4.24.2006

DILEMAS

Suponhamos que hoje seja dia de folga e que nada de sério se deva comentar. Vamos falar de pequenos dilemas diários, na vida de quem pode se dar ao luxo cada vez mais raro do lazer. Um dos grandes quem vive é o carioca da Zona Sul do Rio – não, ninguém vai falar da dúvida entre usar ou não relógio, onde guardar o dinheiro do assaltante, ou, para os mais abastados, blindar ou não blindar, eis a questão; como dito, hoje é dia de folga. Falamos do carioca que ainda vai à praia, que se convenceu de que poluição não dá em praia, um cara simples, de hábitos simples, que dá seus mergulhos, se deita na areia e dá uma andada olhando quem vem e que passa a caminho do mar, lembrando Tom e Vinicius, como quem não quer nada. Esse carioca viverá, a cada dia de sol que não for de fim de semana ou feriado a angústia de não poder ir à praia; e quando for Sábado, Domingo ou feriado, se estiver fazendo sol, terá que se proibir de passar por perto dos bares do Leblon – porque, se o fizer, viverá um dilema típico de sua alma de homem simples e que mora perto do mar sem ser numa favela: o bar ou o mar? Os bares do Leblon têm um burburinho e um chope e um tira-gosto que são impossíveis de resistir, a esse indivíduo de quem falamos pelas costas. Ele irá sofrer demais se passar por aqueles bares; por isso, resoluto, irá direto para a praia, passando por transversais somente de edifícios, butiques e lojas de sucos – e olhe lá; pois, se forem dessas que vendem sucos também de cevada, olha o dilema aí, gente. Agora, se um mineiro ler este parágrafo, sentir-se-á o mais feliz dos homens, não é? Minas não tem mar; é bar - e pronto. Dilema zero.

Tem também o do indivíduo que está com uma sede danada e, ao mesmo tempo, vontade de fazer xixi. E agora? O que fazer primeiro?

Ir ou não de terno parece ser coisa do passado. Depois que se percebeu que terno e gravata vestem a maioria dos defuntos, esse traje vai-se tornando cada vez mais raro. Hoje é todo mundo casual. A depender do nível social, a pronúncia será a inglesa; mas deixa pra lá: o bom é poder deixar o terno dentro do armário e abraçando um cabide, o máximo tempo em que assim for possível.

Um dos bons: vou a pé ou de bicicleta? A pé a gente é adolescente; de bicicleta, criança.

Telefonar ou não pra ela? Opa – devemos pedir desculpas: dissemos que não falaríamos de coisas sérias.

Mas nenhum é pior do que aquele do carioca. Portanto, você já sabe: se estiver no Rio nas redondezas do Leblon com intenção de ir à praia, nada de passar perto do Jobi, do Clip, etc.

A não ser que você seja mineiro. Ou que não goste tanto assim de praia. Dizem que está poluída, não é?

4.22.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
ROMANCE INÉDITO DE MARIO BENEVIDES
2005-2006

EPÍLOGO

“[Olga] Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as casas, as igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do Campo [de Santana, Rio de Janeiro]... Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.”


Para quem não sabe ou não se lembra, é assim que Lima Barreto conclui sua biografia de Policarpo Quaresma.

Destacar o encontro no palácio presidencial em 2017 para lembrar a marcante mudança na mentalidade dominante brasileira que se deu naquele ano foi apenas porque lá estava um descendente de Ricardo Coração dos Outros.

Contar episódios havidos desde então até 2017 como se estivéssemos em 2020, quando o ano é 2053, teve a intenção de mais uma vez demonstrar que a modernidade é sempre passageira. Se isso é óbvio é porque a modernidade o é. Surpreendemo-nos com a tecnologia e, no entanto, ela apenas realiza algo que desejamos, precisamos ou vamos precisar. Quando surge uma novidade tecnológica, pensamos, Afinal nunca precisamos disso, para que diabos isso serve? - e, pouco depois, nos fazemos outra pergunta: Como foi que vivemos tantos anos sem essa coisa? Foi assim com os barcos, o automóvel, o avião, as hidro e termelétricas, o petróleo e sua substituição, a pipoca e o micro-ondas e a pipoca de microondas, o computador de sala, mesa, mala, mão e cérebro, o celular e as células-combustíveis. Hoje, mais que nunca, vivemos do Hidrogênio. E nos perguntamos ainda Para que diabos? e cultuamos o diabo tanto quanto a Deus, em suas variadas manifestações e principalmente na ausência delas.

Ora, a origem da chamada revolução de mentalidade foi o interior do Brasil; foi especialmente o interior de Goiás que deu origem a um movimento sem liderança conhecida, primeiro de boicote quase destrutivo para depois construir algo de realmente inovador, movimento surgido de anseios seculares da história do Brasil e que produziu a grande transformação do país, sem mortes, ameaças ou imposição. Tanto assim que foi motivo de destaque do noticiário mundial a participação ativa e teatral daqueles jovens estudantes de Minaçu dos primeiros anos deste século XXI, que faziam peças teatrais na cidade naqueles tempos, e que levaram adiante silenciosas dramatizações em Brasília na dita Revolução Brasileira de 2017.

Hoje é um dia de sol de 2053 e a distribuição da renda nacional permite uma vida razoavelmente tranqüila em sociedade, ainda que sofrimento, injustiça e desacesso ocorram e sejam noticiados, tal como alienações químicas. Mas a massificação da desgraça e o terror do tráfico aliciando a infância excluída e aprisionando adolescência e vida adulta desesperadas e despreparadas se foram. A indiferença diminuiu, o desaforo do desdém pela coisa pública costuma ser logo conhecido e execrado, a competência supera o estrelismo; aliás, no mundo inteiro a competência passou a ser percebida como talento. As desavenças estão aí, parece que são entranhadas na condição não só humana quanto de todo na de estar vivo em um planeta teimoso, a girar em torno do sol curando males das transformações causadas muito principalmente e não só pelos seus homens e suas mulheres, que hoje o habitam em praticamente iguais proporção e força transformadora e produtiva.

Aquela família de que tanto se falou, a ponto de se a descrever como dinastia, e seus mais próximos, em 2020 ficaram assim.

A que vivia com uma pessoa fazia igual a tantas outras, a viver com uma pessoa, embora isso, naquele tempo, mais antes de 2020 que propriamente naquele ano, a expressão “aquela pessoa” tivesse propósitos de escondê-la – a pessoa – sabe-se lá de que preconceitos.

Ricardo IV seguiu como brilhante advogado e episódico imperador em seu roupão caseiro.

O General continuou a exibir sua nudez à sua indiferente empregada e ao amigo Almir. Ela – a empregada do General - escreveu um livro: “A vista da Avenida Atlântica do Rio de Janeiro”; ele – Almir - enlouqueceu um pouquinho.

Muitos que residiam em Minaçu de lá se mudaram; outros, para lá é que se foram.

Sérgia tornou-se membro permanente da ONU, casada com Ricardo IV só de vez em quando.

A médica que foi amante de Ricardo IV, bem, não se pode revelar seu nome.

Rita e Ricardo V continuaram casados - ele, escritor, ela, incansável pesquisadora das etnias – não só das silvícolas do Brasil como também das do mundo árabe. Secretamente ainda buscava saber de que irlandês terá vindo o “Shaw” do sobrenome materno. Já sua mãe passou a permanecer em Orlando o mínimo possível, visitando Rita onde ela estivesse, Rio, Bagdá, Cavalcante, Minaçu, Xingu.

A irmã da que sempre foi vista como a viver com “uma pessoa”, que costumava não se fixar a nenhuma companhia, casou-se; com uma pessoa.

Da minha parte, enquanto meus pais se mudaram para o Rio, preferi freqüentar a Universidade Federal de Santa Catarina a fazer qualquer curso à distância. Agradam-me mais temperaturas mais amenas, passei por muito calor onde nasci. É em Florianópolis que vivo, até hoje. De 2020 até hoje, ora, alguns morreram, outros continuam neste planeta, que permanece a enlouquecer um pouco a cada dia. Florianópolis, 22 de abril de 2053, Ricardo Coração dos Outros VI.

- FIM -

4.17.2006

SEU LINO MORREU E MEU LIVRO ACABOU

Seu Lino morreu. Se você é o persistente leitor das reincidentes visitas a este blog, sabe de quem estou falando. Seu Lino estava com cento e quatro anos. Todos os longevos dos quais se tem notícia apresentam semelhanças: alimentação muito diferente do receituário da moda, bebida alcoólica citada e moderada, amigos sim mas autonomia antes que seja cedo e... Relógio de pêndulo. Quem dá as horas é o pêndulo; quem as avisa, o cuco; quem as determina, o dono do relógio. Os ingredientes complementares são água, terra, fogo e ar. Seu Lino teve tosse, que rapidamente virou pneumonia; disse que queria comer camarão e comeu; foi para o quarto, deu um adeusinho – expressão dos de sua geração e de outras um pouco mais recentes, mas gesto, nele, inesperado – deitou-se, virou de lado e, no dia seguinte, acordou. Despertou do lado de lá, depois de cento e quatro anos do lado de cá. É assim que se vive. É assim que se morre.

Meu romance “A dinastia de Ricardo Coração dos Outros” acabou. Na verdade, acabará no próximo Sábado. Seu final já está guardado na máquina de escrever alemã Olympia que herdei do meu pai, na qual ele escrevia para minha mãe todas as vezes em que ela viajava, na mesma em que ela traduzia livros do Inglês, máquina onde escrevi textinhos e poeminhas para amigos e namoradas, que hoje é objeto de decoração e lembrança, e é na lembrança das suas teclas que pré-escrevo o que quer que escreva: é nelas onde já escrevi o final que escreverei de fato em teclado e tela de computador para publicar no blog no próximo Sábado, 22 de abril de 2006. Qual será o lado de lá do meu livro? E deste glorioso tanto quanto botafoguense blog? Do livro, o próximo passo será a busca do passado – não o da máquina do meu pai, mas o das letras impressas em papel, livro de se levar em viagem, ao banheiro, à estante, de se perder no banco do ônibus.

Se será bom de ler, aí já é outra história.

E será de outra história que viverá este blog.

Um abraço, Seu Lino. Não tive o prazer de lhe conhecer pessoalmente e sim por meio de seu neto, motorista de táxi, que hoje de manhã me disse da sua morte. Não tenho religião e tenho entretanto a certeza de que o senhor lerá esta crônica.

Se o senhor vai gostar...

Aí já é outra história.

4.16.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 - 2006

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- SETE –

Depois do silêncio, algumas pessoas se retiraram; outras ocuparam seus lugares. Um deputado fez um discurso em tom antiquado, de palanque; mais silêncio. Ricardo V desandou a escrever em seu palm-top com teclado e tela virtuais. Pediu licença para projetar o que havia escrito. O deputado ainda falou por muitos instantes, até que se calou e sentou-se. A platéia permaneceu em silêncio, que só não era absoluto por causa do entra e sai de pessoas no anfiteatro e do corre-corre de profissionais da mídia e da segurança.

O que Ricardo V escrevera, projetado em ampla tela de ultra-máxima definição levada aos olhos de cada um dos presentes via “perfect-vision”, dizia o seguinte:

“A reunião perdera o sentido. O único efeito que dela ficou foi ter vazado, como disse o General, e com isso, parte do silêncio foi rompido. O pronunciamento de Dona Eduarda calou fundo na mente dos políticos profissionais – o que, a princípio, pareceu não ser verdadeiro. Terminada a reunião, lideres da política profissional reuniram-se dias a fio, reestruturando propostas de reformulação da prática política que se encontravam engavetadas, guardadas em mídias das mais diferentes gerações tecnológicas, para depois apresentá-las à população. Riscaram de vez de seus discursos a palavra “povo”, que sempre dera a impressão de que o povo fosse uma coisa à parte deles, os políticos, e delas, as elites culturais e sócio-econômicas. Povo era sempre empregado com fins demagógicos em seus discursos – deles, os políticos profissionais, os quais assim admitiram. Povo, não; população, sim. Propuseram uma administração em condomínio, onde exerceriam suas outras atividades econômicas às claras, dedicando apenas parte do seu tempo à prática política. O Executivo e o Judiciário deveriam continuar trabalhando com dedicação exclusiva, eles pensavam, mas o Legislativo, afora estudiosos do arcabouço e detalhamento do permanente pensamento das leis do país, deveria exclusivamente se reunir para apresentar e discutir propostas, tomando decisões de interesse público, maior para o funcionamento do país, sua economia, sua ecologia, sua gente. As campanhas passariam a ser sempre por colegiados, despersonificando-as o mais que fosse possível, buscando, antes de tudo, saber, de perto e a contento, metódica e sistematicamente, o que, afinal, os indivíduos da população queriam da política, do Estado e das empresas. A consciência de que políticos são empregados da população – e não o contrário – finalmente se estabeleceu. Antropólogos, psicólogos, psiquiatras, mães, avós, avôs, pais, adolescentes e artistas foram convidados a formarem núcleos para rediscussão do interesse pelas drogas, que já começava a ultrapassar novamente o controle da oferta pela saúde pública para viciados em programas de superação do vício e o que era possível de conviver à vista grossa, como ocorria no resto do mundo, e ao jeitinho brasileiro, nas esquinas, calçadas, residências, escritórios, igrejas, bares e repartições. A necessidade de repensar e re-projetar cárceres era premente. Não admitir que a Amazônia e reservas indígenas fossem desprotegidas a ponto de dar oportunidade a potências estrangeiras de proporem administrá-las em bloco era consenso nacional. Inclusão social todos os dias passou a ser prática corrente de Estado, empresas e indivíduos. Assistencialismo, nunca mais. A tecnologia foi invadindo saudavelmente assentamentos e fazendas, propiciando oportunidades e não tirando empregos. Irrigação por gravidade foi sendo substituída pelo que há de mais econômico e eficiente em todas as regiões rurais produtoras; a repartição de bens como a água foi resolvida racionalmente – e não demagógica ou imperativamente. A mídia passou a perguntar – e não a importar, adaptar e impor – o que, afinal, a sociedade queria ver e ouvir, como gostaria de se divertir e de ser informada – e, principalmente, do que cada indivíduo gostaria de ser informado. Deslizes, desonestidades, equívocos na política e no convívio da sociedade continuaram a acontecer, mas vigiados de perto, desprezados em forma e conteúdo pela população, punidos, corrigidos, rápida e eficazmente. O Brasil não estava se tornando uma potência – mas eliminando em ritmo acelerado o fosso social e deixando de permitir que se instalasse coletivamente o desânimo que Lima Barreto conferiu a Policarpo Quaresma nas últimas páginas da biografia deste, cuja vida foi vivida nos últimos anos do Século XIX, e que tantas vezes tornara a se instalar na alma brasileira ao longo da história do Brasil, até esses dias de 2017. Desânimo nunca mais; imposições nunca mais; demagogia nunca mais; corporativismo nunca mais; inclusão, progresso econômico, financeiro e social, sempre. Democracia sempre. Esclarecimento sempre. Cultura, educação, capacitação – sempre. Assim foi.”

A platéia leu aquelas palavras projetadas bem perto dos seus olhos, permaneceu em silêncio mais alguns instantes, até que um homem visivelmente humilde e ligeiramente embriagado levantou-se e disse, alto e bom som:

- Assim seja!

Todos ficaram de pé; Sérgia desceu com Ricardo V e o General para juntarem-se a Rita e Dona Eduarda dentre a audiência. A frase do senhor humilde e gentilmente bêbado foi repetida coletivamente, unissonamente:

- Assim seja!

Todos voltaram os olhos para os políticos presentes – deputados, senadores, o Presidente da República. Este tomou a palavra e declarou:

- Assim será.

E baixou a cabeça.

Todos se retiraram. Alguns sorrisos, alguns abraços. Em silêncio.

4.10.2006

AO TELEFONE, DE FRENTE PARA O MAR

A vida vira morte de um instante para o outro e isso não é nenhuma novidade. Mesmo naqueles casos de leito de doença prolongada que se sabe é a morte chegando; mesmo quando, no momento em que ela se aproxima, provoca sonhos com outros mortos e os membros e órgãos vão sendo aos poucos desligados do cérebro, quando realmente chega, a morte é abrupta. E assim foi para um casal – ele primeiro, ela depois.

Um outro casal, com dois filhos mais velhos que os três órfãos do que falecera, herdou-os para criar. Isso faz alguns anos.

Pois ele - o que se tornou, abruptamente, pai não de dois, mas de cinco - me ligou. Fiquei preocupado, futilmente, pois ele torce para o Botafogo, como eu, e – a experiência demonstra - botafoguenses não devem se falar em dia de decisão.

Nem sempre a experiência vence e, mais tarde, quem venceu foi o Botafogo; sagrou-se campeão, contra um time de subúrbio, o Madureira – mesmo bairro da Portela, cujos ensaios eram na quadra do Botafogo. Devo me dar conta que o assunto não era - e não é - futebol. Mas podia ser samba; da Portela, inclusive. E dos mais alegres.

Eu estava na praia. Era Domingo, um dia lindo, o mar atlântico estourava na beira da praia como quem quer comemorar, sua temperatura, densidade e docilidade, nem o útero materno conseguiria fazer melhor. Pergunto ao meu amigo ao telefone, Como vão as crianças, que já não são mais crianças? O mais velho, diz ele, na Alemanha, fazendo doutorado de Engenharia; a segunda, em casa, estudando Medicina com o namorado; o terceiro, faz Educação Física; a quarta, também cursa universidade; o caçula, bem, o caçula passou para Comunicação e Educação Física e ainda está indeciso, mas sem pressa.

Não sei que reação essa história provocará em quem a ler, neste já persistente blog. Da minha parte, que a ouvi no original, confesso que fiquei rindo sozinho.

Obrigado, Leda, valeu, Zé. Vocês me fazem concluir que, perto da vida, a morte não passa de uma idiota. Abrupta e idiota.

4.07.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario BenevidesBrasil, 2005 - 2006

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- SEIS –

Rita saiu quase que escorraçada depois da sua fala. Por mais que tenha frisado ser casada com um brasileiro, mãe de filho brasileiro e residente no Brasil havia quinze anos, seu sotaque de americana causou desconforto em alguns nacionalistas, extremados demais para discutir a questão indígena com uma americana.

Perguntaram-lhe da sua experiência e formação; disse-lhes dos seus títulos e citou suas experiências no Brasil e na Bolívia – que foram consideradas episódicas por um dos presentes, tendo o Presidente da República em pessoa dito a ela que já tinham levado em consideração suas contribuições e que ela por favor desse a vez a outros presentes.

Rita agradeceu e foi saindo do auditório da presidência; seu marido, Ricardo V, foi atrás dela, às pressas, percebendo a mágoa da mulher com o visível desinteresse e debochados bocejos que percebera enquanto se expressava. O General, que havia insistido para que Ricardo V fosse àquele encontro, foi atrás dele e, atrás do General, Sérgia, mãe de Ricardo V. Dona Eduarda foi saindo um pouco mais vagarosamente que os demais. Alguém pediu a palavra, mas iniciou-se um burburinho. O General voltou trazendo Ricardo V esbaforido e ofendido pelo braço e deu a seguinte notícia:

- Esse nosso encontro vazou; todo mundo está sabendo e há uma multidão lá fora. ONGs, movimentos, estudantes, o diabo.

O Presidente da República rapidamente acionou a Segurança do Palácio; o chefe da Segurança pediu-lhe calma: “A situação está sob controle”. O Presidente deu a notícia aos demais e pediu que o General tomasse a palavra – e brincou: “O Governo, não; só a palavra, General.”.

O General expressou-se pela manutenção das reservas indígenas dentro das fronteiras e sob a responsabilidade exclusivamente do Brasil. Propôs que fosse feita uma revisão geral da estrutura orçamentária do país, e que as nações interessadas na independência das tribos fossem convidadas a contribuir com recursos para manter as tribos protegidas, em seus limites de terra, saúde e bem estar, conservadas suas tradições. Uns balançaram a cabeça; outros aplaudiram. O Presidente da República disse “Muito bem, está aceita a proposta”. Foi quando Rita e Dona Eduarda retornaram; o General, percebendo os olhos mareados de Rita, pediu a Ricardo V que tomasse a palavra.

Ricardo V convidou a mulher para que o acompanhasse no palanque; ela não quis. Alguém chegou de fora correndo e foi ao ouvido do Presidente; este fez um ar preocupado, baixou a cabeça e disse:

- Mande-os entrar.

Ricardo V percebeu o mal estar e aguardou. Cerca de duzentas pessoas tiveram acesso ao ambiente; mantiveram-se de pé e, aos poucos, foram-se sentando.

Deram a palavra a Ricardo V novamente. Enquanto ele foi falando, mais umas trezentas pessoas entraram no auditório recentemente reformado e foram tomando seus assentos. Algumas preferiram ficar de pé.

Ricardo V disse assim:

- O que está acontecendo já era para ter acontecido há muitos anos e é só a ponta do iceberg. Muito bom que tenha havido um começo de solução para o tráfico em 2014 e que a situação nesse aspecto esteja hoje melhor do que foi até 2010. Porém, o avanço nas instituições e procedimentos da democracia brasileira, as práticas da política, foi pífio depois da crise de 2005 e 2006.

- Pífio? – um senador indignou-se. “Pífio” – repetiu Ricardo V.

Alguns da platéia aplaudiram; um chiado partido da mesa pediu silêncio. Mais pessoas entraram no ambiente; alguns esparsos aplausos para o que Ricardo V havia dito. Este continuou:

- O tráfico já começou a se reorganizar novamente.

- Protesto! – um deputado presente à mesa interrompeu. O tráfico não está na pauta! Não foi considerado crítico, não foi incluído na lista de consenso! Desde 2014, como declarou mesmo o senhor, nobre escritor futurólogo, a questão foi equacionada!

Ricardo retomou a palavra:

- A questão das drogas só teve uma solução temporária; atenção, deputado, atenção, senhores: este silêncio coletivo diz muito mais coisas do que se pensa. Cuidado, senhoras e senhores: é como se tivéssemos perdido um elo qualquer com aquilo que sonhamos. Tem sido assim sucessivamente. O descrédito com relação à política em 2005 e 2006 foi o começo dessa sensação, deste... vazio. Individual e coletivo.

- Superado! Foi superado! – gritou o mesmo deputado, batendo com as mãos sobre a mesa.

- Temporariamente, deputado; só temporariamente. Ainda viveríamos, como vivemos e vivenciamos, terríveis crises, incluindo a convulsão social de 2010.

- Ora, o senhor vai voltar no tempo? Viemos aqui para tratar do presente e do futuro!

- Deputado, o senhor não ouviu o que disse Dona Eduarda?

Fez-se um breve silêncio.

4.04.2006

SS: O SONETO SUBVERSIVO

Pode ser que um dia a turma fique esperta e perceba/
Que esse negócio de privatizar primeiro/
Obter investimentos privados/
E depois reestatizar//

Com discursos inflamados/
Isso é bem público/
Pertence ao povo/
Boliviano venezuelano brasileiro//

Fica sendo bom negócio pra quem vive/
De discurso/
Quem vive de investimento//

Fica a ver navios/
Quem simplesmente vive/
A ouvir discursos.///

4.01.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 - 2006


TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- CINCO –

Ricardo V apresentou-se à mesa, deixando Rita e Dona Eduarda na primeira fileira do anfiteatro do palácio de governo, onde algumas poucas pessoas já se encontravam, provavelmente tão inesperadas e inexpressivas para a maioria como as duas.

Foi dada a palavra a Ricardo V:

- Acredito que este fenômeno silencioso, de apatia popular em relação à mídia e à política no Brasil, possa ser melhor explicado por Dona Eduarda, a quem gostaria de apresentar a todos e passar a palavra.

Houve alguns protestos. Alguém disse a Ricardo V que seu atraso havia-lhe impedido de acompanhar importantes debates, que uma lista de pontos de consenso já fora estabelecida e que o fenômeno do silêncio e apatia coletivos já havia sido compreendido pelo grupo de notáveis presentes, pelo menos em tese.

- Pois o que estou propondo é que Dona Eduarda o explique na prática.

- Quem é Dona Eduarda? – quis saber um dos que protestaram contra o atraso e as companhias de Ricardo V.

- Uma residente num dos assentamentos agrários do norte de Goiás.

Depois de algum silêncio, Ricardo V convidou Dona Eduarda a subir no palco e acessar o palanque ao lado dele.

- A palavra é sua, Dona Eduarda – ele disse.

- Boa tarde – ela disse, com seu sotaque característico da sua região. Meu nome é Eduarda das Neves, moro em Cavalcante, município do Estado de Goiás, em assentamento com mais vinte e três famílias, perto da comunidade kalunga. Vivemos ali por um tempo com muito pouca água, depois instalaram pra nós uma irrigação que precisava pagar pela energia, depois nós fizemos um sistema por gravidade com ajuda de uns engenheiros que moram por lá. Hoje temos água e energia. Temos a tele-multi-mídia e as redes, tratamos da nossa água, cada lote de terra, cada residência paga por sua luz e energia ao nosso condomínio. Nossa associação paga pelo acesso à água que é canalizada, paga pela luz, pela eletricidade. Temos bateria solar também, temos desses cata-ventos que também geram energia, temos uma fábrica de utensílios pra nossa lavoura, temos bons equipamentos de aragem. Temos um contrato pra vender nossa produção no comércio local, temos de um tudo por lá.

- Não falta nada, então? – perguntou alguém, com alguma ironia.

- Respeito. O que falta por lá é respeito.

- Da parte de quem? – quis saber o General.

- Tão fazendo pouco da nossa inteligência. Qualquer pessoa acessa qualquer das duas redes, lê os noticiários que chegam em papel, vê as notícias na tele-multi-mídia e é tudo igual. Tudo repetido, e parecem que querem alegrar a gente ou então entristecer, como se nós fôssemos idiotas. Nós temos escola, temos livros, temos tudo que a cidade tem.

- As cidades também estão em silêncio e sem acessar nem as redes nem a tele-multi-mídia – explicou Sérgia.

- Ninguém agüenta mais. Depois não dá pra entender como é que ainda tem tanto pobre no Brasil, muita coisa já evoluiu, eu tô com sessenta e cinco anos, já vi foi coisa. Aí os políticos visita nós, às vezes vão lá, outras vezes aparecem de repente na tele-multi-mídia, nos mandam mensagem com a cara deles nas telas de bolso e de mesa, no banheiro, na sala, no quarto, na lavoura, e dizem sempre a mesma coisa, tudo falando empolado, tudo agora tem diploma e nós também tem, tudo é profissional, treinado, e ainda tem muita miséria no Brasil, tá errado, não é justo nem é certo nem inteligente.

- O que que a senhora pensa dos índios? – perguntou o Presidente da República.

- Dos índios? Onde eu moro não tem.

- Posso falar? – ofereceu-se Rita, levantando-se.