9.12.2015

REALIDADE, SONHOS, VIAGENS

Nesses tempos de governo, para dizer o mínimo, irresponsável, perdido e negligente, com nosso tão duramente conquistado real perdendo valor, para não se ensimesmar em turvos pensamentos é preciso perder o juízo, sonhar e viajar. Foi o que Rosa e eu fizemos, em rápidos e inesquecíveis dez dias.

Nelson Rodrigues dizia que o único inglês de verdade era o Antônio Callado. Quase conheci um segundo no ano passado em Londres, mas, por um detalhe, deu pra ver que Nelson como sempre estava certo: o sósia de John Hurt – que tampouco é de verdade, porque só faz personagens e sempre brilhantemente – lia, mas em um tablet. Há reis e rainhas, mas são realeza, não realidade. Desta vez, tomamos café da manhã em um lugar que também não existe, chamado Café Mignon, na City of Westminster, perto da Victoria Station. Lá tem um jardim interno onde chove enquanto lá fora faz sol, uma inglesa que fala alemão, mas que pode ser uma alemã que fala inglês, um libanês, e uma provavelmente inglesa a quase contrariar Nelson. No Convent Garden, uma banda de violinos e violoncelos tocava e cantava e dançava, enquanto bebíamos vinho branco. Perto do Café Mignon, jantamos pizza servidos por uma furiosa jovem italiana, enquanto outra, não sei de que nacionalidade, me olhou de cara feia porque espirrei. Claro: Antônio Callado jamais espirrou.

Fomos de trem a Manchester, onde apresentei um segundo trabalho em coautoria com meus amigos Baltazar Guerra, PhD nascido em Portugal radicado no Brasil, e Alek Suni, economista americano descendente de finlandeses, no Simpósio Internacional de Adaptação às Mudanças Climáticas, na Manchester Metropolitan University. Como era tudo um sonho, erramos de vagão no trem, mas ninguém nos expulsou. Fomos de ônibus a Notting Hill, escrito errado por eles de propósito, porque o certo seria Nothing Hill, pois é lá que fica Portobello Road, que só existe em canções. Em outro trem, fomos a Chester, que também não existe, já que é medieval e tem uma loja de City Tan, de bronzeamento artificial, que confundi com City Tour, para desespero das atendentes e da Rosa. Em Chester foi que aprendi que Manchester é pró e paroxítona: se pronuncia MAN-Chés-ter. Na França, seria oxítona; mas era Paris, outro lugar inexistente.

Hemingway a chamou de festa móvel, e quem se atreveria a dizer que ele estava errado? Lá, passeamos de dia e com sol e de noite e com sol. Visitamos jardins, andamos a pé e de barco e de triciclo, nos perdemos e nos achamos. Em um show de Gospel na igreja de Saint Julien le Pauvre, um casal muito jovem ficou noivo no final do espetáculo, e Rosa tirou nossas alianças da bolsa. Disse a ela que as guardasse, porque nossa festa seria somente nossa, assim como aquela seria somente dos dois no altar, tendo os músicos ao seu redor. E assim foi: no Closeries des Lilas, restaurante que era frequentado pelo mesmo Hemingway, pedi ao pianista que tocasse Tom e Vinicius. Em frente ao piano, ao som de Eu sei que vou te amar, trocamos nossas alianças, e o emocionado pianista me disse ter sido a primeira vez em sua experiente carreira que isso acontecia. Sem nunca termos nos separado, vamos nos casar outra vez, agora com direito a juiz de paz.

Termino voltando ao mundo real e parafraseando Fernando Pessoa. Na Europa, a tão duramente conquistada paz se funde com o drama dos imigrantes. No Brasil, o Governo mente. Mente tão descaradamente, que finge ser mentira a mentira que deveras mente.


Sigamos, enfrentando a realidade, sonhando, viajando. Bons sonhos, boas viagens, bom sábado.