a resposta foi provavelmente inspirada em Friedman, ou Mises. Usar a Petrobras para, segundo quem o fez, segurar a inflação nos recolocou de súbito como proprietários que sempre fomos da empresa, do mais miserável ao mais rico de nós. No momento em que nos é exposta nossa fragilidade em matéria de energia e logística, em paradoxo com a matriz de fontes energéticas de que dispomos, nos recolocamos na posição que nos é mais perceptível – a de consumidores da Petrobras. O que faremos? Outubro neles. Mas, e depois? Voltaremos a criticar, a nos paparicar ou a nos odiar nas redes, e ponto? Ou tuitar? é manifestação política? Para que serve? A quem serve? Ao Trump? Ah.  Empresários têm suas federações, os empregados, os sindicatos, lojistas, suas câmaras, há as ONGs e as associações de bairros... Por que não voltar a acreditar em maior grau, nessas representações e na força que podem ter? Por que não fazer por onde, para que elas possam ter ou voltar a ter credibilidade e representatividade? Se nos colocarmos em um terceiro papel que exercemos e do qual raramente nos lembramos - o de patrocinadores, pagadores, para não dizer patrões, dos nossos representantes - nas prefeituras e câmaras de vereadores, no legislativo e no executivo -, talvez finalmente nos caia a ficha, nesses tempos em que já não existem orelhões. Assim como trens, ônibus elétricos...

Boa semana.

5.05.2018

REALEZA E REALIDADE

Passei alguns dias no Rio em boa companhia. Revi meu irmão, amigos, um primo,  e tive bons encontros a trabalho. Rosa voltou para Florianópolis na terça. Como eu tinha compromissos ainda no Rio na quinta de manhã, fiquei por lá e, na quarta, resolvi dormir cedo. Não sem antes flanar, não mais que flanar. Numa rua de Copacabana, passei por um acolhedor autodenominado café-bistrô. Vazio. Além de varanda, lá dentro, livros. Fui até a Avenida Atlântica e voltei devagar, na esperança de ver gente no café-bistrô. Dei sorte. Na varanda, um autêntico rei zulu, com roupa de academia de ginástica, conversava com uma rainha, que Cony teria reconhecido como sua alemã de coxas teutônicas. Pois eu as vi tectônicas. Entrei e pedi uma mesa de canto, com vista para a varanda. Dentro, na minha frente, mais alemães. O homem usava uma camisa-polo verde, mostrando por baixo da gola em V uma camiseta branca. Gosto de usar camisetas por baixo: o ar condicionado me incomoda menos e, sob o sol, no sentido literal, não suo a camisa. O alemão tomava uma cerveja e, ao seu lado, uma mulher bebia vinho. Junto com eles e de costas para mim, uma senhora magra, elegante, de cabelos longos e grisalhos, tomava um chá. Pedi ao garçom uma Serra Malte e uma porção de presunto de Parma. Fui à estante, peguei um exemplar de Júlio César, de Shakespeare, em tradução de Carlos Lacerda. Personagem e tradutor me lembraram (ou inspiraram?) um poema que escrevi faz tempo, mais ou menos assim: Atropelamentos, estupros, assassinatos, cidades são contos de fadas comparadas ao Poder. Cenários, é o que são. Nas páginas do livro, anotações a lápis, típicas de alguém que pretendia montar a peça. Terá conseguido? Três casais brasileiros de idades variando entre vinte e poucos e setenta anos ocuparam suas diferentes mesas. A última disponível do lado de dentro, ao lado da minha, deu lugar a um jovem casal de ingleses. Pelo celular, ele disse a alguém estar interessado em alugar uma casa na Paqueta, tinha gostado muito da Paqueta. Achou o preço caro e agradeceu, enquanto eu pensava, puxa, nunca fui a Paquetá. Na varanda, mais alemães: dois casais, ao lado da conterrânea de coxas tectônicas, que, diga-se, fumava muito. Já fui fumante, sei como é. Perguntei ao garçom se eu poderia comprar o livro que, buscando a luz e olhando em volta, meio que relia. Ele me disse que o levasse de graça, que o trouxesse de volta ou mesmo outro, que eu quisesse deixar por lá. Depois de um honesto escondidinho de camarões e mais uma Serra Malte, pedi a conta e, sem perceber, deixei a paz lá dentro. Na calçada, um sujeito veio ao meu encontro abruptamente em diagonal; eu me esquivei, ele postou-se encostado junto à porta de uma loja fechada, acho que procurando alguém mais desatento. Claro, pode ter sido coisa da minha cabeça. Mais adiante, duas potenciais princesas zulus, pobres moças esquálidas, miseráveis, riam a risada que a desgraça ri. Agora era real. Tudo era real. Enquanto eu esperava para atravessar a rua, outro sujeito, portando um porrete com uma corrente, veio ao meu encontro gritando palavrões. Era da minha altura. Os olhos mais azuis que já vi olharam dentro dos meus, me demonstrando revolta, ameaça, não. Seu dono me perguntou: Eu tinha ou não tinha que dar nele? O cara estava batendo na mulher, grávida, eu tinha ou não tinha que bater nele? Eu respondi. Sim. Quem quiser que me julgue. Ele foi embora, na direção oposta à minha. Não tinha percebido, os casais de alemães da varanda do café-bistrô já haviam me passado, e caminhavam calmamente à minha frente. A sorte estava com eles. E comigo. A paz não. Em seu lugar, uma risada. Só me falta cumprir a promessa e devolver o livro, pessoalmente ou pelo correio, ou mandar outro em seu lugar.

TÚNEL DO TEMPO

No túnel do tempo, o general Figueiredo comia um churrasco com outros generais, e um repórter lhe perguntou: Quando o senhor vai fazer a abertura política? Quando eu quiser, respondeu o general. E quando o senhor vai querer?, insistiu o repórter. Figueiredo encerrou o assunto respondendo, Quando eu quiser querer. Seus convivas deram uma sonora gargalhada. Já nesses tempos de minha casa, minha vida, ontem, sim, parece que foi ontem, um outro repórter perguntou ao atual presidente sobre o inquérito na Polícia Federal da filha dele, sobre quem teria pago a reforma da casa dela. Temer respondeu: registre meu sorriso. Seus correligionários lembraram aqueles de Figueiredo, com mais uma sonora gargalhada. Mais um sinal de que vivemos outro fim de ciclo. Só não seja quando o Temer quiser querer.