1.30.2011

MEU PRIMO CACÁ E O VISCONDE DE SABUGOSA

Florianópolis, 30 de janeiro de 2010.

Meu caro João Marcelo:

Vários passarinhos continuaram se reproduzindo graças a mim e ao seu pai, João Carlos Benevides e Maia, o Cacá. Quando eu e ele éramos garotos, ainda não havia o espírito de preservação de hoje em dia. Todos tínhamos um negócio que, dependendo do lugar, se chamava bodoque, estilingue ou atiradeira. Era uma forquilha, um Y de madeira, com um elástico de borracha, e a meninada punha uma pedra no elástico, puxava e atirava a pedra contra um passarinho. Graças à nossa imbatível falta de mira, eu e seu pai nunca matamos um único passarinho. Eu me lembro de uma vez que subimos o morro atrás da casa onde ele morava com os seus avós e tios, e nem chegamos a perder muito tempo com aquela maravilha da engenharia da caça aos inocentes: fomos convidados a almoçar na casa de um amigo dele, lá no morro, e eu, que era tido como um chato para comer, comi muito bem, obrigado. Tinha um camarada que morava lá que bebia água da chuva depositada em poças. Nós dizíamos a ele: “Rapaz, água parada é suja, faz mal pra saúde!” - e ele respondia, “Que nada, eu estou acostumado.”. Esse garoto jogava futebol tão bem que, adivinha qual era o seu apelido? Pelé, é claro. (Da minha parte, modestamente, sempre fui um perna de pau.)

Outra história era a bola de gude. Como a gente gostava de bola de gude! Eu ganhei uma faz uns dez anos da minha filha e minha mulher já quis me internar em um hospício umas quatro vezes, só porque eu ando com ela na minha pasta (a bola de gude, não a minha mulher). Na época do estilingue, morávamos em Laranjeiras. Eu, na rua Umari; seu pai, na Pereira da Silva, que começa no nível do mar, embora um pouco longe dele, e vai virando uma ladeira que, em algum lugar misterioso, pelo menos para mim, se une ao Parque Guinle. A rua Umari era de paralelepípedo e, mesmo assim, jogávamos bola de gude na rua. O jogo começava com a seguinte pergunta: “Bola ou búlica?”. Como eu nunca soube o que quer dizer “búlica”, sempre escolhi a bola. Uma vez eu dei um teco tão bem dado que quebrei a bola de gude do Cacá. Sabe o que ele fez? Deu uma gargalhada e me declarou campeão. Sinceramente, não me lembro de outro título mais importante que este na minha vida.

Cacá e eu tínhamos uma amigo em comum: o Alberto. Eu e minha família mudamos para o Leme e minha mãe fez uma festa para o meu aniversário de doze anos. O Cacá e o Alberto chegaram lá de terno e gravata! Uma covardia, João Marcelo. Os dois levaram todas. Pensando bem, acho que isso foi um revide à tal bola de gude que eu quebrei.

Outro tempo é o de agora, quando meu irmão faz o almoço de Natal e em todos eles o Cacá me chamava de Mariola. Ele é o único que sempre fez isso, acho que por outorga do Visconde de Sabugosa. Cacá sempre tinha histórias pra contar e perguntava, Cadê o James? O tal do James era o garçom; não importa com que cara o garçom viesse, o seu nome era sempre o mesmo: James. Quem tem outorga dada por um Visconde é assim, possui uma intimidade com súditos da rainha que nós plebeus sequer desconfiamos.

Na festa dos meus doze anos, a mesma em que seu pai e o Alberto vieram de terno, meu irmão estava com seis anos e dançou o tempo todo com uma amiga dele, a Teteca. Teve um dia em que a Teteca atravessou a rua distraída, foi atropelada por um ônibus, levantou-se, foi andando para casa e, à noite, partiu, para onde todos partem um dia, um lugar mais distante que, por exemplo, o Leme de Laranjeiras. Maria Lina, que partiu um pouco antes do seu pai, de vez em quando me escrevia, dizendo que tinha visitado o meu blog. Espero que você também me dê a honra da sua visita e não se surpreenda: esta carta estará no blog, porque quero que quem passe por ele passe também por Florianópolis, Leme, Laranjeiras...

A vida se parece um pouco com esses teatros onde se lê na entrada: “Aqui, o show começa quando você chega e termina quando você vai embora”. Se você aceitar sugestões de quem leva na pasta uma bola de gude, viva seu show retribuindo o amor que você receber e, quando ele estiver escasso, tome a iniciativa, escolha bola em vez de búlica e abra esse seu sorriso largo, que é mais do que suficiente. Se quebrarem sua bola de gude, faça como seu pai: dê uma gargalhada, declare campeão o dono do teco e depois apareça de terno na festa dele. Estude o que você puder estudar, porque estudar abre nossos horizontes, embora alguns mistérios permaneçam para sempre. Por exemplo, não se sabe se foi a Terra que não conseguiu imitar a bola de gude em sua perfeição esférica ou se foi a bola de gude que se tornou imperfeita, perfeitamente redonda, ao tentar imitar a Terra - Terra que um dia levou um teco de um meteoro para que os dinossauros cedessem o lugar para a gente. Já pensou o tamanho da mão que deu esse teco na Terra? É, meu amigo: o dono dela é que é o verdadeiro campeão.

Um grande abraço,
Do seu primo (ou tio, se você preferir),

Mario Benevides (mariobenevides.blogspot.com.)

1.11.2011

DIAGONAIS E PARALELAS

Passamos a primeira parte das férias de verão no Rio e a segunda já vamos ficando por aqui, em Florianópolis. Tem sido assim já há vários anos. A exceção foi ano passado, quando fomos à Europa com meu irmão (nos últimos anos, portanto, as nossas primeiras férias de inverno). E é na casa dele que ficamos no Rio. É sempre bom. Por exemplo, a maior parte do tempo andamos a pé, por Copacabana e Ipanema. Tudo demora demais, menos as férias: agora, o Rio está mais calmo. Nascemos lá, não vivemos diretamente nenhum trauma de violência, o Rio para nós é especialíssimo e assim sempre será. Viemos para Florianópolis por uma questão de carreira profissional minha; Florianópolis veio de brinde. Experimentamos, lá e cá, a mesma língua e o mesmo oceano, com poucas diferenças (como disse Guimarães Rosa, viver é muito perigoso, e, lá como cá, nenhum trauma direto de violência: muita sorte). Por exemplo, no Rio, caímos no mar; aqui, mergulhamos. Lá, o mar vem em ondas diagonais. Em Ipanema, caímos no Arpoador e saímos no Jardim de Alá. Entramos no mar por debaixo de cada uma das ondas e vamos entrando e entrando debaixo das ondas e acompanhando a correnteza, até sair onde der, onde for possível, felizes e saudáveis, mergulhadores, nadadores e vencedores. Se alguém é hóspede do Fasano, que fica no Arpoador, vai se apresentar no Ceasar Park, quase no Jardim de Alá, e será muito bem aceito, convidado inclusive a experimentar o teorema de Pitágoras e voltar pelo cateto de areia, que ampara as ondas diagonais da hipotenusa aquática e salgada, até chegar no seu front-desk certeiro, hospedeiro e caro. Aqui, Florianópolis, Jurerê, praticamente não temos ondas: nadamos eternamente e paralelamente à praia, até sairmos onde der, até nos vermos perdidos e disfarçando que não. Como se estivéssemos em Ipanema. Aqui como lá, sairemos andando pela areia fingindo que sabemos onde estamos ancorados - onde fica, no Rio, nossa barraca; em Florianópolis, nosso guarda-sol. Jamais saberemos, e sempre chegará uma alma salvadora a nos dizer, esqueceu? Estamos em frente ao posto salva-vidas, ora! Qual deles é que ninguém nunca nos informa, ninguém nos pendura uma placa no peito a dizer, eis aqui um ser de férias a se perguntar, Por que as férias são tão curtas e as soluções demoram tanto, tanto que levam anos, que levam tiros, que levam vidas? Uma argentina perguntou faz pouco, La sombrita, quanto custa? Cinco reales, respondeu o barraqueiro, senhor dos guarda-sóis, certeiro, hospedeiro e caro.

Em 2011, para todos nós, muita sorte.