5.30.2006

DE TECLADO, DE LUVAS E KIMONOS

O teclado é pequeno demais para nós onze. Continuemos assim, semi-non-sense, treinando boxe, observando jiu-jitsu no tatame em frente. O boxe é knock-out, black-out, o outro-out: o outro fora do ar, apagado, religado somente no momento de erguer o braço do vencedor, a ratificar: você venceu. O outro – o que perdeu - levanta-se da lona com as pernas exaustas, uma vesguice nos ombros, os olhos vergados, a falência do fígado, a embriaguez dos rins, um sangramento no sexo. Trôpego, mas de pé novamente, tem um dos braços erguidos pela mão do vencedor - que está com as pernas exaustas, uma vesguice nos ombros, os olhos vergados, o fígado nos rins, um sangramento no sexo. O jiu-jitsu continua, no tatame em frente. Obstrui, contém, aprisiona, imobiliza. Humilha. O outro. Que está sob você – que venceu novamente. Os dois deitados no tatame, cada qual num quimono, sem saber se faz frio ou calor, lá fora dos seus quimonos. Um, ativo. O outro, passivo; imobilizado; depreciado. De repente, levantam-se; e cumprimentam-se, curvando suas cabeças um para o outro.

Há uma imensidão incontável de gentes comuns, gentis, gentias, pacíficas. É a maioria. E, dentre as minorias, há uma que, vira e mexe, é mais forte que a maioria. É ela a capaz da sedução própria da serpente, da imposição, do desprezo por qualquer existência que não seja a sua própria. Essa minoria seduz, submete, derrota e usa a maioria. Até que um dia se trai, não consegue se esquivar de si nem cuspir a tempo a baba do próprio veneno, em transe com o ruído do chocalho, do guiso que traz dentro da cabeça, cabeça própria de serpente, e vai ao chão, knock-out, black-out. Fica exausta, inativa, depreciada, e ninguém a mantém desse jeito, imóvel, imobilizada, depreciada. Põe-se agora de quatro, se levanta, se joga nas cordas, procura um braço de vencedor para erguer. Encontra somente um tatame vazio. Numa lona desabitada; num estádio sem platéia.

O teclado é que é invariavelmente pequeno demais para nós doze.

5.23.2006

UM HOMEM, AFINAL, O QUE É?

(Para Maria Luiza e Maria Beatriz (Bia))

Um homem não é muito mais que sua mulher
Sua filha
Seu irmão
Sua sobrinha
Poucos pares de meias
De amigos
De amigas
Sua profissão.

Um homem não é muito mais que seus sonhos
Projetos
Ex-namoradas
Beijos
Camas.

Mulher não é muito mais que um homem
A não ser muito mais
Coragem
Medo
Valentia.

Um homem
Pode ser um picareta
Um egoísta
Safado
Corrupto
Psicopata pensando em si
Somente em si mesmo
Somente em seus planos
De vitória
Sempre discutível
Para os outros
Não para ele
Para ele seu sucesso
Esse tipo de homem
Não tem discussão
É sempre sua vitória só o que interessa
O dono da verdade
Da história
Da morte
Da vida
Alheias.

Mas aí não será um homem.
Mas aí não será uma mulher.
Mas aí não será ninguém.

5.15.2006

UM, DOIS, FEIJÃO COM ARROZ; E UM ESQUELETO

Um homem dentro de casa mexendo em seus canivetes, malas, recolhendo o lixo, olhando-se no espelho, levando a bicicleta ao médico ou o cachorro a fazer xixi e cocô, um filme. Uma canção antiga, um pai que sabia limpar canivetes, pintar paredes, lixar, envernizar, passar o Sábado. Eu nunca soube.

***

Fumar é inspirar a morte, profundamente; e expirar a vida, lentamente. Inspirar a morte é aspirar a vida. Palavra de ex-fumante.

***

Ninguém entende mais de gente que tapete. Aos gênios, serve-se a voar; aos medíocres, pisar; aos sonhadores, escorregar.

***

Limítrofes:

Atores; boêmios; poetas; cantoras de boate; freqüentadores de bingo; Bolívia.

***

Quando se anda por aí, tolamente, a olhar o mar, paralelamente aos automóveis e seus autômatos a dirigi-los, quando se vai à farmácia ou à padaria, quando se é gente de bairro, atenção: é um raro momento em que uma bomba deixou de explodir ao seu lado.

***

Mulheres e suas bundas: nada de novo no front.

***

O Word é um software puritano. Assinala bundas em vermelho e depois não deixa que elas sejam adicionadas ao dicionário. Também não permite que se as ignore.

Um puritano incorrigível.

***

Depois não me diga que eu não telefonei, que eu não escrevi, não lhe pisquei o olho, não me atrevi, não me arrisquei, não contei piada nem me zanguei. Apenas eu não era quem você queria. O que me aborrece é que isso me poderia ter sido dito na primeira vez em que eu telefonei, que eu escrevi, lhe pisquei o olho, me atrevi, me arrisquei, contei piada e me zanguei. Exatamente quando eu era quem você queria.

***

O poeta Aldo Votto me deu de presente um livro de sua autoria, com direito a dedicatória. De repente me saiu de dentro do livro algo que dizem às vezes sair de dentro do armário, mas que concluo ter saído na verdade de dentro do universo, quando ele era ainda uma casca de ovo. Seu poema ESQUELETO diz assim:

Mais triste
Que o prédio abandonado
É o que foi deixado
Em construção

Em que o musgo
Tomou o lugar da cal
E a sombra,
O lugar do reflexo.

Desfaz-se a obra
Que ainda não se fizera
E os tijolos viram tigelas
Para algum pombo citadino.

A altura, em vez de imponência,
É ameaça de acidente.
Mais que tudo,
O prédio inacabado
É oco de gente;

Espaço semi-construído,
Sequer meio vivido.

O que me fez concluir o seguinte:

Esqueleto,
Poema do poeta Aldo Votto,
Não tem recheio de carne
Tampouco é feito de osso.

Mas, por ser esqueleto de todo jeito,
Permite imaginarem-se ossos nele
E aí é que se percebe,
Entre cada par de vértebras,
Entre cada duas costelas,
Nas juntas, falanges, rótulas
Uma alma.
E, como alma gosta muito
De habitar gente
E gente que tem esqueleto,
Essas almas vão-se multiplicando
Infinitamente.

Herman Hesse
Em O lobo da estepe
Prova
Germanicamente
Que homens e mulheres são feitos de infinitas
Almas.
Tivesse lido o poema do poeta Aldo Votto,
Teria dito uma só frase
Feita de dois versos
Tão somente.

Leiam Esqueleto,
Poema do poeta Aldo Votto.

***

Ou
Como diria
Vinicius
De Moraes
Na agenda
De janeiro
Mês de férias
É preciso
Deixar todas as datas vazias
Para que haja espaço
Para o súbito
O não dito

A súbita
Poesia.

***

Muito obrigado, Aldo.

5.09.2006

DVINICIUSD

Vinicius em DVD, coisa que jamais passou pela cabeça dele, Vinicius de Moraes. Vinicius na telona do cinema, isso ele tinha todo direito de imaginar: não só crítico da arte ele foi, como viu seu Orfeu da Conceição, o Orfeu Negro, passar do palco para Cannes, e talvez nem fosse isso o que ele quisesse ou disso fizesse questão. Vinicius agora fica à disposição na prateleira, mais que em sons e imagens, em depoimentos extraordinários, como os de suas filhas, muito especialmente da mais velha, porque a que podia contar e contou mais histórias dele e o bem e o estrago que causavam, nele e em quem estivesse por perto, e por motivo que ele conheceu mais que nenhum outro: ao invés de escassez, excesso de amor. Como os de Chico, Tônia Carreiro, Edu Lobo, Caetano Veloso e Toquinho. Tom Jobim, claro, está lá. Maria Betânia. E estão lá interpretações magistrais por cantores e cantoras magistrais de canções de Vinicius & Vinicius, Vinicius & Tom, & Baden, & Toquinho, & Chico &... Os assassinos de Emmet em ritmo que ele provavelmente também não imaginaria (nem mesmo ele). Camila Morgado e Ricardo Blat a fazer teatro, teatro de verdade, sentido, profundo, interpretado, palavra, silêncio, gesto, respiração, idade, tempo. Antônio Cândido, que presença no filme de Miguel Faria Jr. E que filme, o de Miguel Faria Jr., que extraordinária peça para se ver e rever na telona, para se ter na prateleira e repetir sua imagem em 14 ou quantas forem as polegadas domésticas, a cantar, a pedir a beleza de amar.

Minha filha, quando for sua vez de ensinar alguém a ler, que seja Monteiro Lobato sua cartilha; quando for sua vez de desejar, Jorge Amado é caminho dengoso e perigoso, como deve e cabe ser; mas se for amar, amar a vida, aos homens e mulheres que são de amar em paz, é Vinicius, a abrir as portas de todos os que conheceu em vida e pensamento e cita generosa e fraternalmente em seus livros: Drummond, Bandeira, Cecília Meireles, João Cabral, Murilo Mendes, Oswald e Mario de Andrade, Rubem Braga, tantos outros, além de outros ainda de outras patriazinhas, como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Rilke...

Humano, demasiadamente humano? Vinicius.

E todas as vezes que surgirem esses doutores em coisa nenhuma a determinar qual o melhor poeta brasileiro, ouça, minha filha, ouça uma voz tanto humilde quanto sacana, que sempre responde de dentro dos verdadeiros puros:

- Quem é o melhor poeta eu não sei, mas, o melhor Vinicius, é o de Moraes.

5.01.2006

MÍNIMAS

Alguém já disse isto.

Entre a ecologia e a economia, sabe quem? A engenharia.

Eu sei, tu sabes, ele sabe. Nós calamos, vós também, eles continuam do mesmo jeito.

A pressa é inimiga da refeição.

O pai dele morreu.
O que dizer a ele,
Pêsames, sinto muito?
Coragem.
O filho dele nasceu.
O que dizer a ele,
Parabéns, felicidades, coragem?
Parabéns.

Alternativas para ordem e progresso: liberdade e respeito; ciência e ousadia; fôda-se todo mundo que o que eu quero é o meu.

Se alguém diz pra você que a paixão acaba quando o amor começa e que o amor acaba quando o casamento começa, não aumente a aposta: pague pra não ver. E pague pra ver.

O savoir faire, o know how e o saber fazer de nada são capazes diante da arrogância
Que é gêmea da ignorância.

A pressa é inimiga da afeição.

Alguém já disse isso.