12.11.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005


- CAPÍTULO TRINTA E OITO –

Nesses tempos em que o dólar já não é mais referência nem moeda, quando a economia do Brasil, em tamanho, chegou ao terceiro lugar do segundo bloco de países, ocupando a décima-segunda posição do Produto Mundial Bruto pelo critério da Paridade do Poder de Compra – PPC -, e seu índice de Gini é de 0,302 - quando, por muito tempo, superou a marca 0,5, significando que, hoje, tem a distribuição de renda mais justa de toda sua história, ocupando a décima-quinta posição neste quesito, não mais a 117ª, como ocorria no início deste século -, fica difícil até de lembrar que, em 2008, quando foi proposto o projeto do acesso ao Oceano Pacífico, incrementando as possibilidades logísticas do intercâmbio Brasil-Japão e Brasil-China, o país estava prestes a enfrentar mais um colapso energético e também logístico, suas estradas e ferrovias em petição de miséria.
Foi naqueles dias que Rita retomou fugazmente seus estudos das etnias indígenas da América Latina, contratada para uma consultoria visando a estudar a barreira que se interpunha à ligação, formada pelas reservas indígenas existentes no trajeto que atravessava o Peru, os índios já governando a Bolívia, que, com o apoio do Peru, já cortara as relações e o fornecimento de gás para o Chile, a Argentina, sem poder continuar a adquirir gás boliviano para vendê-lo ao Chile – que se empenhava para desenvolver às pressas projetos hidrelétricos e de fontes alternativas – biomassa, eólica – que fossem capazes de suprir suas necessidades energéticas. Mais ainda: a Bolívia ameaçava invadir o Chile para ter de volta seu acesso ao Pacífico, por Arica, território perdido na guerra de 1879 a 1883 entre os dois países.
O continente sul-americano dera majoritária e acentuada guinada à esquerda.
Outra expectativa com respeito à Bolívia era se seus governantes iriam também querer de volta o Acre - o qual, pelo Tratado de Petrópolis, de 1903, teve seu território de 143 mil km² cedido ao Brasil, pelo valor de 2 milhões de libras esterlinas.
Também poluía o ar das relações sul-americanas a perspectiva de tentativa de recuperação, ainda pelos bolivianos, do território perdido na Guerra do Chaco, de 1932 a 1935, para o Paraguai, que anexou ao território paraguaio 249.500 km² da região fronteiriça, então cobiçada por empresas petrolíferas, principalmente inglesas, que supunham haver petróleo naquele subsolo e souberam muito bem fomentar o conflito por intermédio do governo britânico.
E, claro: em nada ajudava a região o estado das relações da Venezuela com os Estados Unidos.
Enquanto este era o cenário de 2008 do continente sul-americano, a China continuava crescendo a taxas assustadoras. O Brasil ainda pagava sua dívida externa, herdada em grande parte dos governos militares, que investiram em infra-estrutura a custa de empréstimos em dólares. Já o país-continente asiático guardava em caixa mais de 800 bilhões de dólares em reservas cambiais.
Rita mergulhava em mapas, livros, páginas da Internete, telefonemas, emails, viagens; Ricardo VI, com os avós e as tias, no Rio de Janeiro; Ricardo V passeava com sua camionete pela região do cerrado, escrevia um pouco, parava, ouvia o que diziam os camponeses, roceiros da região, ex-garimpeiros sem licença ambiental, o povo, seus anseios e frustrações. Assistia aos debates acerca da estrada para o Pacífico e da transposição do rio São Francisco, mais ainda sobre a eternamente mal-resolvida reforma agrária. Ricardo V era de opinião que a produção em massa deveria ficar nas mãos do tão então propalado agro-negócio, mas que, na região em que morava, minifúndios de sub-existência e pequeno escoamento local seriam uma das mais fortes possibilidades de sobrevivência, tão difícil para a maioria das pessoas no cerrado goiano daqueles tempos. A floricultura ainda não era explorada, a não ser muito timidamente, nos jardins municipais. O eco-turismo era ainda mais tímido, perdendo terreno e terra para a pastagem da pecuária extensiva, tão sujeita à sazonalidade e à fraca qualidade do solo.
Ricardo V se enchia de coragem e ideais quando conversava com Seu Josefino e Dona Luzia, uns dos poucos a vencer a sub-existência, a ignorar totalmente quaisquer regras, prognósticos ou receitas macro-econômicas, plantando, criando gado leiteiro, ampliando suas propriedades sem qualquer subsídio, produzindo mais, na contra-corrente do agro-negócio mecanizado, na contra-mão da reforma agrária, levada a duras penas pelo Estado.
É aqui que começa a Revolução de Mentalidade, é aqui e no teatro daqueles meninos e meninas que assisti há três anos, há de ser aqui, Ricardo V deixou gravado no Winchester de seu desk-top, então em uso, ainda - quando os nano-tubos ainda eram experiência de laboratório.

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