12.27.2011

LUZ DE ELEVADOR

O espelho e a luz do elevador
provam nossa existência depois da morte.
Todos ficamos cadavéricos
debaixo da luz descolorida que sobe ou desce
no reflexo magnético do espelho mórbido.
Vizinhos que se cumprimentam e se olham no espelho sabem:
naquele momento não são, estão de passagem,
espectros de si mesmos.
Comentam seus espectros
que houve um tempo dos pais ou avós em que a luz
era de abajur.
Se um deles aceitar o convite para trocar de luz
de elevador para de abajur, a viagem será no tempo
desde que não se fale da cor – lilás. Neste caso
a viagem será também de bairro.
Chegamos ao térreo,
não houve o convite, somos nós mesmos
vivos
em si mesmos.

12.04.2011

PROGRESSO

Se me querem poeta,
por favor uma rede,
uma mulher,
um mar,
uma vila de pescadores,
peixe, cerveja, cachaça,
lápis, papel, borracha.

Se me precisam engenheiro,
me bastam lápis, papel,
borracha.

11.02.2011

DO EXÍLIO DE QUEM FICOU

Nem Gonçalves Dias nem Lulu Santos
nem a Ipanema de Vinicius.
Preferiram Jack Kerouac, O. Henry,
Paul Auster, Woody Allen,
Carlitos, Tom Jobim.
Partiram para Nova Iorque,
Ela, Michele e Renata.
Foram ver de perto se
é mesmo quando já não se espera
que o trompetista começa
a música que surge do nada.
Foram ser poetas, filósofas, descobridoras,
inventar
a própria
Manhattan.
Entrarão na fila do teatro,
sairão de lá melindrosas e
haverá uma conta de um aluguel que
não será pago e
a dívida
não será delas.
Andarão de charrete no Central Park,
verão Nova Iorque de cabeça pra baixo,
porque assim recomendava o maestro
que lia Drummond.
Verão lojas chiques, lojas baratas, museus,
árvores sentindo frio, cantinas
italianas, bares
plenos de jazz.
No domingo,
um desempregado e seu violão e sua gaita
soarão numa Washington Square no Greenwich
Village. Um violino
Soará no Soho.
Nós, em preto-e-branco, ficamos aqui.
Na tela da TV, O Garoto;
na do computador,
sob sisudas atentas louras sobrancelhas,
os olhos da nossa garota,
que um dia dirá
este, o DNA
de Nova Iorque.
Assim mesmo, ela e quem mais puder,
todos
iremos
a Nova Iorque. Poetas,
veremos o mundo
como o viu o maestro.
De cabeça pra baixo.

VASOS CHINESES

O blog quebra meus versos como quer
como quem quebra vasos chineses
como quem desenhasse um poema
desdenhando de fato
da busca
do poeta
pelo ritmo
que sapateia em sua cabeça enlouquecida
de poeta.
Como o traço
de quem pinta
tentando imitar o traço
pintado na cabeça de um jeito
que só quem o pintou
de fato o percebeu.
Comentários, leio aqui.
Opiniões que eu possa ter,
que possam se parecer com as que sapateiam
em minha cabeça enlouquecida de poesia,
que quem as queira saber,
parafraseando, a um só tempo,
Vinicius e Oscar Wilde -
riscos, melhor corrê-los -,
por favor,
mariocsbenevides@gmail.com,
mariocsbenevides@hotmail.com.

10.30.2011

DE PALAVRAS E NÚMEROS, COM DIREITO A PROUST E BAUDELAIRE

Peço desculpas e ela me diz
Imagina!
Agradeço e ela me responde
Imagina!
Já que é assim, eu imagino
a cena da nossa amiga Isabel em Aracaju.
Isabel chamou o garçom, que prontamente a atendeu:
Pois sim?
Inusitada cena,
pois não?
Pelo telefone,
Peço ao taxista
que me apanhe pontualmente às 8:00;
ele, que me respondeu Não, não,
pontualmente às 8:00 está me esperando.
Digo tchau a ela. Ela,
Tchau, tchau.
Tento dar dois beijos nela;
o segundo fica no ar. Eu,
feito um colibri à la recherche du fleurs du mal perdu.
E me pergunto, afinal: que mal cometi?

10.01.2011

AS CORES DAS LEMBRANÇAS: UM CONTO DE MARIA LUIZA BENEVIDES

É branco, é limpo, é vazio. De hora em hora moças entram, mexem aqui e ali, reconfortam meu pai com as cobertas. Uma ou outra me oferece um copo d’água, nunca aceito. Desdenho o incolor, o inodoro e o insípido; eles já são suficientes ao meu redor. O hospital sem cores, meu pai deitado sobre e sob lençóis alvos, que dão continuidade à sua palidez. Ele está por fora como está por dentro: ausente. Sua doença levou sua memória e trouxe a minha. O descolorido daqui me faz buscar a pigmentação da minha infância.

Saudade tem cor. É uma tinta misturada com o verde fraco do verão e o bege forte das secas do inverno. Torna-se turva quando junto a ela vêm reflexões presentes. O que me é estranho, pois, nessa hora, o branco não traz clareza, mas escurece. É o alvo medo de perder meu pai. O sertanejo que deixou seu coração no campo, fugiu da sede e encontrou a cidade. Dorme agora, sonha talvez, enquanto eu, acordado há dias, me lembro do que passou.

Vem sombra fresca, vem cheiro doce, vem gosto azedo. Pita–pitangueira–eira–beira-beiradinha, me dá uma mordidinha. Eu, menino, cantarolava assim para arrancar-lhe um pequeno vermelho. Papai ria de mim, enrugava a pele maltratada pelo sol do canto de seus olhos e mostrava-me seus dentes amarelos. Envergonhado pela música de rimas bobas, eu mordia logo uma pitanga e respondia sua expressões com caretas azedas. Ríamos juntos. Nossa melhor amiga.

Éramos muito unidos e, para o desespero de minha mãe, travessos. Roubávamos suas bolas de meia para jogar futebol, seus grampos de cabelo para pinçar minhocas no quintal, seus ovos recém-chegados da feira para jogar nas paredes detrás da casa. Ela nos punha de castigo. Sempre embaixo da nossa árvore. Uma delícia. Aprontávamos tudo de novo.

Aos poucos, o sabor azedo da pitanga, o cheiro seco dos dias quentes e a sonoridade da risada do meu pai desintegram-se no ar desinfetado do hospital. É tudo água novamente. Como aprendi na escola, quando viemos para a cidade, incolor, inodoro, insípido. Acorda logo, pai, colore as lembranças comigo.

Maria Luiza Benevides.

9.21.2011

SUA SOMBRA

Se você mora em uma casa com quintal, pode ter um ou mais cães de guarda, com a certeza de que todos protegerão você, sua família e seu patrimônio contra esses terríveis potenciais agressores: as plantas. Depois de muito adestramento, que incluirá um investimento em cercas, as plantas não mais serão protegidas – isto é, agredidas - pelos seus cães adestrados, os quais, por terem sido tornados destros, forçados, portanto, a deixar seus hábitos de animais canhotos, desenvolverão tiques e passarão por isso a enfeitar seu quintal com belas esculturas – ou, a depender do estilo, instalações. (Lembre-se: o contrário de destro, o vulgar canhoto, é sinistro.) Como já dizia Oscar Wilde, toda arte é inútil: suas novas obras de arte não servirão como adubo, somente como campo minado exclusivo para você, especialmente quando chegar apertado para ir ao banheiro.

Mudando-se para um apartamento, sofrendo de remorsos, você já terá doado seus pastores alemães-belgas-rottweilers e terá adquirido um poodle. Quando você chegar esbaforido, ele reagirá em seu favor, latindo esbaforido; se deprimido for o seu estado, ele murmurará Freud; se alegre se encontrar sua alma, pedindo por uma cerveja gelada, o xixi já estará à sua espera no sofá. Cães se cumprimentam pelos fundos e é com eles que deixam suas marcas; portanto, entre sempre pelos fundos do apartamento, sabendo que instalações estarão esculpidas à espera do seu caminho até a área de serviço, local onde deixar seu guarda-chuva, que pretensamente nos protege daquilo que não nos ataca, somente nos molha: a chuva, que, mesmo ácida, é melhor que o guarda-chuva, principalmente se você tiver um poodle em seu apartamento.

Você pode optar por gatos, mas sempre no plural, porque gatos de pardos não têm nada, são tigrados, brancos, pretos e marrons, e muito dóceis, desde que você goste de colecionar testículos felinos. Prefira os incertos, os fugidios, os rebeldes, que saem de noite para brigar com cães. Pode ser que assim o vitorioso seja você.

Em qualquer situação, cuide bem da sua sombra: é ela que estará pairando no piso do quintal e da área de serviço, no assento do sofá, no choramingar e no latido do cão, no ronronar e no miar do gato, no silêncio da madrugada interrompido pelo triturador do caminhão de lixo, pela campainha do despertador, ou por um interminável e invisível chiclete mascado pelo poodle - que, agora, você leva para o seu quarto, para que ele pare de latir para a sombra alheia. Admita: a sua é uma sombra egoísta.

Palavra de canhoto.

9.12.2011

VARANDAS

Eu preciso roubar alguma coisa de você, não porque não goste de você, pelo contrário, por gostar demais. Com seu consentimento, já invadi seu corpo e sua vida, e será consentido que vou roubar seu relógio e só usá-lo quando estivermos juntos. Na cozinha, percebi que sou capaz de enxergar com seus óculos. Não me caem bem, não me ficam bem, mas me cabem no bolso. Mesmo assim, melhor que eu continue usando os que são meus e carregue comigo seu olhar, seu modo de ver o mundo, as pessoas, de perceber a si. Levo seu olhar emprestado por saber que ele continuará em seus olhos. Com o relógio que roubei de você no pulso, eu só vou se você me levar pela mão.

A bailarina agora tem namorado, desejo, continua dançando quando pode e estudando muito. Pensou em mudar de rumo, engenharia química, não mais medicina. O que ela mais quer para o futuro dela, que dela é próprio, é pesquisa. Pensou, repensou, tornou a querer medicina. Dezessete anos e já é necessário tomar uma decisão do tamanho da sobrevivência e do sonho. Foi fotografada por você em um momento de dançarina, esguia, atenta, questionadora, tudo ao mesmo tempo e do tamanho do sonho, esperando por uma nova instrução da coreógrafa, com a meia rasgada na altura da coxa. A foto em preto e branco mostra o que sabemos dela, que continua cristalina, verdadeira, olhos nos olhos, com a vontade que dela é própria, com a leveza que só as bailarinas têm.

Vamos lá fora, onde bate o sol em varandas que veremos da calçada e que estarão vazias, porque frequentadas por quem estará por perto, enquanto eu falarei de outras, outras varandas.

Uma já faz um tempão que estive lá. Três semanas. Bar Urca, no Rio. Em cima, um restaurante, embaixo, um botequim, em frente, a baía de Guanabara. É preciso começar por baixo, onde o mundo é caótico, todos pedem cerveja, empadas e pastéis gritando junto o próprio nome ou o de alguém que tenha autorizado outros a fazê-lo. Meus outros são amigos de muito tempo, André e Gyzelle, Rubens e Henriette, Ramon e nosso Botafogo, Sandra e Murilo Haydt. Como o Botafogo não nos passou procuração para pedir cervejas em seu glorioso nome e sempre imprevisível campanha, que ganharia mais tarde do Atlético Mineiro e que ontem (hoje já é segunda-feira) perdeu de goleada, em terras cariocas, entre Haydts, Henriettes e Gyzelles com sobrenome húngaro, melhor que o meu fosse o nome a ser gritado, em total confiança aos muitos desconhecidos presentes. A mesa é a mureta que nos separa do mar, onde os barcos são generosos conosco: mesmo ancorados, balançam por nós, que bebemos de pé, continentes e emocionados. Fechamos sem questionamentos a primeira conta da tarde no bar e subimos. Quando subimos, sentados, comemos pescados. A imensa baía, com seus morros felinos, femininos, de lá de fora da janela, nos espiando, cuidando de nós. Quando veio a segunda conta e o Ramon estranhou a quantidade de cervejas, o garçom nos disse, Vocês beberam bem. Nada como um elogio para terminar uma tarde em uma varanda assim.

Outra parece que foi ontem. Ficava entre Araruama e Cabo Frio, onde aportamos, eu e o mesmo Rubens que estava comigo no Bar Urca há três semanas, primeiro na calçada, onde eu dormi com a cabeça sobre minha sacola de viagem e o Rubens passou a noite em claro, esperando que nossos amigos, que não sabiam que viríamos, voltassem para a casa em que estavam hospedados. Outro Murilo e que conheço há mais tempo ainda, o Drummond, e o Venâncio, que hoje mora em São Luís do Maranhão, já tinham feito dezoito anos, ao contrário de mim e do mesmo André, que estávamos com dezessete, ao contrário do Rubens, que já tinha chegado na frente de todo mundo aos dezoito e nunca quis saber de carro (aliás, nem de bicicleta). Pois o André recentemente achou uma foto dessa varanda, onde eu e Murilo estamos sentados em um barco de pescadores na areia da praia. Porque era um dia de tempo instável, ora chovia, ora era friozinho, eu e Murilo estávamos de camisas, sapatos e calças compridas, em plena praia. Por que minha filha, quando viu a foto, disse, Que horror, papai, só porque as calças eram de boca de sino, é um mistério insolúvel, que apenas se repete a cada geração, como as calças com bocas de sino se repetem a cada duas.

Outra faz um mês que visitamos. Era 13 de agosto. Nesta, você estava comigo. A bailarina e o namorado dela também. Fica numa ilha cercada de Lagoa Rodrigo de Freitas, Copacabana e Ipanema por todos os lados, onde meu irmão fez uma festa que será para sempre inesquecível. O apartamento onde ele mora, com livros e antepassados nos livros e nas fotos por todos os lados, foi tomado de parentes e amigos por todos os lados. Porque fazemos parte deles e porque somos pais da bailarina, dancei com você a noite inteira, com meus sapatos de Fred Astaire que ganhei do meu irmão, quando o aniversário era o dele, o dos cinquenta anos dele.

Outras ficam no verso de uma canção: tios na varanda. Tios do Cosme Velho, de Petrópolis, de Laranjeiras.

E toda essa história de varandas veio por causa de uma que, de tão especial, deixei no ar em um texto de quando a filha do André se casou e o irmão mais velho dele, Antônio Julio, recentemente achou esse texto e me perguntou, Quando é que você vai falar dessa varanda? (E perguntou por escrito.) Pois era uma varanda onde todo fim de Natal uma turma de loucos se reunia e cantava e conversava, enquanto Dr. André e Dona Mariana, os donos daquela varanda, nos olhavam, ora de perto, ora de longe. Os dois sabiam da nossa loucura; e gostavam dela. Gostavam tanto, tanto da nossa loucura, que fizemos como fazemos questão de continuar assim, loucos, flanando de varanda em varanda. Por isso é que assim prossigo, uma ilha cercada de livros a me proteger de mim, nossos amigos a me proteger de mim, enquanto a bailarina estuda e fala com o namorado, o Antônio Julio brinca com a neta, o André espera que a dele nasça da filha Luciana, o Murilo Drummond veio nos visitar com suas bailarinas Eliana e a filha deles Alessandra, Julio, André e Venâncio permanecem tricolores, o Rubens e o Murilo Drummond flamenguistas, o Haydt, vascaíno, eu, meu irmão e o Ramon insistentes, você, Sandra, Henriette, Eliana, Gyzelle... nos guiando em segurança.

Por isso eu permaneço com o relógio de pulso que roubei de você, esperando que você me leve pela mão até a próxima varanda.

Desde já, esteja avisada: irei com meus sapatos de Fred Astaire.

8.05.2011

VISITAS

Quem pouco abre a porta e se mostra
Quem não anda pelas ruas cumprimentando gente
Nem entra na padaria
Nem toma chope nem café

Quem não anda de ônibus
E não vê de manhã rostos esperançosos e sonolentos
E à tarde-noite não os vê exaustos e desesperados

Quem não escreve poemas
Não se expõe ao frio gelado da varanda de um bar
Quem não recebe amigos em casa
E quando os tem não os percebe
Não espia nem expia pela janela seus medos,

Não recebe visitas
Por exemplo, da Maria Beatriz
De nove anos, que faz dia 17 e quer ser médica e atriz,

Não conversa longamente com uma professora
Sobre filmes, séries, livros, aos chopes e relentos
Enquanto, lá dentro, gritos
Entusiasmados
Por um jogo de futebol,

Não recebe visitas inesperadas distantes
no tempo.

É preciso se expor
Mostrar a cara e os dentes
Sentir frio e correr outros riscos
Sentir frio

Até que depois ela chegue
A coriza
Insistindo que veio com o relento
Que melhor teria sido esperar que ela aparecesse
Quando quisesse
Do vento frio de uma fresta de uma janela
Hermeticamente
Fechada.

7.24.2011

DO QUE ELAS QUERIAM FALAR

De olhos fechados, vejo rostos que não conheço.
Como não conheço a imensa maioria das pessoas, não deveria me assustar com isso.
Mas me assusto.
Com meus olhos fechados, vejo pessoas que me mostram seus olhos, sorrisos, expressões, perfis.
Há uma negra que chora, deve ser pela morte de Amy Winehouse.
No rádio, só pelo primeiro acorde, já reconheço o toque, já adivinho a voz.
Buddy Guy.
Depois dele, Paulinho Moska e Kevin Joahnsen,
Waiting for the sun to shine.
Ao saber ontem da notícia, como todo mundo, claro, lembrei de Janis Joplin.
Janis disse uma vez que, com o tempo, queria aprender a cantar em voz baixa, como Ella Fitzgerald e Billie Holiday.
Amy disse uma vez que tinha nascido para ser mãe.
Não era de morte que elas queriam falar, era de vida.
Elas gostavam da vida, só não tinham a medida.
Alguém tem?
Abro os olhos e procuro rostos conhecidos pela casa e os há e se não os houvesse eu iria até a rua e veria rostos parecidos com os que vejo com meus olhos fechados, rostos que não me assustam mais, afinal, continuo não conhecendo a maioria das pessoas, que estão por aí, por perto, seus credos, suas rezas, suas certezas, seus medos, seu palavrório, seus silêncios, cigarros, copos, joggings, automóveis, seringas, latas de lixo, calções de banho, tubos de soro, biquínis, relógios de pulso, carteiras, bolsas, pés descalços, sorrisos com e sem dentes, as mãos estendidas, um assalto, uma esmola, um cumprimento.
Quando tiver vontade de morrer, faça que nem o cara da velha piada, que, quando tem muita vontade de trabalhar, fica quietinho num canto, até a vontade passar.
É de vida que queremos falar.
O tempo todo.

7.17.2011

COMENTÁRIOS E WOODY ALLEN

Um dos textos deste blog se chama "Para Karl Valentim". Já foi escrito há muito tempo, nem me lembro dele (claro que eu poderia ir até lá na gaveta do blog e buscá-lo, mas domingo não é dia de se mexer em gavetas). O que esse texto recebe de comentários é impressionante - apenas todos incompreensíveis, porque spam é algo incompreensível, tanto quanto aquele papel de propaganda que prendem no limpador do para-brisa do automóvel. Será que alguém pensa que de fato vamos comprar alguma coisa anunciada em um papel que se esparrama, se espana molhado, arranhando o para-brisa na hora em que começa a chover e ligamos o limpador, e este e suas borrachas, além de levarem de um lado pro outro o papel que se desfaz em tinta, ficam cantando uma triste canção, borrada, chorosa e irritante? Assim faz o spam, espanando, esparramando bobagem e porcaria na caixa de correio e na gaveta dos outros.

Hoje é domingo, dia de tirar da gaveta e da caixa porcarias e jogá-las fora, no lixo que não se recicla, apenas se renova de bobagens, e sem remexer no que mais estiver lá dentro delas, sem buscar mais nada, deixando lá dentro o que deve haver de bom, uma foto, uma carta, um bilhete, um número de telefone que já não se sabe mais de quem é.

Aqui em Floripa venta cinza, triste e ruidoso, depois de um sábado azul. As temperaturas já são mais amenas e amenas são as canções que tocam agora no rádio. Há um jazz, agora, e há o filme do Woody Allen em cartaz, Meia-noite em Paris, suas viagens geniais, Kathy Bates genial como Gertrude Stein, alguns perdoáveis clichês e estereótipos e a tentativa de explicar a mais inexplicável nostalgia, a de se viver em um tempo que não é o nosso. Há uma melindrosa das mais misteriosas e belas e há um certo sumiço que já valeria o filme. Não sirvo para crítico de cinema, não tenho pretensão maior que não a de ir de vez em quando assistir a um filme. Dessa nostalgia de que fala o filme, não sofro - ao contrário, me lembro de Oscar Niemeyer quando fez 90 anos. Ao ser perguntado pela jornalista algo relacionado à idade e à morte, respondeu: - Ah, ninguém quer deixar o espetáculo.

Nem os caras do spam, Niemeyer. Nem eles. Pena que o vento que sopra hoje seja mais ruidoso que a música suave que tocava há pouco no rádio.

7.03.2011

EU E A CAIXA DE CORREIO

Nem só de contas vive a caixa de correio - a tradicional, que já foi das cartas de amor, quando houve um dia em que “a marquesa saiu às cinco horas”. Domingo passado, eu ia saindo para me encontrar com minha mulher num restaurante, e o porteiro me veio com um envelope parrudo, “Não tinha como deixar na sua caixa de correio, Seu Mario”. Mas era para estar lá aquele envelope, se ele conseguisse passar pela fresta feita somente para os que trazem as contas e traziam as cartas, suas juras e seus ciúmes, assim o envelope queria, assim minha caixa de correio desejava. O porteiro completou, “Pode deixar aqui, o Sr. está saindo, na volta o Sr. pega”, e eu, “Não, meu amigo, isso é coisa muito especial, vou levar comigo”. No restaurante, com minha rima pobre e roubada, mostrei todo prosa à minha morena Rosa o livro que ganhei do Ronaldo Werneck, com suas deliciosas crônicas, “Há controvérsias 2”, com uma dedicatória só pra mim, e uma outra, a impressa, com vinte e dois nomes, dentre eles o do nosso amigo Carlos Sérgio Bittencourt. Outro é o do baterista Afonso Vieira, que, assim como o Ronaldo, conheci no apartamento do Leblon do Carlos Sérgio, os três de Cataguases, que então moravam no Rio. Rosa leu em voz alta o fechamento da dedicatória impressa - “22 amigos do peito, dois times mais-que-perfeitos” - e me disse, “Puxa, que coisa mais delicada”.

Tão delicada, Rosa, que me fez lembrar de quando eu e o Carlos Sérgio dividíamos a autoria de textos de teatro, de quando eu fiz parte de um elenco de uma peça dele, “Os visionários da noite”, encenada no Teatro da Praia, em Copacabana, e não faz tanto tempo assim, era um tempo em que eu trabalhava de dia e de noite em projetos de engenharia e o Carlinhos cismou de me convidar para ensaiar uma vez por semana, às 11 da noite, na Fundição Progresso, no velho centro do Rio, que aos poucos vem sendo remodelado, transformando armazéns e fundições, que estes me perdoem, em aproveitamentos bem mais interessantes, como bares, espaços culturais, antiquários com músicos e seus saxofones, assim é minha lembrança. (Ou minha imaginação?) Nos ensaios, no começo, eu não tinha texto: havia o receio de que, só ensaiando uma vez por semana, eu nunca fosse capaz de gravá-lo; mas, devagarzinho, o texto foi-se mostrando importante, foi sendo inventado, íamos inventando juntos, na hora, com sotaque gaúcho ainda por cima, porque eu contracenava com uma gaúcha, que depois se foi para Israel, e a irmã dela, como costuma fazer a vida em suas idas e vindas, veio morar aqui, em Florianópolis. (Ou eu estou errado, Rubens, André e Carlos Sérgio?)

Depois de inventado e escrito o texto, aconteceu o que se temia: todas as vezes eu o esquecia. Chegamos nos ensaios finais, com figurinos, cenário, no Teatro da Praia, e eu, errando o texto. Era engenharia demais me ocupando a cabeça. Mas... Na hora certa, com plateia no escuro, luz difusa no palco, o texto saiu inteiro, a figurinista, descrente quando me via claudicante nos ensaios, me abraçou depois da peça, o elenco todo se abraçava. Parafraseando Noel, fazer teatro é um privilégio, que não se aprende no colégio.

Ao meu amigo poeta, magistral em seus poemas concretos de “Doris by night”, meu amigo cronista, que ainda vai nos explicar porque a marquesa do Paul Valéry saiu às cinco horas, meu amigo Ronaldo Werneck: muito obrigado por me propiciar, além da leitura das suas crônicas, tantas boas lembranças, das noites no apartamento do Carlos Sérgio onde nos conhecemos e conversávamos até de madrugada, quando uma cadelinha chorava toda vez que ele perguntava, Cadê a Carla?, porque a Carla, filha do Carlinhos, havia saído.

Dona caixa de correio: as contas são suas; o livro do Ronaldo é meu; e as cartas de amor também.

6.18.2011

DIÁRIOS E COMENTÁRIOS

Embora apareça muito pouco por aqui, tenho recebido comentários muito interessantes. Resolvi destacar dois e fazer deles meu assunto:

Tai Tai disse...
“Já que estamos em um diário, podemos dizer..
Querido Mario:
Hoje eu estava divulgando artigos científicos muito interessantes no meu blog e cliquei em "próximo blog" (se é mesmo esse o nome) e dei de cara com você, diário do mario. Pois é. Não me contive. Olhei, revirei e senti inveja. Inveja da Maria Luiza que tem música, da Beatriz que tem poema e das Carolinas que tem os dois. Então, querido diário, pergunto: Porque é que ninguém fez nada com o meu nome? Nem livro, nem poema, nem nome de rua, música, tribo indígena. Nem nome de santo. E pior: não conheço ninguém com meu nome.”

Adriana de Adriano disse...
“Olá, gostei muito do teu blog e estou seguindo ele já, aproveito a ocasião e convido vc a dar uma olhadinha no meu blog, e espero que goste e se quiser seguir será um prazer ter vc me seguindo.. Bjus
http://algumascoisasqueeuescrevo.blogspot.com/”

Agora que eu descobri que há quem me siga, algo inesperado para mim, resolvi me tornar também um seguidor - eu, que nem conselhos consigo seguir. Se eu fosse um detetive e tivesse que seguir alguém pelas ruas, fracassaria na primeira esquina, bastando para isso algo que despertasse minha desatenção, distração que me segue e me desvia nas ruas, seja de carro, bicicleta ou a pé (que é a melhor maneira de se andar, principalmente nestes tempos em que a preferência é ficar preso dentro de um carro parado em um engarrafamento que, ao contrário dos rios, não desaguará no mar, apenas estancará de vez, frente à sua - perplexa - imensidão). Uma livraria, um botequim, uma mulher, especialmente a minha, me tomaria a atenção e eu teria que pedir as contas como seguidor profissional e procurar outra ocupação – por exemplo, a de admirar o mar, sua paz, sua inquietude, sua imprevisibilidade.

Se não consigo seguir ninguém nem conselhos, que dirá uma filosofia, seita ou religião. Só o Marx - e não o Karl, mas o Groucho. Como ele, eu jamais entraria para um clube que me aceitasse como sócio. No meu caso, nada muito profundo ou ideológico, nem mesmo engraçado, porque a graça é dele, tem seu carimbo e assinatura, seu charme e seu talento; apenas porque, de novo, minha distração se manifestaria, antes mesmo de chegar à porta do clube ou da instituição; se lá chegasse, me fixaria mais em um olhar que numa frase. Uma verdade que fosse revelada, uma nova teoria, tudo ficaria menor diante de um olhar humano, mais ainda se o olhar fosse o de um bicho, de um cão, especialmente o de um cão vadio, expressando o mais sincero dos sentimentos: o da fome. Um rabo canino que abana por fome, lamento se decepciono a quem me segue neste espaço, me impressiona muito mais que qualquer dialética, inclusive a negativa de Adorno.

Contrariando tudo isso, vou-me tornar um seguidor de blogs. E atento - até que uma esquina me distraia, até que uma ladeira surja diante de uma rua plana, até que uma árvore mal podada me arranhe o rosto e me arranque os óculos.

Quanto a você, Tai Tai, me dê uma pista, o endereço do seu blog de artigos científicos, para que eu possa, além de segui-lo, tentar corrigir essa tremenda injustiça da ausência de um poema com seu nome.

5.21.2011

DE LIVROS E DE FILHOS

O sorriso da foto aí ao lado é do lançamento de um livro. O sorriso de quem acaba de ser pai ou mãe é diferente deste da foto, como é diferente o de quem acaba de conhecer o filho ou a filha de alguém próximo. Um livro não é um filho, porque um filho não é um livro.

Tenho uma filha, que ontem voltou para casa com dor de cabeça. Passou com um analgésico, abraços silenciosos, luz apagada e sono. Ontem à noite era sexta-feira, como o título de um dos livros do mineiro Roberto Drummond, que morreu torcendo pelo seu time, do coração, de coração, respectiva, implosivamente. Na quinta, fui buscar minha filha no balé. Vestibulanda de Medicina, faz balé como exercício físico, emocional, Arte Dança se chama a escola. Escrevo porque preciso, ela faz balé porque precisa, e vê-la dançar me faz mais bem ao coração que escrever (que dirá que de não escrever). Fiquei do lado de fora, a alguns metros da sala de dança, sentado em uma cadeira plástica, de jardim, ao relento, sem sereno. E sereno. Era um começo de noite agradável, não ventava, não chovia, frio, um pouquinho só. Via e ouvia tudo pela porta aberta do estúdio. Um, dois, três, quatro... Um, dois, três... Mais rápido agora, meninas. Uma delas passava pela fresta da porta, minha filha passava com seus passos e seu sorriso, passava um rapaz negro e sua altivez de dançarino.

Preciso imensamente lançar um novo livro. Trabalho agora em um que é compartilhado com outros autores e autoras. Um belo projeto, que pretendemos lançar este ano. Alguns amigos, principalmente amigas, me dizem que eu deveria publicar minhas crônicas. Mando meus romances e poemas para concursos. Muitos anos atrás, eu morava no Rio, no Cosme Velho, e uma amiga, Anete, morava em Belo Horizonte. Ela conhecia o Roberto Drummond de uma agência de banco, e deu a ele um original meu, um romance que escrevo e reescrevo deste esse tempo, 1993, ano em que meu pai morreu e Rosa, meses depois, ficou grávida de Maria Luiza, nossa bailarina e futura médica. Tive a honra de conversar com Roberto pelo telefone, que, com tanta atenção e delicadeza, me disse assim, seu livro é bom, é original, lute por ele – e me aconselhou a inscrevê-lo em concursos. Só agora, dezoito anos depois, é que me interesso por eles. E escrevo e reescrevo o mesmo romance lido pelo Roberto Drummond, já tendo escrito e publicado outras coisas enquanto isso, porque esse é como se fosse...

No ano em que nossa Maria Luiza nasceu, Tom Jobim partiu. Quando parte um Tom Jobim, é uma parte do mundo inteiro que se vai, e ninguém de verdade sabe para onde. Ele e Vinicius morreram aos sessenta e sete anos: Vinicius em 1980, e o Tom, 1994. Na TV, um especial e, dentro do especial, algo ainda mais especial: o ator Paulo José disse um poema do Tom, cujo refrão dizia “Maria Luiza acordou sem febre”. Meu amigo Murilo, que também assistia ao programa, me ligou e me perguntou como ia a nossa Maria Luiza. Sem febre, eu respondi. Ele então me disse, é duro, o Tom se foi, mas a Maria Luiza está sem febre.

Hoje, Murilo, Maria Luiza acordou sem dor de cabeça.

Um livro não é um filho, porque um filho não é um livro.

4.03.2011

AÇÃO E REAÇÃO

Ninguém deixa de reagir a um ato de violência de que seja vítima. Apenas a reação poderá ser de um jeito que não o de um outro ato de violência em resposta ao primeiro. Se for impulsiva, terá sido nada mais que isto: impulso, instintivo impulso. Há bons e muitos exemplos de quando não á assim, impulsiva e nada mais, e de ampla gama: reações filosóficas, pragmáticas, racionais... Para começo, dois: Mishkin - "O idiota", de Dostoevsky -, e o pai de Will Eisner em sua (quase) autobiografia em (como sempre, magistrais) quadrinhos, "Ao coração da tempestade" ("To the heart of the storm"). Um terceiro, o mais célebre, o bíblico "Ofereça a outra face", naturalmente guarda infinitas possibilidades de interpretação e uso. Fui vítima de um ato de violência na sexta-feira passada, logo na tradicional data das pequenas mentiras, pegadinhas: 1° de abril. Este meu 1° de abril teve uma literal pegada - e deixo para contar a história em uma outra oportunidade. Fato é que minha reação pode ter sido parecida com qualquer uma das três citadas; garanto, porém, que o que mais teve de característico foi a racionalidade; a razão. Eu estava em uma audiência pública, com promotores, procuradores, advogados, líderes políticos e comunitários e muita, muita gente, em um auditório fechado, com mais gente ainda do lado de fora, e, dentre essas pessoas, alguém sabidamente violento, egoísta, imediatista, destemperado. No inesperado, poderia haver algo de esperado; e de premeditado. Minha razão, com toda calma, se traduzida em palavras, o que me disse foi: preserve-se. e aos outros. Depois, vá à Justiça. Fui agredido de surpresa e sem possibilidade de reação. Por que minha lembrança não é racional, por que ela se afasta da minha razão e mesmo do meu sentimento, é algo que acaba por desaguar em outra pergunta: quanto tempo e quantas vezes podemos suportar a diferentes agressões, quando todas têm uma mesma origem? Quem puder, que responda, filosófica, pragmática, racional ou, quem sabe, a melhor de todas as maneiras, impulsivamente.

2.27.2011

DE PASSAGEM, DE REPENTE

Os ventos mudam mais rapidamente em uma ilha, muito mais que no continente, muito mais que nossas convenções. Agora é noite de domingo, aqui nesta ilha é noite de domingo, em algum lugar já é segunda-feira, dia da lua, lá, hoje era ontem, domingo, dia do sol. Aqui na ilha e hoje, durante o dia, o sol ficou encoberto, os ventos é que mudaram o tempo todo, rapidamente, quase que furiosamente. Muita coisa tem mudado furiosamente, sempre menos que os ventos. Isso tudo ventado, carregado por aí, calma ou nervosamente, o que paira, mesmo, é a dúvida. Enquanto for assim, que bom, porque, quando ela se for, quando a dúvida se for, restará uma imbecil certeza. Aquela que nem de si mesma sabe. Aquela que não quer saber.

2.17.2011

BIA, MARIA BEATRIZ

Bia, Maria Beatriz,
nome tão bom e bonito,
convite para uma rima,
que eu não caia na tentação
de rimar seu nome em vão.

Bia, Maria Beatriz,
pega onda, surfa onde há espaço,
risca o desenho mais bonito no traço
do passo da ginga do berimbau.
(No ônibus, toca violão.)

Bia, Maria Beatriz,
é valente e sincera.
Tão suave e à vera
caminha, que deixa mais leve
a paisagem.

Bia, Maria Beatriz,
faz de si personagem
(se quiser, é atriz),
mas é na tela, na tinta,
na ponta do lápis de giz

Que deixa gravado seu nome,

Bia,
Maria
Beatriz.

Bia, Maria Beatriz,
nome tão bom e bonito,
convite para uma rima,
que eu não caia na tentação
de rimar seu nome em vão.

A PABLO NERUDA

“el ingeniero quiere ser poeta,
la mosca estudia para golondrina,
el poeta trata de imitar la mosca”
(Pablo Neruda, em Oda al gato:
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca)

Ontem, no fim da tarde, vi um sujeito andando na calçada, um pouco à minha frente. Seu cabelo era todo branco, vestia uma camisa-pólo verde e uma calça jeans, seus sapatos eram pretos e de cadarço, trazia nos ombros uma bolsa a tiracolo, cansada, de couro marrom, e um assobio. Eu sempre tive muito mais sorte no amor do que no jogo, mas aposto assim mesmo que esse sujeito, se não for engenheiro, é poeta. Se fosse como eu, querendo ser poeta e tratando de imitar a mosca, traria nos ombros um peso que não se descreve, que não precisa de bolsa para se manifestar, que, para ir embora, só precisa de assobio. Pode ser o da andorinha; pode ser o do andarilho.

1.30.2011

MEU PRIMO CACÁ E O VISCONDE DE SABUGOSA

Florianópolis, 30 de janeiro de 2010.

Meu caro João Marcelo:

Vários passarinhos continuaram se reproduzindo graças a mim e ao seu pai, João Carlos Benevides e Maia, o Cacá. Quando eu e ele éramos garotos, ainda não havia o espírito de preservação de hoje em dia. Todos tínhamos um negócio que, dependendo do lugar, se chamava bodoque, estilingue ou atiradeira. Era uma forquilha, um Y de madeira, com um elástico de borracha, e a meninada punha uma pedra no elástico, puxava e atirava a pedra contra um passarinho. Graças à nossa imbatível falta de mira, eu e seu pai nunca matamos um único passarinho. Eu me lembro de uma vez que subimos o morro atrás da casa onde ele morava com os seus avós e tios, e nem chegamos a perder muito tempo com aquela maravilha da engenharia da caça aos inocentes: fomos convidados a almoçar na casa de um amigo dele, lá no morro, e eu, que era tido como um chato para comer, comi muito bem, obrigado. Tinha um camarada que morava lá que bebia água da chuva depositada em poças. Nós dizíamos a ele: “Rapaz, água parada é suja, faz mal pra saúde!” - e ele respondia, “Que nada, eu estou acostumado.”. Esse garoto jogava futebol tão bem que, adivinha qual era o seu apelido? Pelé, é claro. (Da minha parte, modestamente, sempre fui um perna de pau.)

Outra história era a bola de gude. Como a gente gostava de bola de gude! Eu ganhei uma faz uns dez anos da minha filha e minha mulher já quis me internar em um hospício umas quatro vezes, só porque eu ando com ela na minha pasta (a bola de gude, não a minha mulher). Na época do estilingue, morávamos em Laranjeiras. Eu, na rua Umari; seu pai, na Pereira da Silva, que começa no nível do mar, embora um pouco longe dele, e vai virando uma ladeira que, em algum lugar misterioso, pelo menos para mim, se une ao Parque Guinle. A rua Umari era de paralelepípedo e, mesmo assim, jogávamos bola de gude na rua. O jogo começava com a seguinte pergunta: “Bola ou búlica?”. Como eu nunca soube o que quer dizer “búlica”, sempre escolhi a bola. Uma vez eu dei um teco tão bem dado que quebrei a bola de gude do Cacá. Sabe o que ele fez? Deu uma gargalhada e me declarou campeão. Sinceramente, não me lembro de outro título mais importante que este na minha vida.

Cacá e eu tínhamos uma amigo em comum: o Alberto. Eu e minha família mudamos para o Leme e minha mãe fez uma festa para o meu aniversário de doze anos. O Cacá e o Alberto chegaram lá de terno e gravata! Uma covardia, João Marcelo. Os dois levaram todas. Pensando bem, acho que isso foi um revide à tal bola de gude que eu quebrei.

Outro tempo é o de agora, quando meu irmão faz o almoço de Natal e em todos eles o Cacá me chamava de Mariola. Ele é o único que sempre fez isso, acho que por outorga do Visconde de Sabugosa. Cacá sempre tinha histórias pra contar e perguntava, Cadê o James? O tal do James era o garçom; não importa com que cara o garçom viesse, o seu nome era sempre o mesmo: James. Quem tem outorga dada por um Visconde é assim, possui uma intimidade com súditos da rainha que nós plebeus sequer desconfiamos.

Na festa dos meus doze anos, a mesma em que seu pai e o Alberto vieram de terno, meu irmão estava com seis anos e dançou o tempo todo com uma amiga dele, a Teteca. Teve um dia em que a Teteca atravessou a rua distraída, foi atropelada por um ônibus, levantou-se, foi andando para casa e, à noite, partiu, para onde todos partem um dia, um lugar mais distante que, por exemplo, o Leme de Laranjeiras. Maria Lina, que partiu um pouco antes do seu pai, de vez em quando me escrevia, dizendo que tinha visitado o meu blog. Espero que você também me dê a honra da sua visita e não se surpreenda: esta carta estará no blog, porque quero que quem passe por ele passe também por Florianópolis, Leme, Laranjeiras...

A vida se parece um pouco com esses teatros onde se lê na entrada: “Aqui, o show começa quando você chega e termina quando você vai embora”. Se você aceitar sugestões de quem leva na pasta uma bola de gude, viva seu show retribuindo o amor que você receber e, quando ele estiver escasso, tome a iniciativa, escolha bola em vez de búlica e abra esse seu sorriso largo, que é mais do que suficiente. Se quebrarem sua bola de gude, faça como seu pai: dê uma gargalhada, declare campeão o dono do teco e depois apareça de terno na festa dele. Estude o que você puder estudar, porque estudar abre nossos horizontes, embora alguns mistérios permaneçam para sempre. Por exemplo, não se sabe se foi a Terra que não conseguiu imitar a bola de gude em sua perfeição esférica ou se foi a bola de gude que se tornou imperfeita, perfeitamente redonda, ao tentar imitar a Terra - Terra que um dia levou um teco de um meteoro para que os dinossauros cedessem o lugar para a gente. Já pensou o tamanho da mão que deu esse teco na Terra? É, meu amigo: o dono dela é que é o verdadeiro campeão.

Um grande abraço,
Do seu primo (ou tio, se você preferir),

Mario Benevides (mariobenevides.blogspot.com.)

1.11.2011

DIAGONAIS E PARALELAS

Passamos a primeira parte das férias de verão no Rio e a segunda já vamos ficando por aqui, em Florianópolis. Tem sido assim já há vários anos. A exceção foi ano passado, quando fomos à Europa com meu irmão (nos últimos anos, portanto, as nossas primeiras férias de inverno). E é na casa dele que ficamos no Rio. É sempre bom. Por exemplo, a maior parte do tempo andamos a pé, por Copacabana e Ipanema. Tudo demora demais, menos as férias: agora, o Rio está mais calmo. Nascemos lá, não vivemos diretamente nenhum trauma de violência, o Rio para nós é especialíssimo e assim sempre será. Viemos para Florianópolis por uma questão de carreira profissional minha; Florianópolis veio de brinde. Experimentamos, lá e cá, a mesma língua e o mesmo oceano, com poucas diferenças (como disse Guimarães Rosa, viver é muito perigoso, e, lá como cá, nenhum trauma direto de violência: muita sorte). Por exemplo, no Rio, caímos no mar; aqui, mergulhamos. Lá, o mar vem em ondas diagonais. Em Ipanema, caímos no Arpoador e saímos no Jardim de Alá. Entramos no mar por debaixo de cada uma das ondas e vamos entrando e entrando debaixo das ondas e acompanhando a correnteza, até sair onde der, onde for possível, felizes e saudáveis, mergulhadores, nadadores e vencedores. Se alguém é hóspede do Fasano, que fica no Arpoador, vai se apresentar no Ceasar Park, quase no Jardim de Alá, e será muito bem aceito, convidado inclusive a experimentar o teorema de Pitágoras e voltar pelo cateto de areia, que ampara as ondas diagonais da hipotenusa aquática e salgada, até chegar no seu front-desk certeiro, hospedeiro e caro. Aqui, Florianópolis, Jurerê, praticamente não temos ondas: nadamos eternamente e paralelamente à praia, até sairmos onde der, até nos vermos perdidos e disfarçando que não. Como se estivéssemos em Ipanema. Aqui como lá, sairemos andando pela areia fingindo que sabemos onde estamos ancorados - onde fica, no Rio, nossa barraca; em Florianópolis, nosso guarda-sol. Jamais saberemos, e sempre chegará uma alma salvadora a nos dizer, esqueceu? Estamos em frente ao posto salva-vidas, ora! Qual deles é que ninguém nunca nos informa, ninguém nos pendura uma placa no peito a dizer, eis aqui um ser de férias a se perguntar, Por que as férias são tão curtas e as soluções demoram tanto, tanto que levam anos, que levam tiros, que levam vidas? Uma argentina perguntou faz pouco, La sombrita, quanto custa? Cinco reales, respondeu o barraqueiro, senhor dos guarda-sóis, certeiro, hospedeiro e caro.

Em 2011, para todos nós, muita sorte.