12.12.2009

OS OLHOS DELAS (para Maria Luiza, minha filha)

A atriz sai de cena de cara lavada. Passa por todos apressada, não olha para ninguém, não quer tirar fotos nem autografar nada, quer a solidão ou a companhia de iguais. Seu melhor momento foi há pouco, no palco, uma atriz e seus olhos, uma atriz é seus olhos. E nada mais, se de fato for atriz. O resto, para ela, é acessório.

A bailarina sai de cena toda sorriso, o cabelo preso e os olhos com a mesma pintura que usou no palco. No palco, ninguém conseguia ver seus olhos embora todos os procurassem, admirando nela o mesmo sorriso de agora, seus saltos no ar, seus giros e o rosto fixo, a volta ao chão sempre firme, segura, leve, como leve é nos braços do par. No palco, era um corpo de baile inteiro, uma orquestra embaixo, - onde os olhos da bailarina? Só agora os vemos, pintados, lindos, o cabelo preso, o sorriso, agora, de perto.

Do que precisa um sonhador, um pragmático, um gênio, um rude, um gentil, o mais completo imbecil arrogante, do que precisa a paz, senão dos olhos de uma atriz durante, senão dos olhos de uma bailarina depois?

11.22.2009

OB

Eu sei que você às vezes me visita sem deixar cartão ou comentário. Sei de outros que também passam por aqui, só que por meios sinistros, aracnídeos, troianos e seus tentáculos, deixando comentários ininteligíveis e algum tipo de vírus - como este, de uma ligeira gripe, das tradicionais, da garganta arranhando. Sei muito bem distinguir um dos outros - e é a você, que me visita apenas para ver se há novidades por aqui, que me dirijo. E com muito prazer.

Morreu um corrupto. Pelo menos isto: eles também morrem. Dirá você que mortes não devem ser comemoradas. Aliás, é praxe, no Brasil, canonizar todo e qualquer morto. Este, que morreu ontem, é muito pouco provável que seja canonizado por alguém. Mas faltam muitos e não vamos matá-los nem ficar esperando que eles morram. Falemos da vida - da alheia, naturalmente.

Hoje é domingo e de vez em quando chove, mais pra chuva do Tom Jobim, "prazenteira", e não dessas que, ultimamente, têm causado tantos terríveis estragos. Já no sábado passado, do fim de semana passado, um dia de quase-sol, fomos à praia, em um ponto badalado de Jurerê, Florianópolis. Uma moça parecia ter cola nas mãos: uma delas trazia colada uma garrafa long-neck de cerveja; a outra, um cigarro. Do seu biquini, saía o rabinho de um OB, só que este não estava grudado: ele tremulava ao sabor do vento. Senti saudades da personagem da Camila Pitanga e sua "catigoria", como senti saudades da mulher de classe - que não necessariamente é a classuda. Uma classuda pode até ter classe, mas vive em uma atmosfera de ex-modelo - e modelos, como se sabe, podem ou não ter classe, ainda que sejam classudas, do mesmo modo que saudade nada tem a ver com saudosismo.

Saudades desta expressão - "modelo" - que deu lugar à de "top model". Saudades do Tom Jobim e saudades - eu era um garoto - de quando a Leila Diniz exibiu sua barriga de grávida, tão natural quanto a menstruação da moça do OB e seu rabinho esvoaçante.

Saudades de você, que me visita com ou sem comentários.

Se você é a moça da praia do sábado passado, do fim de semana passado, algumas sugestões: largue o cigarro; de vez em quando, deixe a long-neck dentro do isopor ou jogue-a fora no lixo, assim que a cerveja acabar ou ficar em temperatura desagradável; vá até o mar, dê um belo de um mergulho, nade um pouco e ponha o rabinho do OB pra dentro do biquini, porque ele não combina, assim, com esta postura de rabinho tremulante ao sabor do vento; e, mais importante, mantenha este seu sorriso, genuíno como barriga de grávida, genuíno como sua menstruação, genuíno como genuína é esta sua alegria, que me deixou aqui, neste domingo de chuva prazenteira, cheio de saudades.

11.04.2009

X TUDO

Esse é o nome abrasileirado de um sanduiche que leva de tudo: da maionese à rúcula, passando pelo bife de carne muída prensada e queijo mussarela. Aceita tudo. Foi assistindo na tv a cenas deprimentes da política japonesa, nas quais congressistas se esbofeteiam e vão ao chão de terno e gravata, causando inveja aos lutadores de sumô, que mais uma vez me convenci do óbvio: não só o brasileiro não sabe votar: ninguém no mundo sabe votar, pois, se um e somente um o soubesse, todos diriam a ele - ou ela -: "Vá e vote por todos nós". Como ninguém sabe votar, todos votam; esse, o elementar princípio das eleições - ou mesmo dela: da democracia.
E o X Tudo com isso? Quem aceita tudo e leva de tudo é o nosso popular eXcluído de Tudo - o X Tudo. Se eleitores majoritariamente esclarecidos - caso presumível dos japoneses - se miram em seus representantes democraticamente eleitos reduzindo aos tapas seus supostos, esperados, talvez inexistentes argumentos, nossa imensa maioria de X Tudos, aceitando desde café da manhã requentado com o prefeito até vale-combustível em troca de voto, naturalmente que não espera por argumentos, mas comida, escola, emprego, etc. - dando margem a toda espécie de canalha, que quer é ver a conta de X - vezes - se tornar exponenciação de X Tudos, carentes a ponto de suportar sua canalhice e inutilidade e de multiplicá-los, a eles, os vis, os abutres, os que se distinguem de todo e qualquer corrupto, porque roubam de quem não tem e, por causa deles, os vermes, não terá.
Ultimamente, não raramente tenho sido convidado a palestrar por aí. X Tudo é a imagem que tenho usado nessas oportunidades. X Tudo, na esperança de que nosso gosto se modifique, nossa vontade de aceitar qualquer coisa se apague, nossa exigência tome o lugar da mistura sem gosto e indigesta de tudo que junto não combina, de tudo que é tão diferente de quem gosta de eleição, democracia, respeito; de inclusão e multiplicação de oportunidades e perspectivas, incluindo a de escolha, ao invés de exclusão de gente e sua dignidade.
X Tudo, nem light.

9.20.2009

EM NOME DA DÚVIDA

Curiosa gente
Que se pensa mais inteligente
Por crente
Por descrente.

Esta, que desfralda bandeiras
Despreza vendavais
Oferece-nos mamadeiras
Seus desrítmicos ruidosos anticarnavais.

Inoportuno é o pregador
Inoportuno é o negador.

Pregadores
Negadores
Deixem-nos a nós
Com nossos nós

Aos ventos
Aos mares
A sós.

9.13.2009

GUARACIABA, UM ESTADO E SEUS MUNICÍPIOS

Nós não existimos. Se você quiser continuar a nos ler assim mesmo, para nós, os inexistentes, será um prazer. Bem vindo ao Estado de Guaraciaba, cuja capital também se chama Guaraciaba. Alguns dos nossos demais municípios são o Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis. Se você duvida, basta lembrar de uma coisa: nós não existimos.

Morávamos no Rio, chamado de cidade maravilhosa porque, de qualquer lugar, se não for o mar ou a montanha, é o céu que se vê, quase sempre azul e, talvez por isso, o povo de lá é alegre até quando tem motivos para ficar triste. Lá, quando chovia muito, quando nossa casa deslizava morro abaixo, a culpa era nossa. Costumavam dizer que nós não sabíamos o que fazer do lixo e que o espalhávamos por toda parte e, por isso, nossa casa desabava. Se isso era verdade ou não, pouco importa, porque o que a gente diz não tem a menor importância – pois não existimos. Naquele tempo, nós éramos pretos e diziam que ser preto não era bom. Hoje em dia, sabemos de gente que passa por preto ou negro para entrar na faculdade. Como não sabíamos que um dia seríamos valorizados por ser pretos, viramos nordestinos e nos mudamos para São Paulo.

Em São Paulo, cada vez que chovia muito, alagava tudo e nossa casa ficava inundada até o teto e nós aparecíamos na televisão, andando com a água pela cintura, remando um barco improvisado ou chorando pelos cantos. (Nós, os inexistentes, desde quando nosso barraco lá no Rio deslizava morro abaixo, vira e mexe aparecemos na TV.) Começamos a perceber que São Paulo é um município sem limites, que se espalha para todas as direções: para os lados, para cima e também para baixo – quando é para debaixo d’água que São Paulo vai. Todo mundo um dia acaba se mudando para São Paulo porque lá é onde há muitas oportunidades, quando poucas são as que existem em outros lugares - por exemplo na parte do Nordeste onde costuma não chover, mas, quando chove, chove muito. Prova disso é que existe uma música chamada Súplica Cearense, na qual o cantor pede perdão a Deus porque reza errado e de tanto rezar errado para que chovesse, Deus entendeu que era para mandar todas as águas do céu em cima do Ceará. Os autores da música se chamam Gordurinha e Nelinho e não sabemos se eles existem, mas a canção foi gravada pelo Fagner, e o Fagner existe, embora ele também apareça na televisão. Nós éramos retirantes nordestinos sempre crescendo pro lado debaixo da água de São Paulo e por isso resolvemos nos mudar para Florianópolis.

Agora, somos descendentes de italianos, alemães, açorianos, pretos e índios; alguns de nós são chamados de bugres, outros, de manezinhos. Florianópolis é uma gracinha, de tão delicada que é, com suas montanhas, o mar por toda parte, a ponte pênsil e as outras duas de concreto, cheias de automóveis parados em cima delas. A cidade quer atrair turistas, mas não prepara para isso as pessoas que trabalham como garçons, motoristas de táxi, serventes em hotéis e outras atividades; pessoas que, como nós, não existem – portanto, se elas não existem, porque prepará-las? Percebemos também que não só as pontes começaram a ficar cheias de automóveis parados em cima: todas as ruas foram ficando assim, não sem antes os automóveis passarem a toda velocidade e se baterem uns nos outros, principalmente quando chovia e em Florianópolis também chove, parece que é assim por toda parte, e percebemos que em Florianópolis, quando chove muito, é uma mistura de Rio com São Paulo: alaga tudo e algumas casas desabam. Foi quando viramos somente descendentes de alemães e italianos e nos mudamos para a capital do nosso Estado, que, como já dissemos, tem o mesmo nome que ele: Guaraciaba.

Pois na capital Guaraciaba também chove e, por aqui, os ventos às vezes são tão fortes que se chamam tornados. Este último arrancou os telhados das casas dos ricos, arrancou do chão as casas dos pobres e arrancou dos ginásios seus telhados - os quais, por sua vez, arrastados pelo tornado, arrancaram os telhados das outras casas que ainda tinham telhados em cima delas. Aí nos mudamos para dentro de um ônibus, que está e vai continuar parado por algum tempo: ele virou a nossa casa e também a casa de muitas outras pessoas, algumas brancas como agora somos e outras bugres, manezinhas, cariocas, paulistas, nordestinas, pretas, cafuzas, mamelucas, negras, como já fomos antigamente, nós, os inexistentes do Estado e agora da cidade de Guaraciaba, que acabamos de aparecer na TV, deitados em nossos colchões, dentro do ônibus.

Depois, vimos uma porção de acontecimentos no país vizinho, o Brasil: os Jogos Panamericanos, a promessa das Olimpíadas e a Copa do Mundo que vai ter por lá e os governadores e os presidentes e... Foi na TV que também assistimos sobre vários pactos, sendo que alguns os representantes oficiais do vizinho do Estado de Guaraciaba, o Brasil, assinaram: pacto do G20, protocolo de Kyoto, Princípios do Equador, Rodada do Uruguai, Fórum Mundial de Davos, Rodada de Doha, Objetivos do Milênio...

Nós, que aparecemos toda hora na TV porque não existimos; que não somos representantes de povo nenhum, porque somos o próprio povo de Guaraciaba, sua capital e seus municípios, Rio, São Paulo, Florianópolis e outros; que não somos os que se perderam e que aparecem na TV com suas cabeças baixas e as mãos algemadas ou com os olhos vendados ou ainda dentro de um caixão pequenininho; que somos os pretos, os brancos, os cafuzos, os mamelucos, os índios e os loucos; que somos os despreparados e os doutores; nós e nossos diferentes sotaques, vistos na TV quando nossas casas desaparecem, após assistirmos sobre tantos pactos e nós mesmos deitados dentro do ônibus, pensamos o seguinte.

Por que não fazer um pacto de Guaraciaba? Do nosso Estado, o Estado de Guaraciaba, que vai lá no Rio de Janeiro, se estende ao Nordeste até o Maranhão, passa por Manaus e por Belém e por Brasília e pela Belém-Brasília, passa pelo Acre e pelo Goiás e pelo Espírito Santo e por Campos e pelo Pré-Sal, passa por Minas e inclui São Paulo, atravessa Curitiba, vai até Porto Alegre e se muda para Florianópolis e culmina pela nossa capital, a capital do Estado de Guaraciaba, tão parecido com o país vizinho, o Brasil? Por que não um protocolo onde nossos representantes oficiais e seus partidos, os de situação e oposição, assumissem compromissos igualmente oficiais de planejamento das cidades, suas moradas e moradias, suas pontes, seus morros, suas drenagens, seus automóveis, seu transporte coletivo, suas fontes de renda, seu preparo para receber turistas e novos moradores e suas defesas contra aquilo tão longe, tão acima de nós, mas que tantas vezes se repete, como os ventos, as chuvas e os tornados? Se os representantes do Brasil assinam tantos pactos internacionais, porque nós, os do Estado de Guaraciaba, não fazemos nossos governantes e candidatos firmarem, sob pena da perda do mandato se não cumprirem suas metas, compromissos para conosco, que não existimos? (Não sabemos como é no Brasil, mas, em Guaraciaba, compreendidos o Estado e seus municípios, nós, os inexistentes, é que pagamos os salários dos políticos - às vezes com nossos impostos, outras, com nossa credulidade.)
Mas, que ninguém leve nada disso a sério: afinal, somos aqueles que não existem; somos apenas e tão somente o povo do Estado de Guaraciaba.

8.07.2009

ELIANA DINIZ

Não tenho propriamente uma fé. Tive um catecismo católico muito agradável, menino de Laranjeiras, Rio de Janeiro, em um convento, com árvores, tamarindo, passarinhos e, naturalmente, freiras. Minha primeira comunhão foi franciscana, diferente das usuais naqueles anos, os mesmos quando vi, trazido pelas mãos de pai e mãe, soldados fardados e armados e os dois me dizendo, O Jango caiu e vai sair do Brasil. Meus pais não eram religiosos. Ela, de um internato de um rigor absurdo e crenças assustadoras, a ponto de ser obrigada a tomar banho vestida e dormir com a certeza de que o diabo estava embaixo da cama; ele, do Colégio Zacarias, no Catete, ao qual ia a pé, desde a Rua Umari, nas proximidades do Convento onde fui catequizado, já por falta de dinheiro – meu avô era um aristocrata, de família tradicional, talvez fino, seguramente falido – e saiu sem completar o curso, exatamente por esse motivo. Seguiram suas vidas, tinham curiosidade, liam tudo, os tempos eram outros, de uma forma um pouco diferente da de hoje, não era o diploma que fazia a diferença, a não ser para a tríade medicina-engenharia-direito. Foi assim que fui crescendo, indo às vezes à missa, já no Leme, começo de Copacabana, levando na gozação o “coração ao alto”, sentindo certo alívio quando percebia que a missa ia chegando ao fim. Depois, fui conhecendo a história, preceitos, preconceitos, dogmas, cheguei ao ponto de me sentir espécie de paria no mundo dos crentes, dos que tinham fé. Li Morris West, Nelson Rodrigues e Graham Greene, católicos de diferentes gradações, seus profundos encantamentos e desencantamentos, questionamentos, particularizações. Disso tudo, o que me restou foi uma sensação de ilógica e semelhança entre o Gênesis e o Big Bang e a esperança, mais do que crença, na transformação pós-morte, igualmente ilógica e semelhante às possíveis sucessivas transformações de ameba em quadrúpede, bípede implume, hominídeo, até o homo sapiens. Com relação à Igreja Católica, uma desconexão, uma não-aceitação de certas inflexibilidades, imposições, e a leitura de Em que crêem os que não crêem, troca de correspondências de Humberto Eco – mais um ilustre desiludido e desgarrado - com um cardeal. Ficou-me a mesma admiração dos escritores que citei, mais – muito mais - pelo humano que a instituição; mais por conhecer de perto alguns sacerdotes, sinceros, devotos, convictos e ao mesmo tempo conscientes de tanta incoerência, da defesa do tantas vezes indefensável, do distanciamento do poder do Vaticano corporativo e a dura realidade de crentes e descrentes, a maioria dos habitantes do planeta ainda excluídos, desgraçados, desesperados.

Em que crêem os que não crêem? – permanece a pergunta-título do livro já citado.

Da minha parte, passei a crer na perseverança de Eliana Diniz.

Ela cuida de um lugar que não existe, a não ser em certo gênero de filme americano. Em uma sala de mesas coloridas, há estantes, crianças lendo livros, querendo contar histórias. Noutra, meninos – meninos – tecem colchas, tapetes, panos de prato. Na terceira, meninas e meninos reaproveitam jornais velhos, lidos ou não, e fazem cestos e porta-retratos. Na quarta sala do lugar inexistente, só imaginado em filme americano sobre escolas de música, dança e teatro, três teclados, em cujas teclas se encontram escritas as notas, dó, ré, mi... abrindo o caminho para mais uma sala, onde oito jovens, de todas as misturas étnicas possíveis e sua beleza espontânea, bruta e ingênua, dos dois sexos, aprendem a tocar violino. Sete violinos para oito jovens, fazendo com que um deles fique esperando, olhando para o chão, pensando no que não queria, no mundo que deixou e o espera lá fora. Melhor esperar a vez do violino.

O maestro-professor, como os alunos, tem vida dupla. Os alunos e alunas da casa inexistente estudam em um turno e, no contra-turno, freqüentam o lugar imaginário. O maestro-professor, quando não está lá, conserta relógios.

Meninas e meninos, dos que querem ler e contar histórias aos que aprendem teclado, tecelagem, reciclagem e violino, se dividem entre os que costumam dormir debaixo da mesa da sala das casas onde moram e os que dormiam na rua e hoje vão para o abrigo municipal tentar dormir e sonhar com seus instrumentos, livros e agulhas.

Às vezes, quero desistir, diz Eliana Diniz, é miséria demais, é cada coisa que a gente vê... E dizemos a ela, mas aqui se conseguem resultados tão bons, esses meninos, essas mocinhas, estão encontrando seus caminhos, sonham, aprendem, vão querer se desenvolver, se encontrar em suas vidas, têm sua auto-estima recuperada...

Mas querem que eu tire o almoço deles, ela nos conta, tinha uma verba estadual que acabou e aí eles me disseram que eu tirasse o almoço e continuasse o projeto. Mas como eu vou tirar a refeição deles? Eles comem direitinho, todos em fila, depois eles mesmos tiram e lavam os pratos.

Este lugar de mentirinha fica em Quedas do Iguaçu, interior do Paraná. Só quem vai lá percebe que isso, o lugar que não existe, guarda ilógica e semelhança com o Gênesis, o Big Bang, Adão, Eva e o primata-ameba hermafrodita, o desaparecimento absoluto e a alma, ou seu equivalente, o espírito, partindo para outra, quiçá um paraíso.

Esta a minha falta de fé. Esta a minha crença. A insistência, a perseverança, crer no que não é crível, esperar o que não deve nem pode ser esperado. Mais que qualquer coisa espiritual, lógica ou ilógica, cética ou crédula, sábia ou pseudo-intelectual.

Eu tenho a mais absoluta certeza de que esta mulher, Eliana Diniz, a irmã Eliana, existe.

7.23.2009

UM HOMEM E SEUS CAPÍTULOS

O que há de mais interessante na vida não é a compreensão, mas o seu exato contrário. A esperança persiste porque o contrário não consegue ser tão exato quanto se esperava dele. A célebre foto do menino africano à beira da morte à beira do lixo enquanto um urubu observa a cena, que rendeu um prêmio e um suicídio ao fotógrafo, a tudo resume e explica e confunde. Há quem interprete a cena, se esquecendo de que não é uma cena e sim um fato que já deixou de ser e virou passado. Há quem use a foto, há quem explique a posição de espera do urubu, quem se prenda à engenhoca chamada urubu. Há finalmente quem sofra pelo menino. Entendimento houvesse e conversa não haveria. Engenho seria palavra jamais pronunciada. Arte é que nem o lixo entre o menino e o urubu, se revela no espaço da incompreensão, da multiplicidade de impercepções, do raso ao supostamente profundo, aquilo que poderia ser abrangente e não passa de espaçoso, que se torna sensibilidade porque esta não se manifesta. Quem levanta e anda muito provavelmente está mesmo morto. Vivo é o estático: perplexo, menino, lixo, urubu.

7.16.2009

DA ARTE POR PROFISSÃO E DE TANTAS OUTRAS COISAS

Cronistas profissionais, por exemplo. Famoso colunista afirma ter conversado com escritora irlandesa que por sua vez diz ter conversado com dois escritores brasileiros e se ter espantado com o desconhecimento deles sobre escritores. O famoso colunista citado conta que mencionada escritora disse que um dos dois escritores com quem conversou é uma fraude. Nesse quem é quem mais para fofoca que página policial fica público e notório quem de fato é fraude. Assim eu diria se colunista social fosse de modo que o leitor supusesse – não me deixei trair por ignorante perigosa rima – que de algum modo estivesse querendo me favorecer escondendo nomes extorquindo vantagens. Igualmente escondi vírgulas por profissional não ser.

Poucos dias depois, chefe da receita federal é demitida com subsequentes eloquentes desmentidos de que suposições de manipulações contábeis da estatal mor tivessem de fato provocado sua demissão e graças ao diabo há uma crise a justificar a demissão e graças a leis há leis que dizem que a receita é órgão técnico impermeável a pressões políticas profissionalismo é isso aí.

De tantas outras coisas, pelo consagrado argumento de que a medicina não é ciência exata é que fazemos exames científicos à exaustão cujos laudos são escritos por técnicos a debochar de outros técnicos autores daqueles que deram origem ao n elevado a n mais 1 somado a mais 1 exame que nada conclui e ao mesmo tempo e paradoxalmente tem definitivo laudo que é ridicularizado pelo médico que o lê enquanto examina o negativo à luz fluorescente e interpreta aquilo tudo laudo e imagem e condena o paciente à morte ou às vezes pior à vida como se poderoso fosse profissional que é.

Mais que tudo isso, acima de qualquer coisa ou laudo, vírgulas ora direis, não se chega em casa e sim a casa. E sem crase. Em casa é que se fica amador amadora assim não for meu amigo minha amiga a história acabou seu sorriso se foi sua oportunidade de afagar o cão e chutar o bidê e gritar isso doeu e o vizinho ouvir e a vizinha reclamar acaba por acabar com a carreira do síndico da síndica profissional.

Assim foi que hoje cheguei, que amanhã me vou, que um dia irei, amador sou rei.

7.08.2009

CARAS

Não no referimos à revista, mas aos rostos humanos, vulgarmente chamados de caras. Há matrizes – e isso Darwin, seus seguidores e também seus detratores poderiam afirmar com propriedade; mas, dessa verdade, sejamos apenas passageiros inquilinos.

Um rosto de uma menina atravessando uma rua de Santo Amaro da Imperatriz é o mesmo de uma outra avistada em Florianópolis, em tempo decorrido que não permitiria que ambas fossem uma só e com diferenças o bastante para sabermos que não são gêmeas e sequer foram geradas pelos mesmos pai e mãe. O mesmo ocorrerá com meninos, senhoras, homens e mulheres de meia idade e, pior, de meias puídas ou – mais grave - de meias verdades.

Claro, você já se lembrou dos sósias. Há um maestro em Florianópolis a quem só não chamamos de Getulio Vargas por óbvias razões, sendo a principal o fato de ser ele um maestro, regente de orquestras, pouco afeito a movimentações que não as das cordas e notas musicais, que transmite a meninos e meninas de pais e mães que lhes são próprios, com traços, prognatismos, sorrisos, olhares vesgos, sobrancelhas juntas, olhos separados, queixos, lóbulos e narinas que nos fazem lembrar de pessoas distantes, até de outras gerações, de Darwinianas ou Divinas originais fôrmas (o acento, neste caso, mesmo que abolido ou proscrito, é fundamental).

Agora, sim, falando de uma revista, quem folhear uma Veja de alguns meses atrás encontrará uma reportagem sobre Darwin e suas explicações, até, para o soluço – e como ele e seus estudos encontram até hoje fortes resistências. Diz o artigo que há duas correntes: a que acredita que sejamos todos tailor-made, feitos um a um, sob medida; e a Darwiniana, das tantas transformações e gerações ao passar dos milênios, séculos, dias. Esta segunda, de acordo com o artigo lido às pressas e tardiamente, acreditaria ser tudo obra do acaso.

A questão, de fato, não é como nem quando, e - ousa-se aqui afirmar – nem mesmo quem, mas... Por que?

Por que pertencemos a matrizes e, mais, muito mais, gostamos do cheiro da rosa e desgostamos de outros tantos? Este encantamento pelo mar, o vento, a escalada e a visão da montanha, se tudo isso nos veio atavicamente através de múltiplas transformações e numerosas gerações, muito bem, Darwin; se não foi assim, se de fato somos, cada um, encomenda, feitura, experimento e refeitura de Deus – que diferença isso faz, se o motivo continua escondido por trás de uma nuvem que não se vê?

Pois se soubéssemos o motivo dessa confusão toda, dessa coincidência, dessa falta de acordo e, admitamos, de assunto, ora, sem querer ofender a ninguém, poderíamos louvar a Deus ou ao Santo Acaso, sem culpa nenhuma nem a necessidade de desferir truculentos e orgulhosos socos em nossos próprios peludos ancestrais peitos.

Meninas de Santo Amaro da Imperatriz e Florianópolis, ainda se eu fosse outro Mário, o Quintana - mas não. A verdade é que seus rostos, suas caras, sua matriz amada e desconhecida causaram essa enorme confusão nesta minha cabeça, tão saudosa de cabelos, de poesia, de certezas.

6.21.2009

LEIS

Há as fáceis e as difíceis
De entender e de cumprir
Aquelas que o Poder ignora
Se esquece
Apenas impõe
Aos de fora da sua esfera.

Leis do trânsito
As do tráfego

As leis do tráfico

E as da razão.

As que não pegam.

Lei a mais difícil
Nos tira objetos das mãos
Nos atira na cabeça no chão
Pedaços de marquise
Pesados frascos
De esmalte de espuma de xampu.

Lei da gravidade
Que tu nada mais severo
Nada mais grave

A nos manter presos
À prisioneira do sol
À nossa nave esfera.

Pior que os canalhas
Mesmo que a permanente ameaça da substituição destes
Por outros constitucionalmente armados

Só mesmo tu
Amada poderosa invencível gravidade
A nos derrubar na calçada
Embrulhos sacos de compras nas mãos
Agendas impossíveis na cabeça
A bunda
Humilhada
No chão.

6.12.2009

JABS À PARTE

O poeta Aldo Votto lê meus textos sobre políticos, às vezes concorda, outras, discorda, e termina dizendo:

- Jab neles.

O jab geralmente é o preparo para um direto, desse de fazer cair o queixo do adversário. Peço desculpas ao poeta, porque, hoje, não quero deixar ninguém de queixo caído.

(Poderia continuar falando de boxe, que, durante um ano e meio, treinei – meu adversário, literalmente, era um saco -, mas só poderia falar de um e somente um boxeador: Cassius Muhammad Ali Clay, que, na célebre luta contra George Foreman na África, como armas usou jabs, esquivas e o próprio rosto, até levar o Foreman à exaustão física, mental e principalmente de nervos; e, aí, jab seguido de direto na velocidade da luz, fim da luta, Muhammad Ali campeão do mundo. Mas, hoje, falemos de outro assunto, em moderadas e comportadas doses.)

Não beba vinho como se fosse cerveja nem cerveja como se fosse água.

Uísque, só se um dos três estiver de smoking: você, o garçom ou o uísque – afinal, se o melhor amigo do homem é o uísque, teu nome é Vinicius de Moraes, primeiro e único.

A reta é o menor caminho entre dois pontos. Explique isso a um bêbado.

A vodka é a bebida invisível. Explique isso à sua mulher.

O melhor amigo do homem é a mulher: o olfato feminino supera o do cão.

Se você chegar em casa cedo (de manhã) e sua empregada chegar à sua casa tarde (de manhã), um é a consciência do outro.

Melhor que Ivete Sangalo, Ronaldo e Cafu fazendo anúncio de cerveja, só o Zeca Pagodinho dançando Axé de chuteiras.

Se for se embriagar, não saia: saia justa, com Mônica Waldvogel, ou sem saia, com Luciana Gimenez.

Escrever é trabalho – para o escritor e, a depender deste, para o leitor. Seja escrevendo ou não, se for beber, não trabalhe. Se for trabalhar, não beba. Ou, pelo menos, faça uma revisão quando estiver a seco, sem ressaca e sóbrio, capaz de um belo pedido de desculpas sem usar uma só palavra. A não ser por escrito.

Encerrando este sóbrio e comportado decálogo, lembre-se: o único caipira que se deu bem de verdade é do sexo feminino - a caipirinha. Assim sendo, Garçom! Uma cerveja, por favor. E não nos deixe aqui de mãos levantadas, imitando a estátua da liberdade.

5.30.2009

AS RESPOSTAS E SEUS SILÊNCIOS

Escreva cartas
Mande e-mails
Torpedos.

Exprima-se
Expresse-se
Manifeste-se.

Quando a favor
Repercutirão.
Quando contra

À voz corrente
À linha traçada
Definida

Sempre nítida
Óbvia
Dominante

O silêncio se fará presente
Conquistado
Não portanto se frustre.

Senão a vida
Senão a morte
A arte

Muito de silêncio tem.
Mande e-mails
Torpedos

Cartas
Repostas
Perceba

Algumas
Se respondem
Silenciosamente.

5.19.2009

3 PENSADAS MAIS QUE SÚBITAS REAÇÕES

(1) À VEJA, SOBRE A ENTREVISTA DO PREFEITO DO RIO DE JANEIRO

O JEITO CARIOCA

VEJA, no último domingo, perguntou ao prefeito do Rio de Janeiro: “Esse ‘tudo pode’ é determinado também pelo jeito de ser do carioca?” Eduardo Paes respondeu: “Sem dúvida. Essa coisa do carioca, do seu jeito de ser, da malandragem cantada em prosa e verso, também acaba servindo ao ‘tudo pode’. Em nome de um certo carioquismo, cometeram-se equívocos e abusos. A cidade está maltratada tanto pelo romantismo social das autoridades como pelo que se convencionou chamar de ‘jeitão do carioca’.” [...] “Adoro samba, toco na bateria da Portela, gosto de chope, de boteco, de praia. Mas dá para a gente ter preocupação social e ser carioca sem mergulhar na desordem e sem perder a alegria típica da nossa cidade”. Ora. Esse tipo de consideração é o que transforma qualidade em defeito. O característico bom humor carioca – por extensão, brasileiro – não traz em si o gosto pela demagogia nem pelo que o prefeito chamou de “romantismo social”. Aliás, que romantismo é este - o da exclusão, do medo e das balas de fuzil? Curiosamente, o prefeito dá a entender que é dotado do mesmo “jeitão carioca”, pois afirma gostar de chope, de praia e batucada, mas se considera superior ao resto da população, quando faz a ressalva: “Mas dá para a gente ter preocupação social e ser carioca sem mergulhar na desordem...”. Caro prefeito: com ou sem jeitão carioca, a população do Rio já enfrentou de tudo e poderia parecer ufanismo tolo citar alguns nomes e feitos da sua história. Fato é que, sim, a demagogia de vários da classe que o senhor representa tem causado danos a esta cidade e ao país como um todo de difícil reversão. Entretanto, o senhor não é pago para cunhar jargões como o tal “jeitão”, perigosos a ponto de se ter até hoje o nome de um jogador de futebol para sempre associado a atitudes incorretas, por ele ter gravado há muitos anos um anúncio com um texto medíocre – o qual, evidentemente, não foi escrito por ele. Transformar bom humor em defeito é o mesmo que assistir aos filmes com Al Pacino e comentar: “Mas ele tem tanto talento para gangster, porque resolveu ser ator?”. E para que o senhor não pense ser o único capaz de ter alegria e preocupação social, sem mergulhar na desordem; se o senhor afirma que nasceu em uma cidade que não já era mais maravilhosa, ao invés de se achar melhor que o resto da população, faça parte dela, faça jus a ela e à cidade maravilhosa. É para isso que o senhor foi eleito; e é para isso que o senhor é pago.

(2) À FOLHA DE SÃO PAULO, SOBRE, ACIMA DE TUDO, PORTAS

QUANDO VAGABUNDAGEM SE TORNOU PROFISSÃO


É com estarrecimento que se lê, na FOLHA DE SÃO PAULO de domingo, 17/05/2009, que o governo federal vai passar a distribuir cestas básicas para acampados do MST. Aliás, como um representante do governo explica, ao invés das cestas básicas, existirá um cartão de compras, de modo que a economia local, isto é, próxima aos inscritos no “Bolsa Família”, deste também se beneficie. Explica a reportagem que o mesmo governo fará um mapeamento desses acampados, de modo a incluí-los dentre os que já recebiam as cestas e passarão também a receber os cartões de compra.

Quem reagiu antes de qualquer outro foi um coordenador do MST, que avistou o óbvio: esta medida não vai resolver o problema dos sem-terra.

É de se lembrar também que, no momento em que sua reeleição estava garantida, Lula, entrevistado pelo Fantástico, a respeito do “Bolsa Família”, disse que era preciso achar a porta de saída para o assistencialismo.

Ora. Se ao invés de fazer a mais que atrasada reforma agrária de maneira clara, competente e justa, o governo Lula vai ampliar o assistencialismo a acampados – os quais o que pretendem, ou deveriam pretender, é terra – e é de também se supor e desejar que seu real intento seja terra para trabalhar e, desse trabalho, sobreviver e, porque não, progredir -, esse mesmo governo não está achando, nem querendo achar, nenhuma porta de saída. Mas de entrada.

A agir dessa maneira, ainda que sofisticando a forma, o governo Lula estará criando uma nova e confortável carreira: a de vagabundagem, mantida pela parcela da população que paga impostos. Isso mesmo: uma parcela dos impostos que pagamos serve para viciar cidadãos a buscar a maneira mais fácil de ganhar o necessário e suficiente para um vida medíocre. Basta ter filhos na escola ou demonstrar que eles a freqüentam e pronto: ganha-se um cartão de crédito, que permite morar em um acampamento ou barraco ou de favor na casa de alguém e (sub-) viver sem trabalhar.

Que nenhum demagogo de plantão venha a nos lembrar que poder pagar impostos no Brasil é um privilégio. Claro que é. Em um país em que o desrespeito, a demagogia e a burrice conseguem superar históricas injustiças, nada mais conforme que aqueles que conseguiram emergir desse pântano – a maioria deles, trabalhando, e muito - sustentem vagabundos, além de alguns políticos, principalmente os que não estão nem aí para nossa opinião.

Aliás e para encerrar, sabe porque eles não estão nem aí?

Porque a maioria de nós, que paga impostos, parece demonstrar que também não está.

Mas isso é outra cesta básica.

(3) A QUEM NÃO ESTÁ NEM AÍ PARA A OPINIÃO PÚBLICA

A NOSSA E O DELES

Ser ou não ser ou estar ou não estar, na língua do Sheakspeare, são ditos (e escritos) do mesmo jeito. Na língua falada no Brasil, ainda que agora mais próxima da que se fala em Portugal e suas outras ex-colônias, os sentidos são cada vez mais distintos.

Já houve um ministro que dizia estar – e não ser – ministro. Para dizer isso em Inglês, não seria tão simples assim. Anos depois, um presidente da nossa república (nossa?) viria a dizer mais ou menos a mesma coisa, um tanto blasé, às margens do rio Sena.

Mais recentemente, certo congressista disse que não está nem aí para a opinião pública.

O que me ocorreu foi o seguinte. Quando eu encontrar com gente como ele, que não está nem aí para quem votou neles e paga os salários deles; que descaradamente se apodera do que não lhe pertence; que se aproveita da carência quase que absoluta da maioria, o que resulta em despreparo, tornando-a presa fácil desses asquerosos, já sei o que vou fazer. Vou tacar-lhe nas fuças um livro bem pesado, que não será do Sheakspeare, não: será do (deles) acadêmico José Sarney.

Quero ver se ele vai ter a coragem de revidar.

E ler.

4.29.2009

AGORA, FALANDO SÉRIO

Bandalheiras à parte - sem perdoá-las ou esquecê-las jamais -, alguns momentos da História recente não são de se jogar fora. O primeiro deles foi ter à frente da Economia um político: FHC. Depois, à frente do Banco Central, um e depois outro banqueiro. A falsa impressão de que o brasileiro não tem memória, que pode ter sido reforçada pela reaparição de indigestas figuras cheias de poder novamente, claro que acontece pela manipulação covarde da turma da bandalha, que dela se beneficia e se locupleta e se vomita. Um faminto de tudo - da comida à instrução, à mais rudimentar capacidade de discernir - acreditará em qualquer hipócrita que se apresente oferecendo migalhas, trazendo consigo santinhos com o retrato de si próprio, de seus padrinhos - as referidas indigestas figuras - e, destas, seus mais recentes pares, a permanentemente renovar o que há de pútrido na pátria amada. No meio disso tudo, dois políticos que sabem disso tudo e - impossível não reconhecer - se saem muito bem disso - e nisso - tudo: o já citado FHC e, evidentemente, Lula. Pouco provável que o próximo seja alguém capaz de destruir o que foi conseguido a duras penas pela brava gente. De resto, é fortalecer o faminto de saber e comida, para que ele saiba distinguir retrato de canalha de rosto de gente de alma grande, gente que lava o rosto na pia e faz cocô na privada. E não o contrário.

4.28.2009

LUNETAS POUCO PRECISAS PORQUE ANTIGAS

As DIRETAS JÁ ficaram nos comícios, o Tancredo, no hospital, o Collor, no impeachment, a inflação, muito acima da capacidade do estádio. Por isso é que foi substituída por juros muito acima da capacidade do estádio. Depois que fomos a pique, descobriram a pólvora e puseram um banqueiro à frente do Banco - o Central - que, depois, foi substituído por outro banqueiro. Privatizaram, não privatizaram, privatizaram de novo e estamos aí. Aqui. Firmes. Nós e o cara. A cara. E os outros. A abundância, a falta, o pingo, a torneira, a lata. Assim funcionamos: quando abundantes queremos abundar mais, quando temos falta nos viramos para matar a sede, transbordamos de vez em quando, nos vendemos por um pingo, na cabeça, a cabaça. Não foi terra o que avistaste, Cabral. Foi água.

4.19.2009

MUROS

Segundo o livro CIDADE PARTIDA, de Zuenir Ventura, do início do século XX até o seu final, a quantidade de favelas no Rio passou de uma para 500. Há que diga que, hoje, são 700 ou quase 1.000 - e que, por exemplo, em Florianópolis, com seus cerca de 400 mil habitantes, já são dezenas.

O governo do estado do Rio de Janeiro começou a construir muros nas favelas cariocas - em 13 delas -, totalizando 14,6 km lineares e o custo de 40 milhões de reais.

Há algumas questões que se levantam por si:

1. Se o número é de 500, 700 ou 1.000 favelas, enquanto construírem muros em 13 restarão 487, 687 ou 987 sem muros;
2. Mesmo quem defende a construção – por exemplo, a revista VEJA – afirma que os muros por si, sem fiscalização, serão incapazes de impedir a expansão das favelas;
3. Morros sempre são acessíveis por mais de um caminho - e o projeto não prevê, como chegaram a pensar – e temer - alguns daqui e de fora, muros poligonais coibindo ou dificultando todo e qualquer acesso às favelas;
4. A um custo unitário que, segundo especialistas, seria viável, de 20 mil reais, a quantia que dizem que custarão os 14,6 km de muros em 13 das 500, 700 ou 1.000 favelas cariocas seria a mesma para construir 2.000 (duas mil) casas populares.

Portanto, antes de qualquer juízo ético, é fácil de ser percebido que a construção desses muros é injustificável por qualquer rudimentar e simplista raciocínio prático, econômico, ou mera, pobre, tosca, minimamente lógico.

Saindo do terreno pragmático e adentrando em outro cuja subjetividade é quase nula, a dedicação brasileira à persistência e à manutenção de construções feitas pelo poder público é igualmente quase nula; é de se apostar que esses muros, se sua construção chegar ou não ao final, muito em breve serão ruínas.

Agora vamos deixar de vez a obviedade e pular o muro brasileiro da hipocrisia.

Em um país cuja sociedade achou prático e natural que em um século fossem construídas 500 ou mais favelas na cidade que, durante cerca de 60 anos do mesmo século, foi sua capital; que considerou igualmente prático e natural que em outras cidades de perfil montanhoso fossem construídos barracos e mais barracos em seus morros e, nas planas, que parte da população se espremesse em caixotes de madeira ou papelão montados à beira de estradas; que se comporta como o paciente de psicanálise que inicia seu tratamento falando da mãe e acaba por tratar da, às vezes, já falecida mãe e não de si, como aqui se faz, culpando eternamente os portugueses e suas capitanias hereditárias; que em grande parte acha bonito e natural entupir as narinas de pó e empinar as mesmas narinas a exigir segurança e direitos; que sabe que os políticos são de baixo nível porque a população em sua maior parte é facilmente manipulável, porque desesperada, encantada pelo primeiro santinho acompanhado de cesta básica, vale-combustível, torneira, escada ou proximidade à corja pútrida, - em um país assim, com uma sociedade assim, nada mais natural que se prefira construir muros à volta de pobres ao invés de pensar em alternativa que, mesmo e ainda que minimamente, se baseasse em orientação, educação, diálogo, leis, inclusão. À brasileira, é melhor construir, justificar, pichar e deixar ruir um muro.

Principalmente, ficar em cima dele. E – prático e natural - atrás da moita.

4.12.2009

CARTA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Caro Senhor Presidente da República:

Talvez o Sr. não se lembre. Raymundo Faoro foi contrário ao projeto da reeleição assim que iniciada sua defesa, quando o reeleito viria a ser o seu antecessor, Sr. Fernando Henrique Cardoso. Como em tantas outras vezes, o saudoso jurista e historiador estava com a razão.

Sem recorrer aos argumentos dele, é de impressionar o quanto o Poder é mesmo capaz de transformar indivíduos e quanto maior é a transformação à medida em que o tempo passa. Difícil imaginar o corajoso líder sindical de outrora, que conduziu uma greve em plena ditadura militar, comparando obras da envergadura das do "PAC" com o corte das suas unhas ou o batom da sua candidata e ministra.

Quanto a ser ou não chique emprestar dinheiro ao FMI, duas afirmações podem ser feitas, Sr. Presidente: (1) o dinheiro não lhe pertence; e (2) não há nada que seja ou possa vir a ser chique nesta crise. Quanto a esta ser espécie de marolinha, pergunte a alguém que esteja desempregado se pensa assim - é o que se lhe pode sugerir, Sr. Presidente.

Ainda sobre o empréstimo ao FMI, adicionalmente, é de se arriscar duas suposições. A primeira: como o Brasil é membro do Fundo e, este, um órgão destinado a emprestar a países-membros em risco de insolvência, deve, sim, ter havido uma proposição de que fosse feito o empréstimo, e não, deste, uma oferta expontânea por parte dos nossos representantes. A segunda: por várias razões que poderiam ser supostas em extensão, é bem pouco provável que a proposição pudesse ser recusada pelos mesmos mencionados nossos representantes.

Voltando agora um pouco no tempo - porque é do tempo, no Poder, que se tem aqui como tema -, quando os aeroportos e vôos comerciais se tornaram um caos, é de se esclarecer, Sr. Presidente, que se a classe média nunca tomou banho frio, tampouco quente era a ela possível tomar - posto que não há chuveiros nos aeroportos, nem mesmo naquele em que o personagem do Tom Hanks fica detido. A classe que viajava, média ou não, incluía empresários, trabalhadores da iniciativa privada e estatais, religiosos, artistas, políticos, ministros...

Sr. Presidente, quando o Sr. fala da Petrobrás ou do Banco do Brasil, essas empresas têm como acionistas (a) investidores em ações da Bolsa de Valores e (b) esse conjunto difuso, pouco visível de longe, o povo.

Suas palavras são sempre poderosas, dado ao cargo que o Sr. ocupa, Sr. Presidente da República.

Sr. Presidente, o que também é certo é que o Sr. sabe disso tudo; apenas e lamentavelmente, o tempo no Poder tornou distante a imagem de bravura e coragem do líder sindical, trocada, como se fosse figurinha de álbum de criança,
pela de alguém que já não sabe mais distinguir que papel de fato desempenha, onde e quando. Principalmente quando. Raymundo Faoro estava com a razão.

4.02.2009

ORIGEM - E EVOLUÇÃO

Do mar à praia
Até as estepes

Pela relva
Até a montanha

A casa.

Depois
O cerco.

3.29.2009

DO FUTEBOL E OUTRAS AMEAÇAS

Para Lygia e José Estácio Corrêa de Sá e Benevides (ambos flamenguistas).

O sujeito assiste a um jogo ruim, é interrompido para sair para jantar com a família. Quando volta, seu time está vencendo por 1 a 0, o outro vira o placar e o jogo termina: Fluminense 2, Botafogo 1. “A culpa foi minha?”. Mesmo sabendo que isso é uma impossibilidade, ele, que não é nenhum garoto, se lembra de vários outros jogos a que assistiu e que seu time ganhou, convencendo-se do contrário. “Por que, o dia inteiro, eu sabia que o Botafogo perderia?”.

Houve um campeonato em que o Fluminense ganhou o primeiro turno, garantindo a vaga para a disputa da final, perdeu quase todas as partidas do segundo, foi à final e foi campeão. Aquilo pareceu uma estratégia, do mesmo clube que, numa outra vez, assim que acabou de ganhar o campeonato, demitiu o técnico – Paulo Amaral, que viveu grande parte da sua diversificada e vitoriosa carreira no Botafogo. Pois este acabou de ganhar a Taça Guanabara, se classificou para a final do campeonato e desandou a sofrer derrotas e empatar jogos “ganhos” - de passagem, do Vasco, ora na segunda divisão do campeonato brasileiro, tomou de 4 a 1. Nada disso é estratégia - nem síndrome de “sofredor”.

Exemplos de fracassos de Botafogo e Fluminense e desastres que a eles se sucederam são recentes. Botafogo e Juventude no Maracanã teve um resultado que deu o título ao time gaúcho - e tome anos de sofrimento, até que o clube do Rio voltasse a conquistar um título. O técnico do Botafogo não se preocupou por não terem saído gols nos treinos; ao Juventude, bastava um empate para sair com o título; e o técnico do Botafogo assistiu ao 0 x 0 até o fim, apenas sem torcer como torceram os 100 mil botafoguenses que lá estavam. Ano passado, o Fluminense perdeu a final da Libertadores da América, no mesmo mais que carioca Maracanã; e tome trauma, até que os nervos e a moral do clube, de técnico novo, o Parreira, da sofrida Copa de 94 e da nem é bom lembrar de 2006 – e isso é outra história –, vão-se recuperando. (Tá bom, flamenguistas, ontem vocês se vingaram do Resende.)

O que acontece com o Botafogo neste momento é algo muito mais que botafoguense ou restrito ao futebol. É sabido: poucos sabem lidar não só com o fracasso - mas com o sucesso. Não por outra razão algumas estrelas, do futebol como das artes, de repente se esborracham; se acabam; ou desaparecem. “Ganhamos a Taça Guanabara. Ganhamos a Taça Guanabara! Ganhamos, a Taça Guanabara?”.

Não no futebol, mas na vida, perder, para a maioria dos brasileiros, infelizmente e por várias razões, ainda é corriqueiro. Nos Estados Unidos, ser chamado de “loser” é pior do que, para nós, ter a mãe xingada ou ser derrotado em um jogo de futebol. Pelo que isto representa para eles e pelo que a História conta, é muito pouco provável que eles saiam dessa como “losers”. Se será bom ou não para nós, isso é outra história.

Hoje tem Brasil e Equador, lá em Quito, com Robinho e seu dedo na boca. Mas só se sair gol, não é, Dunga? E, antes que me culpem ou somente perguntem, não, nenhuma premonição; não, eu não vou assistir ao jogo.

3.27.2009

MANCHETES

Medicina & Estética: o aparar das unhas e o batom serão poupados por causa das obras de infra-estrutura.

Infra-estrutura: as obras de infra-estrutura serão poupadas por causa das unhas e do batom.

Futebol: os brancos de olhos azuis são os culpados pelo mau desempenho da seleção da Escócia.

Tênis: mil rifles na fronteira da Venezuela com a Rocinha.

Fórmula um: fórmula dois.

Cinema: de Zapata a Zapatero, de Bolívar a Hugo Chaves, de Evo a Morales, por favor, não perca.

Ciência: Malba Tahan se revolta, porque senador que calculava afirma que 138 = 31.

Arquitetura: casas populares tomam lugar de castelo.

Política: a situação se torna cada vez mais ucraniana.

Previsão do tempo: trevas, com brumas ao fim do período.

Obama: yes, não temos banana.

Da redação,

Excalibur.

3.08.2009

BLOGUE VELHO, MUNDO BURRO

Como vai, blogue amigo velho?
Faz tempo não nos falamos.
Aqui do lado de fora é domingo,
Está chovendo, está ventando.
Na caixa da televisão
Tem um programa em nona edição
Que aqui ignoramos
Sem qualquer solenidade.
Ainda dentro da caixa da tv
Agora temos um arcebispo
Que excomongou os médicos
E perdoou o estuprador
De uma menina de 9 anos
De uma menina de 9 anos
De uma menina de 9 anos.

O Vaticano apoiou.

Blogue velho,
O mundo é mais velho que nós
E não aprende nunca.

Ê blogue velho,
Ê mundo burro.

2.09.2009

PRAIA E ARREDORES

Para Isabel, Flávio, Isabela.
Vera.
Minha filha, minha mulher.
Meu irmão.
E outros bons amigos de uma praia inteira.


Muito se diz que a praia é democrática, tanto quanto que nela se formam guetos, turmas, tribos. Se as duas situações são simultâneas e verdadeiras, a explicação é muito simples: a praia é anárquica. Não é democrática. Nem altruísta nem ditadora. Ninguém vota e ninguém manda. Não há poder nem golpe de tomada de. Quando ocorre o arrastão, seja dos pescadores ou dos favelados, o golpe não é dado na praia nem no mar: vem de antes; dos arredores. Vem da miséria que, a essa altura, ao nível do mar, neste século vinte e um - mais tantos outros antes do início da sua contagem cristã -, que ninguém duvide, não vem da anarquia nem da democracia. Vem do desgoverno. E de toda sua conveniência a quem ele convém.

Sacos cheios fora, se há vida depois da morte, reencarnação, vida em outro planeta ou sistema ou universo paralelo ou transversal, que a minha, se me é ou for dado o direito de escolha, que seja numa praia. Que eu mergulhe vivo depois da morte e de óculos; e que eles me permitam ver o fundo do mar, sua água, sua areia, com ou sem peixes, algas, tubarões, águas-vivas ou serpentes. Conchas. Baleias. Dêem-me o mar e a areia e viverei, morto e feliz.

Solidão, desta, não faço a menor questão. Uns pescadores, umas belas, eternas e verdadeiras amizades, um grande e um pequeno amor. Um bar. Um livro. Não, não: mais de um. Uma pedra, um morrote de pedra que, se eu tiver coragem, vou escalar ou contornar, pelo mar ou pela terra em volta, para ver se há outra praia depois dele.

De resto, vamos à praia, mesmo ou principalmente se estiver chovendo, mesmo e ainda que de noite, só não vale debaixo de raio - porque, debaixo de governo, seja ele qual for, temos que conviver com ele, viver com ele, apesar ou, lamentavelmente, quem poderá dizer se verdade ou mentira, por causa dele.

Mas não na praia. Na praia, ninguém manda. Na praia, mando eu.

Em ninguém.

1.01.2009

2009

Quem foi na frente, de tão querida, nos guardará um bom lugar.

Estamos no Rio. Meu irmão, que nos hospeda, se mudou para um apartamento em frente à Praça Eugênio Jardim, onde começa e termina o Corte de Cantagalo. À frente, a Lagoa; atrás, o mar de Copacabana; à esquerda, onde Ipanema começa a se desenhar.

Todas as manhãs, temos caminhado: ida e volta ao Leme; Posto Seis, Ipanema, Lagoa, Corte de Cantagalo; ou Corte, Lagoa, Ipanema, Copacabana. Fomos a uma festa em uma cobertura, na Avenida Atlântica, convidados de um primo e convidado, Mario Oswaldo, feita a devida consulta prévia aos anfitriões - que nos receberam muito bem, obrigado.

Nunca tinha assistido ao espetáculo de fogos ao vivo. Navios atrás das balsas de onde eles partiam me olhavam de longe. Um conjunto, uma gravação de Tom Jobim, depois, do Tim Maia. A contagem regressiva, uma valsa, um samba, uma guitarra, uma cantora. Os fogos se aproximavam e se afastavam. Depois, fumaça. Lá embaixo, a multidão. Comentei que, se estivéssemos lá embaixo também, igualmente nos encantaríamos – e antes e depois, nos juntamos e nos encantamos outra vez, não podia ser diferente.

Na vinda, a pé, somente um momento de tensão, totalmente ilusória. Passado o descabido susto, tive que perguntar onde ficava uma rua, onde teríamos nosso primeiro encontro, para depois irmos à festa: Domingos Ferreira – eu, que já soube dessas ruas de Copacabana todas, de cor, mapeadas na memória; acontece que oito anos são tempo suficiente para embaçar meus mapas mentais.

Nenhum outro susto, nem na ida nem na volta, a pé, junto à multidão que voltava para casa, o metrô, ou simplesmente zanzava. Às vezes, tonto, às vezes, tonta. Já fui um deles, sei como é. E acordamos e andamos outra vez, Posto Seis, Ipanema...

Quem inventou o automóvel era ruim da cabeça ou doente do pé. Não digo o mesmo do taxi, do metrô, do trem, nem do ônibus – mas todos perdem para o melhor meio de transporte, que já nasce com a gente, que a gente calça quando quer, que a gente descalça na areia e molha no mar.

Já quem faz a guerra é de uma arrogância que parece grande – entretanto, é tão somente menor que a menor das sensibilidades.

Feliz Ano Novo.