6.28.2005

VAIDADE

Vaidade,vaidade. Não depende de idade nem sexo ou temperamento: todo mundo tem. Por exemplo, um sujeito sessentão, com barba por fazer, cabelo desgrenhado, seu rosto, querendo ele ou não, transmitindo idéia de pouco asseio, manifestou em sala de espera de um médico sua grande vaidade pela coleção de sapatos que possui. Contou que ganhara de uma amigo dois novos pares, cujas solas eram de borracha. Inadmissível! Foi obrigado a confessar ao amigo que só usa sapatos com sola de madeira e que teria que trocar os presenteados.

Penteados. Mulheres saem do cabeleireiro com penteados às vezes complexos, que podem no entanto ser desfeitos e redesenhados com rápidos movimentos das próprias mãos, fazendo-as muito mais bonitas do que quando saíram do salão. Carecas com restos de fios capilares se esmeram em cuidadosamente arrumá-los; desgrenhá-los; ou raspá-los. Houve tempo em que gente de cabeça raspada era calouro de universidade, presidiário ou louco, internado em hospício ao lado do presídio. Hoje, não: tanto pode ser um craque do basquete ou futebol como um louco, do lado de fora do hospício. Nem sempre, é claro: há os mais jovens, que podem raspar a cabeleira com lâmina de barbear, deixá-los rentes, à escovinha, só que sem usar essa expressão, do tempo dos seus avós ou bisavós, como desenhá-los a deixar morrendo de inveja o último dos moicanos ou o primeiro dos siouxies. Já xucarramâni, ninguém quer imitar.

Homens que pintam os cabelos têm preconceito de cor: não gostam de branco. Continuam tendo a mesma aparência que lhes confere a idade, só que de cabelo pseudo-louro. É bem verdade que há os que preferem levar seus penteados aos engraxates, para, é claro, fazê-los parecidos com sapatos.

Cargos. Carros. Casas. Namoradas e namorados. Filhos. Cães. Tudo isso entra no liquidificador da vaidade, especialmente nesses tempos das celebridades, que, como se sabe, são as pessoas que aparecem na tv. Mas, atenção: é preciso aparecer na tv falando alguma coisa importante, como, por exemplo, acho tudo isso um absurrrrrrrrrrrrrrdo, seja lá o que o tal “isso” for. Mulheres-celebridades devem cruzar e descruzar as pernas e ter cabelos longos, puxando-os de um lado para o outro e jogando a cabeça na mesma direção – senão, celebridades não são. Homens-celebridades devem usar terno ou capote com bermuda até a canela. Quando de terno, manter as pernas cruzadas de um jeito que só os eunucos conseguem; de capote e bermudão, sacudir o tronco, especialmente os ombros, ligeiramente curvados para a frente, bem agitados – mas o indispensável é dizer que tudo isso é um absurrrrrrrrrrrrrrdo.

Mendigos fazem a barba com uma lâmina e um espelho quebrado encontrados no lixo. Mendigos são a expressão máxima da vaidade: voltaram as costas para a sociedade e desandam por aí, com seus casulos nas costas. Meninos de rua se banham nos chafarizes e penteiam-se e ensaboam-se e correm atrás de você e roubam sua bolsa e tiram lá de dentro o dinheiro e o mais importante: seu estojo de maquiagem - que usarão para mascarar seus rostos, demonstrando um talento artístico que foi ignorado por quem passa, por quem os jogou a morar na rua.

Ferraris deixam em dúvida os que escolheram Mercedes ou BMW. Vaidade. Monges budistas e outros religiosos pregam seu oposto: o mais extremo desprendimento pela matéria. Menos a publicada no jornal, que conta de suas lutas contra o materialismo e a vaidade e a quantidade de seus fiéis seguidores.

Mas ninguém é mais vaidoso que quem escreve. Que tola vaidade imaginar que outros lerão o que escreve, gostarão do que escreve, suspirarão ou morrerão de rir ou de tédio.

Vaidade, vaidade.

6.24.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO CATORZE –

Naquela manhã de 2016, Ricardo IV engoliu meio comprimido de Beta-fluoxetina, procurando melhorar o humor; chupou uma pastilha do tradicional hidróxido de alumínio; pôs na boca seu habitual comprimido de bi-metmorfina, para controle do peso; rechaçou o de alprazolam comparado, com medo de alguma perniciosa interação medicamentosa; mas não resistiu a uma doble-aspirina cubana, Garcia & Levitz’s Laboratories, porque estava com uma dor de cabeça em regime de ascensão. Tudo isso depois de beber café com leite vagarosamente, um suco de uva em pó concentrado diluído em água e mastigar sem apetite uma torrada e meia de pão. Não havia ninguém em casa, estava atrasado para a reunião com sua equipe de trabalho - mas era o sócio majoritário e sênior do escritório: que esperassem. O neto queria vir para o Rio para morar com ele e Sérgia. Seu maior cliente revelara-se um picareta, na véspera. O país beirava ao caos político outra vez. O buldogue deixara uma prenda molenta aos pés da sua cama, a qual ele calçara, pensando que fossem seus chinelos. E o filho, Ricardo V, não queria deixar de morar em Minaçu. Lá, seu filho famoso era tão famoso quanto o juiz, o prefeito... talvez fosse essa a estratégia do filho.

Foi para o banho como se o chuveiro fosse um tribunal de ética, que o condenaria por defender calhordas. Ou por ser egoísta - por não querer o neto por perto. Mas queria o filho, e o filho com o neto; pronto: tudo bem. Se assim fosse. A água quente e turbinada deu-lhe alívio, mas a desesperança persistia. Um desânimo, um súbito medo, como se fosse perder tudo de uma hora para outra, o apartamento, a conta no banco, as gêmeas. Uma solteira, a outra, casada – com aquela pessoa. De quem ele não gostava. Pior! – deu-se conta: de quem começava a gostar. Duro, admitir: era preconceituoso. Cheio de teorias, suas e de Sérgia; mas, os dois, preconceituosos. Duro, admitir.

Que diabos de camisa escolher? Sérgia, cadê você, esse serviço de arrumação, lavagem e passagem de roupa deveria incluir uns escolhedores, ou fornecer um cardápio de roupas a usar a cada dia da semana! Clean and Stuff. Bom nome. O país, essa cidade, ontem vi um dos empregados da Clean and Stuff sair daqui com aquele absurdo capacete, aquela ridícula armadura, as ruas em guerra, novamente! Coitado de quem tem que passar por elas, de andar pelas calçadas! Coitada dessa gente! Este armário, precisava ser tão grande? Que calça, Meu Deus, que calça?...

Um despreparado. É o que eu sou. Velho e despreparado, nem fui no estúdio, hoje, correr parado, me flexionar e alongar nos aparelhos. Estou um traste! Que saudade da fisioterapeuta, não devia tê-la ajudado a montar sua empresa, que imbecil eu fui, troquei a melhor fisioterapeuta do planeta por uma empresária que me vendeu essas merdas de aparelhos! Self-gym; que babaquice!

Resolveu que não iría ao escritório, que conversaria com todos por vídeo-conferência. Sua Π-ex-em (Personal Executive Manager – a letra grega Π recuperara seu território e se tornara um padrão para o P em Inglês - “pi”, exatamente naquele ano) lhe dissera para não fazer isso: - Os encontros presenciais serão fundamentais para que você amplie sua marca de liderança fundamentada na contextualização do seu carisma.

Só que, hoje, não vai dar. Como ir trabalhar sem calças? Na vídeo-conferência, poderei ficar sentado atrás da mesa o tempo todo; se bem que não é tão trabalhoso assim escolher um reles par de calças – e essa tecnologia toda há de me desnudar sem calças por trás da mesa. Senão essa tecnologia de merda, a vontade de ir ao banheiro! Como agora!

Finalmente vestiu-se e foi vagarosamente até o escritório do apartamento; conectou-se com a secretária dois minutos antes do horário da reunião e disse a ela:

- Vou me atrasar. Peça que me esperem por mais meia hora. Diga que, se eu não aparecer dentro de meia hora, foi porque algo de muito sério me aconteceu. Não, nada me aconteceu, por favor, fique calma. Respire fundo, isso passa. Não, não me aconteceu nada, tampouco diga a ninguém que algo me aconteceu, diga que... Olha, eu hoje estou doente, não estou passando bem. Façamos o seguinte: convoque todo mundo para uma vídeo-conferência, dentro de... doze minutos. Melhor assim. Depois decido se vou ou não ao escritório. Quer saber? Ainda não me acostumei com essa modernice de salão de trabalho, sinto falta da minha sala, minha grande mesa, meu computador de mesa, mesmo de meu lap top eu sinto saudades. Esses pontos de conexão tão... impessoais! Sem privacidade! O único lugar onde me sinto à vontade no escritório, atualmente, é na privada. Me desculpe a indiscrição, mas esse negócio de receber cliente numa sala de visitas com todo mundo em volta - ainda que a hipo-acústica impeça que nos escutem e a virtual-image nos mostre sorridentes mesmo quando a ponto de nos esfaquear -, sinceramente, que saudade de um bom escritório! Me conecte com eles, tá? Hoje eu não vou. Mas, antes, me conecte com a Geórgia, por favor. Ela mesma: minha Π-ex-em.

Sentiu o sinal da conexão. Ficou em dúvida: com quem eu gostaria de recuperar agora um pouco da minha auto-confiança perdida em três desesperadas corridas à privada?

Minha mulher ou a ex-em?

6.21.2005

DELAS E DELES

(1) DELAS

Delas, só se deve falar quando estiverem ausentes. De preferência, antes. Depois, não.

Cuidado: as portuguesas nos fazem suar muito; francesas exigem aquecimento; e as japonesas são quadradas.

Polonesas são diferentes das russas e as duas teimam em competir com as finlandesas.

Em certa medida, as escocesas são tão boas quanto as mineiras. Mas as nordestinas não ficam atrás, não; tampouco, dadas gaúchas e algumas catarinenses.

As fluminenses são capazes.

Cariocas, só as bebemos.

De aguardentes, só devemos falar pelas costas.

Se você se confundiu, lembre-se de não ser tão específico da próxima vez.

Ou preconceituoso...

(2) DELES

Vinicius de Moraes, na juventude, era preconceituoso. Não gostava do Jorge Amado, para depois viver e morrer amigo e fã dele. Endividava-se com os amigos e, depois, pedia desculpas. Dava o dinheiro que ganhava com seus shows a uma das ex-mulheres - talvez “aquela amada mais amada pra valer”, de todas que teve.

Rubem Braga, segundo Paulo Mendes Campos, era o lavrador do ar. Rubem morava em uma cobertura em Ipanema, onde possuía uma horta, onde Paulo fazia sua feira. Rubem, que foi correspondente de guerra e, em dada medida, causador de uma das separações e de um novo casamento de Vinicius; Paulo, que, segundo Drummond, era a lamparina capaz de acender outras - o poeta para poetas; Drummond, que era levado de carro por Vinicius para visitar uma amada proibida.

Fernando Sabino teve tantos encontros marcados que deixou um homem nu, do lado de fora.

Todos os citados, em maior ou menor medida, gostavam delas.

Que bom que seu preconceito ficou do lado de fora.

Junto com o homem nu.

6.17.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO TREZE –

Mais pela novidade da estrada de ferro, cujo trecho de São Pedro de Uberabinha (Uberlândia, a partir de 1929) até Araguary havia sido inaugurado em 15 de novembro de 1896, iam deixando para o Leste Canudos e Ouro Preto e mais se aproximavam de Goiás. Araguary foi a estação final do trem da Mogyana, que haviam tomado em Campinas.

Alvará de 4 de abril de 1816 é que desanexara da Capitania de Goiás a região posteriormente conhecida por Triângulo Mineiro; de certa forma, já estavam em Goiás.

Quem desbravou a região foi Bartolomeu Bueno da Silva – o Anhanguera –, cujo objetivo era, exatamente, chegar a Goiás. Era a região dos Caiapós, que viviam emboscando os brancos, o que prejudicava a comunicação da província de Goiás com São Paulo. Em 1748, expedição que contou com ditos índios mansos expulsou os então donos da terra, caiapós. Formaram-se dezoito aldeias, ao longo da estrada que ligava São Paulo a Goiás: Anhanguera. Naquele 1897, se Ricardo e Olga soubessem que seu destino seria Goiás, teriam cortado caminho; mas sonhavam era com Minas.

Antônio Resende Costa, o Major do Córrego Fundo, foi quem demarcou as Sesmarias do Serrote e da Pedra Preta e apossou-se de um terreno entre as duas, que depois doou à Igreja, como patrimônio da Freguesia de Brejo Alegre, que ali se estabeleceu e se tornou Vila em 31 de Março de 1884 e, em 4 de agosto daquele ano, cidade. Na sessão da Assembléia Legislativa Provincial de 5 de agosto, emenda do Deputado Severino Navarro deu à cidade o nome que Ricardo e Olga conheceram: Araguary – assim sancionado por lei, pelo Barão de Camargos.

Ricardo Coração dos Outros e Olga viveram alguns meses em Araguary, antes de atravessar a fronteira para Goiás, ainda em 1897 - ano que, em 12 de dezembro, Ouro Preto perderia a condição da capital da Província de Minas Geraes para Cidade de Minas – que viria a se chamar, a partir de 1901, Belo Horizonte.

Como se vê, tudo era muito rápido, naquele tempo.

Para quem sabe e quem não sabe; e para que se estabeleça senão discórdia, pelo menos desconfiança deste relato – é para isso que servem relatos -, relembra-se mais.

Em 4 de março daquele 1897, Biriba – ou Prudente de Moraes -, recuperado, voltou ao seu cargo de Presidente da República. Se Floriano (falecido em 1895) deixara saudosos florianistas, a vertente jacobina da Revolução Francesa (1789) teve sua genealogia ideológica continuada em vários cantos, pelo menos aqui, no Brasil.

Os jacobinos brasileiros, que queriam uma república forte e capaz de enfrentar os fantasmas monarquistas que alimentavam seus pesadelos noturnos e acidezes estomacais diurnas, tiveram no soldado Marcelino seu mais exaltado herói. Em 5 de novembro, quando Biriba foi recepcionar o Espírito Santo, vindo da Bahia trazendo à bordo os primeiros vitoriosos contra Antônio Conselheiro, e a torcida era pró Floriano e Vitorino - um de seus saudosos, vice que mudara o governo a seu próprio contentamento durante a doença de Prudente -, Marcelino sacou de uma garrucha, que – dizem - falhou cinco vezes. Biriba afastou a garrucha – dizem – com sua cartola. Marcelino, antes de ser preso, esfaqueou mortalmente o Ministro da Guerra de Moraes, Marechal Bittencourt.

Tal noticiário chegava pelo telégrafo ou por passantes, migrantes, perdidos na história de suas vidas e permanentemente surpreendidos pela de seu país, tão recente e sangrenta república, aos olhos e ouvidos de Olga e Ricardo Coração dos Outros.

Já se haviam decidido por Goiás – a fronteira, tão próxima, os seduzia -, mas permaneciam por ali, vivendo de bordados de Olga e novas ou renovadas modinhas de Ricardo – que também desenvolvera especial talento para ferrar e selar burricos e cavalos.

Partiram, enfim. Cavalcante seria seu destino, mas ainda não o sabiam. Cavalcante, que, naquele tempo, era tão central, na Província de Goiás. Goiás, em 1988, já Estado da federação, teria parte de seu território convertida em outro Estado: Tocantins – que, em 1821, tivera um governo autônomo e, em 1920, houve quem tentasse de novo sua autonomia.

Ao cruzar a fronteira entre Minas e Goiás é que souberam das duas mortes: primeiro, de Armando, que deixava Olga oficialmente viúva, livre para se casar de direito com Ricardo; depois, do pai de Olga. As duas lhes foram noticiadas e transmitidas por telégrafo, por contatos, secretos em sua fantasia de casal apaixonado e fugitivo, que mantinham no Rio de Janeiro, capital da República. Escritos encontrados sem pauta musical com a caligrafia de Ricardo Coração dos Outros assim registraram aqueles momentos:

Rio Paranaíba,
Separaste
Duas vidas que começam
De duas outras que se findam
Nas minhas modestas contas,
Enquanto tantas são contadas
Em contas que não domino!
Ai, Rio Paranaíba,
Que tormentos e alegrias
Nos aguarda nosso destino?
És capaz de nos dizer,
Rio que vamos deixando

Às tontas ventanias
Deste nosso desatino?

6.14.2005

O DELTA-DOIDÃO

Um triângulo, com as estratégias Produto, Soluções e Lock-in em seus vértices, representa o Modelo Delta, criado por especialistas em competitividade empresarial. Por respeito a eles, seus nomes serão omitidos, para que não haja confusão – pois, aqui, se falará do Delta-Doidão – modelo cujos vértices são trabalho, prazer e criatividade, com a peculiaridade de que suas arestas são aparadas e, por isso, os vértices, vira e mexe, se desunem.

Por extensão, quem se enquadra no modelo é Delta-Doidão - independentemente de ser uma ou um, tal e qual um ou uma chefe (pois, se chamam você de “chefa”, querem puxar algo de que você é desprovida; caso contrário, é deboche).

Pode ser que você seja alguém com sorte e goste do que faz: você tem prazer no seu trabalho - o que também permite que sua criatividade seja exercida em plenitude. Quando está se divertindo, não pensa no trabalho, mas se pensa, é com prazer. Criando alguma coisa - uma canção, refeição ou confusão -, terá uma enorme sensação de prazer e não de trabalho – mas se também for, nenhum problema: você gosta do que faz. Você não é um Delta-Doidão: seus vértices estão lá, unidos pelas suas arestas.

Você adora seu trabalho, mas, hoje, o telefone tocou mais do que devia. Seu chefe lhe chamou e, no lugar de um problema, lhe trouxe uma encrenca – tirando você daquele lugar que ele chama de zona de conforto, onde ele vive dizendo que não gosta que você fique. A sensação de prazer se foi e a criatividade ficou em casa, de ressaca. Mesmo sem ser um deles ou delas, bem vindo ao mundo Delta-Doidão. Tudo o que você quer agora é prazer – prazer criativo, como, por exemplo, comer pipoca de micro-ondas – sem nenhum trabalho.

Você é mesmo alguém de sorte: o Domingo chegou e você vai à praia com quem você mais gosta. Seu carro está lindo, com os faróis acesos. A bateria descarregou. Com sua criatividade, você, que é mais forte, pede a quem mais gosta e tem idade pra isso que fique ao volante, enquanto você vai chamar o porteiro para que ele o ajude a empurrar o carro. O porteiro, ontem, sentiu imenso prazer criativo comendo uma buchada de bode e, hoje, não veio trabalhar. Serão seus braços e suas pernas os únicos a se esforçar a fazer o carro pegar no embalo. Portanto, as costas serão as suas. Resultado?: dor. Nas costas. Não faz mal: depois do oitavo empurrão, o carro pegou e vocês vão mesmo para a praia.

Você retorna prazerosamente ao útero do mundo, quiçá do universo: o mar! Que sensação! O trabalho é nadar, mergulhar, ficar de barriga pra cima, olhar o céu, imaginar órbitas ainda mais criativas que as dos olhos de quem você mais gosta. Mas, atenção: se você desandar a nadar com espalhafato, além da volta da dor nas costas, todos dirão: é Delta-doidão.

E se, numa sexta-feira, você dançar freneticamente e ficar se esgoelando pensando que está cantando até as três da manhã depois de um simples happy-hour, você pode, até, ser presidente ou presidenta de uma empresa, mas - irremediavelmente - é Delta-Doidão.

Calma: não é nada grave. Palavra do CDDA – Criador do Delta-Doidão, Anônimo. Ou você pensou que era o Carlos Drummond de Andrade? Puxa, obrigado, hein.

6.11.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DOZE –

Em 2016, Ricardo V e Rita tinham condições para morar em qualquer lugar do mundo. Por que, então, ainda Minaçu?

Ricardo V chegou à fama com seu livro “A Revolução Brasileira de 2017”, lançado em 2009, quatro anos após a súbita inspiração que teve quando foi visitado por seus pais, em 2005. conseguiu concentrar-se e desenvolver o tema da revolução – que, segundo ele, aconteceria “pela influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da sua plebe e a involuntária conspiração de Newton e Gauss”; e seria pacífica, sem tiros ou golpes de estado: uma revolução de mentalidade. Escolheu 2017 em óbvia alusão à revolução comandada por Lênin um século antes. (Essa alusão lhe rendeu a ofensa de alguns críticos, por um (por eles) deduzido desrespeito do autor àqueles ideais, e a de outros, por um (por eles) suposto apoio de Ricardo àqueles ideais.)

Na Convulsão de 2010, as vendas dispararam; depois, como se sabe, a revolução de 2017 efetivamente aconteceu – e, ainda que diferente da que ele imaginou, Ricardo V foi considerado por muitos um visionário.

Em auto-crítica, Ricardo se diz um afortunado, por ser filho de casal com reserva financeira – o que lhe permitiu a tranqüilidade para se dedicar a desenvolver e escrever suas idéias – e por se ter envolvido amorosamente com duas mulheres de grande valor e companheirismo: a falecida namorada, Maria Otávia; e sua mulher, Rita.

Apesar do sucesso que vinha obtendo junto à universidade, Rita desencantara-se com sua pesquisa sobre índios brasileiros, o que lhe custou muito caro: perdeu a bolsa de estudos e a carreira de pesquisadora. Seu desencanto foi, segundo ela, porque, ao invés de enxergar a questão como cientista, teria-se apaixonado pela causa indígena (ou causas; percebeu uma infinidade delas no contato com as diferentes tribos). E, como apaixonada, alimentou dentro de si terrível conflito: nascida nos Estados Unidos, mesmo com descendência latina de pai e de mãe e por mais que fizesse parte de outra tribo – a dos defensores da natureza e da preservação da vida humana principalmente em seus traços culturais -, pela veia desenvolvimentista característica da sua nação, passou a imaginar que obra como a ligação do Brasil ao Oceano Pacífico, rasgando caminhos por terras indígenas, ajudaria a tirar do sub-desenvolvimento outras tribos, descendentes das três raças formadoras da brasileira. Perdeu-se do foco em suas apaixonadas e confusas divagações. Resolveu ocultar-se no anonimato e ajudar o marido a escrever o livro dele, mas libertando-o também dos rigores acadêmico-científicos.

Quando foi tomada essa decisão, Rita já havia perdido sua bolsa, mas Ricardo ainda conseguia manter a sua, pela curiosidade que despertaram, nos mestres originalmente de Rita, suas idéias de uma possível revolução brasileira. Para sua surpresa, a universidade americana se recusou a caçar-lhe a bolsa e deu-lhe plena liberdade de expressão, sem nenhum rigor científico, mas com a condição de que mantivesse a residência em Minaçu.

- Por que Minaçu? Não poderia ser outra cidade, no mesmo Estado de Goiás? – ele perguntou aos seus patrocinadores americanos. E foi além: ousou afirmar que poderia fixar-se em qualquer lugar do mundo, comprometendo-se a visitar, de vez em quando e estrategicamente, a região por ele imaginada para o despertar de uma revolucionária consciência. (Ricardo queria voltar a morar no Rio, em um grande e conturbado centro, além de ser a sua cidade de nascimento.) A resposta foi não, sem nenhuma explicação: esta era a condição para que a universidade continuasse a bancar seu projeto de pensamento: que morasse em Minaçu. Para não voltar a depender dos pais, Ricardo V ficou por lá, com seus livros, violão e família.

Isso foi em 2006. Porque em 2016 - Ricardo V já um “best-seller”, que alcançara a independência financeira e há muito deixara de ser bolsista -, ainda permaneciam todos morando em Minaçu? Era o que se perguntava seu filho, Ricardo VI, aos treze anos de idade, enquanto lia sobre Tutancamon - faraó egípcio desde os nove e até os dezenove anos, quando morreu -, e sonhava poder ajudar o pai a concretizar sua profetizada revolução. O Ricardo adolescente ainda estava hospedado na casa da tia, no Rio de Janeiro. Seu pai, retornando da Índia com Rita, entre outros escritos e dedilhados, dedicava-se a pesquisar sobre assunto prioritariamente familiar: a história de vida dos seus trisavós, Ricardo Coração dos Outros e Olga. A pergunta permanecia parcialmente sem resposta: que caminhos e motivos os teriam levado a Cavalcante, na virada dos séculos XIX e XX? E como viveram por lá?

6.07.2005

DAS MOSCAS, PARA AS MOSCAS, PELAS MOSCAS

(I)

Pois é, meu bem: neste jornal-tablóide, sobre o qual comemos essas migalhas, lê-se que os homens - seus machos e fêmeas - entendem que o sexo, tão genital, não seja gene - e, sim, moral. Científicos que são, inocularam em nós, moscas, genes de moscas masculinas em moscas femininas e genes de moscas femininas em moscas masculinas. Agora percebo que meu gene foi para você – e por isso, você já não me quer. Você agora prefere alguém como você e diferente de mim. Já meu ser ficou incompleto do meu gene que me foi subtraído - e percebo que, quem antes era igual a mim e recebeu um gene de alguém igual a você, agora se interessa por mim. Traduzindo em miúdos - que para nós, moscas, são graúdos -, agora você prefere as moscas do seu sexo. Quanto a mim, fiquei às moscas; só que às moscas que, antes, gostavam das moscas do seu sexo, e agora preferem o meu.

Mas o que é que nós, moscas, temos a ver com a ciência e a moral dos homens? É que os homens – seus machos e fêmeas - dão à moral um valor excepcional, a ponto, até, de nos reduzir a moscas; tanto que dizem que existe, inclusive, um falso moralismo. Entretanto, perceba, meu bem e ex-amor genital, natural e genial, que se a moral dos homens existe não para a ciência deles e sim para que eles e elas, homens e mulheres, criem preconceitos e se afastem - uns dos outros - pelo sexo, pela cor, pela origem e, até, pela religião deles - é de se deduzir que não exista uma falsa moral, pois - se for mesmo assim – toda moral será falsa.

Moral da história? O falso moralista não existe, porque todo moralista é falso.

Mas isso é palavra de mosca; quem, afinal, nos levaria a sério?

(II)

Nietzche: Mas você não veio ao mundo para espantar moscas.

(III)

Uma canção roubada
(Sobre a melodia de Menino do Rio, de Caetano Veloso, com alusão a Nelson Rodrigues)

(i) Menino de rua / com a bunda virada pra lua / tu és o avesso da sorte / roubaram teu sul e teu norte / Coração / de eterno espanto / de desencanto / Menino vadio / sem cabra ou terreno baldio / talento perdido e sem nome. (ii) Que o Haiti / é aqui: / nada pra sonhares / nem todos os mares / ou a sombra dos lares / E quando eu te vejo eu tenho medo do teu medo... (iii) Menino arredio / na chuva, no vento, no frio / roubei a canção em teu nome...

(IV)

O poeta vive de alusões.

6.04.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO ONZE –

O último capítulo da última novela de televisão foi ao ar em novembro de 2016. A estratégia foi forçar a mudança do hábito da população antes que esta o abandonasse. Pesquisas demonstravam que o descontentamento não era só com o tradicional (profissional) exercício da política. Da mais sofisticada mansão ao mais miserável casebre, se instalava um desinteresse pelo gênero. Até 2010, minimamente dois ou três atores e atrizes contracenavam com dez ou doze decoradores de falas e caretas; de lá para depois, extinguiram de vez os talentos e impingiram ao público uma grande quantidade de textos ruins e figurantes péssimos; entretanto, a fórmula ia vingando: o deixa pra lá conseguia sufocar o azedume da revolta com a repetição, tanto de fatos, como de fantasias, desagradáveis, imbecis e vis.

Ricardo VI estava com treze anos. Seus pais, Ricardo V e Rita, passavam uma temporada na Índia, onde os banhos coletivos eram cada vez mais inacreditavelmente coletivos e a riqueza se projetava e se distribuía - para eles, inacreditavelmente, porque, no Brasil, ainda era grande a quantidade de casebres miseráveis. Ricardo VI ficara com os avós, no Rio. Ricardo IV estava muito moço, ainda: 66 anos. Sérgia era tida, pelos amigos do neto, como um tesão - aos 62. Das gêmeas suas tias, Ricardina e Olga, que estavam com 42, Ricardo VI gostava mais da primeira, que ficara solteira e morava sozinha e alternava namorados, com displicência e alegria.

Naquele sábado de dezembro, Ricardo VI estava na casa da outra tia, sua madrinha, Olga – que havia saído com a pessoa com quem era casada; ele estava só. Lia e assistia ao que podia, nos livros que encontrava, na tri-tv, na Rede. Olhava a imagem das câmeras que filmavam desde o corredor do vigésimo quinto andar onde estava, passando pelos elevadores, o hall, as calçadas, até dois, três quarteirões de distância. Lia e relia em seu micro-palm-top textos que seu pai escrevera nove, dez, onze anos antes, prevendo a revolução de 2017. Pensava: nada mais chama a atenção de ninguém.

Era normal a sucessão de guerras, desgraças, vilezas, grosserias explícitas e outras disfarçadas. Movimentos, protestos, marchas, armas de todo tipo, tudo eram somente imagens coloridas, tridimensionais, ultra-sonoras e com seu cheiro artificial presente, bastava acionar a micro-tecla smellittm.

O que fazer para chamar a atenção dos outros, ainda mais a ponto de provocar uma revolução? – perguntava-se. Não estou aqui para fazer a apologia do suicídio, nem do espetacular nem de qualquer outro – Ricardo VI continuou pensando, com seus treze anos. Um texto espetacular dura dois ou três dias, os que duram mais tempo ou é porque já duram há MUITO tempo ou é porque ativam a hiperimbecílica, sub-glândula da hipófise, descoberta em 2012 pelos sócios Handerson Suamhy & Silva Soares, endocrinologista hindu-americano e publicitário brasileiro, respectivamente. Matar alguém é banal, também, há muito tempo. Como provocar a revolução que meu pai sonhou há tanto tempo?

Noites de sábado são terríveis quando se tem treze anos e se está só, na casa de uma tia, ausente e lá não muito querida. Sentiu saudades do pai e da mãe, mas não teve coragem de conectar-se na imediato-sensorial-rede e falar com eles. Conectou-se, então, com a tia Ricardina.

- Tia, quero fazer uma revolução.

- Para quê, filho do seu pai e neto da sua avó?

- Quero realizar o sonho do meu pai. Gosto dele, do sonho dele, até mais do que de meu próprio e querido pai. Gosto da idéia da política amadora. Até as novelas chegaram ao fim – é verdade que o que entrou no lugar delas seja muito pior ainda -, mas acho que dá pra fazer alguma coisa que chame a atenção e acorde todo mundo, tia. O que é que eu faço, tia?

- Volte para Minaçu.

- Tia, o que é que eu vou fazer em Mi-na-çu?

- Sua revolução. Ou você pensa que ela vai acontecer no Rio? Nunca! Essa revolução que seu pai quer tem que acontecer de dentro pra fora; do interior para o litoral, a partir daquele lugar absurdo onde vocês moram, até chegar aqui. E não falo do centro de Minaçu, mas daqueles cantões, com cara de fim do mundo, onde mora aquela gente que até hoje prefere se isolar. Essa gente é que desistiu da novela – ou você pensa que fui eu ou sua avó?