9.21.2011

SUA SOMBRA

Se você mora em uma casa com quintal, pode ter um ou mais cães de guarda, com a certeza de que todos protegerão você, sua família e seu patrimônio contra esses terríveis potenciais agressores: as plantas. Depois de muito adestramento, que incluirá um investimento em cercas, as plantas não mais serão protegidas – isto é, agredidas - pelos seus cães adestrados, os quais, por terem sido tornados destros, forçados, portanto, a deixar seus hábitos de animais canhotos, desenvolverão tiques e passarão por isso a enfeitar seu quintal com belas esculturas – ou, a depender do estilo, instalações. (Lembre-se: o contrário de destro, o vulgar canhoto, é sinistro.) Como já dizia Oscar Wilde, toda arte é inútil: suas novas obras de arte não servirão como adubo, somente como campo minado exclusivo para você, especialmente quando chegar apertado para ir ao banheiro.

Mudando-se para um apartamento, sofrendo de remorsos, você já terá doado seus pastores alemães-belgas-rottweilers e terá adquirido um poodle. Quando você chegar esbaforido, ele reagirá em seu favor, latindo esbaforido; se deprimido for o seu estado, ele murmurará Freud; se alegre se encontrar sua alma, pedindo por uma cerveja gelada, o xixi já estará à sua espera no sofá. Cães se cumprimentam pelos fundos e é com eles que deixam suas marcas; portanto, entre sempre pelos fundos do apartamento, sabendo que instalações estarão esculpidas à espera do seu caminho até a área de serviço, local onde deixar seu guarda-chuva, que pretensamente nos protege daquilo que não nos ataca, somente nos molha: a chuva, que, mesmo ácida, é melhor que o guarda-chuva, principalmente se você tiver um poodle em seu apartamento.

Você pode optar por gatos, mas sempre no plural, porque gatos de pardos não têm nada, são tigrados, brancos, pretos e marrons, e muito dóceis, desde que você goste de colecionar testículos felinos. Prefira os incertos, os fugidios, os rebeldes, que saem de noite para brigar com cães. Pode ser que assim o vitorioso seja você.

Em qualquer situação, cuide bem da sua sombra: é ela que estará pairando no piso do quintal e da área de serviço, no assento do sofá, no choramingar e no latido do cão, no ronronar e no miar do gato, no silêncio da madrugada interrompido pelo triturador do caminhão de lixo, pela campainha do despertador, ou por um interminável e invisível chiclete mascado pelo poodle - que, agora, você leva para o seu quarto, para que ele pare de latir para a sombra alheia. Admita: a sua é uma sombra egoísta.

Palavra de canhoto.

9.12.2011

VARANDAS

Eu preciso roubar alguma coisa de você, não porque não goste de você, pelo contrário, por gostar demais. Com seu consentimento, já invadi seu corpo e sua vida, e será consentido que vou roubar seu relógio e só usá-lo quando estivermos juntos. Na cozinha, percebi que sou capaz de enxergar com seus óculos. Não me caem bem, não me ficam bem, mas me cabem no bolso. Mesmo assim, melhor que eu continue usando os que são meus e carregue comigo seu olhar, seu modo de ver o mundo, as pessoas, de perceber a si. Levo seu olhar emprestado por saber que ele continuará em seus olhos. Com o relógio que roubei de você no pulso, eu só vou se você me levar pela mão.

A bailarina agora tem namorado, desejo, continua dançando quando pode e estudando muito. Pensou em mudar de rumo, engenharia química, não mais medicina. O que ela mais quer para o futuro dela, que dela é próprio, é pesquisa. Pensou, repensou, tornou a querer medicina. Dezessete anos e já é necessário tomar uma decisão do tamanho da sobrevivência e do sonho. Foi fotografada por você em um momento de dançarina, esguia, atenta, questionadora, tudo ao mesmo tempo e do tamanho do sonho, esperando por uma nova instrução da coreógrafa, com a meia rasgada na altura da coxa. A foto em preto e branco mostra o que sabemos dela, que continua cristalina, verdadeira, olhos nos olhos, com a vontade que dela é própria, com a leveza que só as bailarinas têm.

Vamos lá fora, onde bate o sol em varandas que veremos da calçada e que estarão vazias, porque frequentadas por quem estará por perto, enquanto eu falarei de outras, outras varandas.

Uma já faz um tempão que estive lá. Três semanas. Bar Urca, no Rio. Em cima, um restaurante, embaixo, um botequim, em frente, a baía de Guanabara. É preciso começar por baixo, onde o mundo é caótico, todos pedem cerveja, empadas e pastéis gritando junto o próprio nome ou o de alguém que tenha autorizado outros a fazê-lo. Meus outros são amigos de muito tempo, André e Gyzelle, Rubens e Henriette, Ramon e nosso Botafogo, Sandra e Murilo Haydt. Como o Botafogo não nos passou procuração para pedir cervejas em seu glorioso nome e sempre imprevisível campanha, que ganharia mais tarde do Atlético Mineiro e que ontem (hoje já é segunda-feira) perdeu de goleada, em terras cariocas, entre Haydts, Henriettes e Gyzelles com sobrenome húngaro, melhor que o meu fosse o nome a ser gritado, em total confiança aos muitos desconhecidos presentes. A mesa é a mureta que nos separa do mar, onde os barcos são generosos conosco: mesmo ancorados, balançam por nós, que bebemos de pé, continentes e emocionados. Fechamos sem questionamentos a primeira conta da tarde no bar e subimos. Quando subimos, sentados, comemos pescados. A imensa baía, com seus morros felinos, femininos, de lá de fora da janela, nos espiando, cuidando de nós. Quando veio a segunda conta e o Ramon estranhou a quantidade de cervejas, o garçom nos disse, Vocês beberam bem. Nada como um elogio para terminar uma tarde em uma varanda assim.

Outra parece que foi ontem. Ficava entre Araruama e Cabo Frio, onde aportamos, eu e o mesmo Rubens que estava comigo no Bar Urca há três semanas, primeiro na calçada, onde eu dormi com a cabeça sobre minha sacola de viagem e o Rubens passou a noite em claro, esperando que nossos amigos, que não sabiam que viríamos, voltassem para a casa em que estavam hospedados. Outro Murilo e que conheço há mais tempo ainda, o Drummond, e o Venâncio, que hoje mora em São Luís do Maranhão, já tinham feito dezoito anos, ao contrário de mim e do mesmo André, que estávamos com dezessete, ao contrário do Rubens, que já tinha chegado na frente de todo mundo aos dezoito e nunca quis saber de carro (aliás, nem de bicicleta). Pois o André recentemente achou uma foto dessa varanda, onde eu e Murilo estamos sentados em um barco de pescadores na areia da praia. Porque era um dia de tempo instável, ora chovia, ora era friozinho, eu e Murilo estávamos de camisas, sapatos e calças compridas, em plena praia. Por que minha filha, quando viu a foto, disse, Que horror, papai, só porque as calças eram de boca de sino, é um mistério insolúvel, que apenas se repete a cada geração, como as calças com bocas de sino se repetem a cada duas.

Outra faz um mês que visitamos. Era 13 de agosto. Nesta, você estava comigo. A bailarina e o namorado dela também. Fica numa ilha cercada de Lagoa Rodrigo de Freitas, Copacabana e Ipanema por todos os lados, onde meu irmão fez uma festa que será para sempre inesquecível. O apartamento onde ele mora, com livros e antepassados nos livros e nas fotos por todos os lados, foi tomado de parentes e amigos por todos os lados. Porque fazemos parte deles e porque somos pais da bailarina, dancei com você a noite inteira, com meus sapatos de Fred Astaire que ganhei do meu irmão, quando o aniversário era o dele, o dos cinquenta anos dele.

Outras ficam no verso de uma canção: tios na varanda. Tios do Cosme Velho, de Petrópolis, de Laranjeiras.

E toda essa história de varandas veio por causa de uma que, de tão especial, deixei no ar em um texto de quando a filha do André se casou e o irmão mais velho dele, Antônio Julio, recentemente achou esse texto e me perguntou, Quando é que você vai falar dessa varanda? (E perguntou por escrito.) Pois era uma varanda onde todo fim de Natal uma turma de loucos se reunia e cantava e conversava, enquanto Dr. André e Dona Mariana, os donos daquela varanda, nos olhavam, ora de perto, ora de longe. Os dois sabiam da nossa loucura; e gostavam dela. Gostavam tanto, tanto da nossa loucura, que fizemos como fazemos questão de continuar assim, loucos, flanando de varanda em varanda. Por isso é que assim prossigo, uma ilha cercada de livros a me proteger de mim, nossos amigos a me proteger de mim, enquanto a bailarina estuda e fala com o namorado, o Antônio Julio brinca com a neta, o André espera que a dele nasça da filha Luciana, o Murilo Drummond veio nos visitar com suas bailarinas Eliana e a filha deles Alessandra, Julio, André e Venâncio permanecem tricolores, o Rubens e o Murilo Drummond flamenguistas, o Haydt, vascaíno, eu, meu irmão e o Ramon insistentes, você, Sandra, Henriette, Eliana, Gyzelle... nos guiando em segurança.

Por isso eu permaneço com o relógio de pulso que roubei de você, esperando que você me leve pela mão até a próxima varanda.

Desde já, esteja avisada: irei com meus sapatos de Fred Astaire.