5.29.2021

O CÃO

 

 

Cão

O diabo

É o cão.

O cão

É o diabo.

 

Interessante é o cão

Que não se reconhece no espelho

Que não vê no espelho quão belo e interessante e esquisito é

Que se olha no espelho e estranha sua imagem

Vê a si mesmo como um estranho

 

Um estranho.

 

Interessante é o cão

Sua infância inconveniente

Sua velhice cansada.

 

Interessante é o cão

Que não percebe o colorido que é seu

Dele, cão,

Que não sabe ou quer saber quão belo é

Ele, cão,

No espelho.

 

Tão diferente do canalha

Que se olha no espelho

E assim se reconhece

E assim cumprimenta a si mesmo

 

Prazer minha imagem

Canalha sou

Muito prazer

Com muito prazer.

 

Interessante

É o cão.

 

 

 

 

 

5.27.2021

PARLAMENTARISMO!

 

Nossa história recente mostra que o Congresso tem legislado ao bel-prazer de quem está na presidência, por meio do vexaminoso toma-lá-dá-cá, e não raro em causa própria. Também tem funcionado bastante para manter ou tirar do cargo quem estiver morando no Alvorada e supostamente trabalhando no Planalto, um dos poucos momentos em que a mobilização popular tem importância. Grande parte da sociedade idealiza um líder capaz de melhorar o país, sendo que melhorar para uns pode piorar para outros, e vivemos em permanente instabilidade, com a sensação de impotência. Neste momento, ainda por cima ameaçados por uma família e seus seguidores de nos tirarem a democracia, de um tranco ou aos poucos, nos jogando de novo na vala das republiquetas de e dos bananas.

Assim tem sido o presidencialismo do Brasil. Vale lembrar que, dos cinco presidentes eleitos pelo voto direto após a ditadura de 1964 a 1985, dois saíram por impeachment, sempre a dividir a sociedade, que de um lado se sente furtada dos seus votos nas urnas, e de outro, incerta quanto ao apoio dado à medida, tanto quanto ao que ela traz de riscos de fragilizar, mais uma vez, a nossa democracia.

Por que não tentarmos o parlamentarismo? Parece incoerência, já que este texto começou por criticar a atuação do Congresso Nacional. Mas a sensação de impotência referida vem da distância entre povo e parlamentares, que aumenta na mesma medida do decurso de tempo entre a eleição e o exercício do mandato de quem se elege.

O parlamentarismo não passou nos plebiscitos de 1963 e 1993 por razões que podem ser atribuídas à conjuntura de cada momento. Na primeira, porque a maioria era contra a evidente manobra para ofuscar o presidente, eleito como vice, que alguns, de posse das armas da República ou de poder e dinheiro, sequer desejavam que tomasse posse, e que depois seria, como foi, derrubado à força. Na segunda, porque após 21 anos de presidentes impostos, era de se esperar que a vontade predominante fosse a de votar para presidente da República, que havia sido frustrada na campanha Diretas Já, de 1983 e 84.

Os dois maiores riscos do parlamentarismo parecem representar prejuízos menores do que os dessa busca incessante por ídolos salvadores da Pátria: o da permanência excessiva de um partido no poder, e o seu oposto: a alternância frequente por causa de instabilidades políticas e econômicas – mas, nos dois casos, sempre exigindo a participação do povo, a custos econômicos, morais e psicológicos muito menores do que os que temos vivenciado ao longo da nossa história.

Como funcionaria? Votaríamos em partidos. A cada quatro anos, o partido mais votado elegeria um primeiro-ministro e os demais ministros, formadores do governo. Em uma crise, a depender da sua intensidade, duas possibilidades: o mesmo partido elegeria um novo ministério; ou novas eleições seriam convocadas.

E quem as convocaria? O chefe de Estado, por real e manifesta vontade do povo. Assim, os três Poderes da República estariam mantidos, e o poder democrático, mais do que nunca seria exercido pelo povo, diretamente e por meio de seus representantes.

Mas, quem seria e quem elegeria o chefe de Estado? A sugestão é que fosse um diplomata de carreira, escolhido pelo voto popular entre três nomes propostos pelo Itamaraty, em anos alternados aos das eleições federais, estaduais e distritais. Com que funções? Somente duas: Ministro das Relações Exteriores; e convocar eleições populares, a cada quatro anos ou quando o povo exigisse.

Para que o parlamentarismo possa ser implantado, antes de tudo uma reforma política, reduzindo o número de partidos, com nomes que necessariamente correspondam ao que de fato tenham como propósito.

Mais adiante, vamos abordar como poderia ser uma reforma política que proporcionasse ao eleitorado maior clareza das propostas de cada partido e como o parlamentarismo tem funcionado em alguns países que o adotam.

Que tal pensar sobre isso?

5.05.2021

A CONSTITUIÇÃO NA MESA DE CABECEIRA - 5 - MAU HUMOR

 

A CONSTITUIÇÃO NA MESA DE CABECEIRA - 5 - MAU HUMOR

Dando sequência à série que tem como único objetivo, de forma despretensiosa e, sempre que possível, bem-humorada, dar conhecimento a quem não tem da Constituição Federal, este capítulo trata do mau-humor de importante figura do cenário brasileiro atual frente a decisões que não lhe competem, tal como previsto na Lei, inclusive e nada menos do que na Lei Maior.

Dois artigos da Constituição têm sido frequentemente lembrados e invocados, curiosamente em tom de ameaça, todos sabem por quem. Um deles é o artigo 5º, incisos VI e XV:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.

A respeito do inciso VI, a instituição que tem sido o alvo número um do mandatário do Executivo, seus seguidores e família – o STF – já se pronunciou a respeito, esclarecendo que manter fechados ambientes para missas e cultos para proteger a saúde de indivíduos e a coletividade nada tem a ver com a violação da liberdade de consciência e de crença. Além disso, a este modesto escriba, ora, diante de uma pandemia por um vírus que se espalha e contagia rapidamente, com mais de 400 mil mortes no país em decorrência dele, número que tende a crescer, fica bem claro que os locais de culto e suas liturgias estão justamente - e adequadamente - sendo protegidos, na forma da lei. O que confere. Decretos e leis municipais e estaduais para ajudar a conter a pandemia estão na forma da lei: como divulgado pela mídia, em decorrência de questionamentos presidenciais, o STF decidiu pela competência concorrente da união, estados e municípios sobre a matéria. Sem entrar no mérito da decisão, há lógica fundamentada suficientemente: o Brasil é uma federação; há competências definidas entre os poderes da República; e moramos em cidades, não na união.  

Em relação ao argumento de que as medidas restritivas são nocivas à economia, estamos certos de que o atual habitante do Alvorada repetiria a frase “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Qual economia vai retornar primeiro? A daqui ou a de lá? E por quê? Joe Biden assumiu sua responsabilidade, orientou a população e acelerou sua vacinação. Nada a ver com poder aquisitivo. O Brasil teve a seu dispor oferta abrangente de vacinas. Alguém retardou.

Sobre o inciso XV do art. 5º, veja-se matéria disponível no website migalhas.com.br, especializado em temática jurídica, com o título Tempos de pandemia e o direito constitucional de ir e vir, de André Ferreira e Camila Misko Moribe. O que autor e autora mostram é o fundamental papel da hermenêutica – aquela merecedora do Oscar de coadjuvante em todos os processos legais. Os dois citam: leis criadas e promulgadas (com a assinatura do chefe do Executivo - como deve ser -, diga-se de passagem) em decorrência da pandemia; e o art. 196 da Constituição, que expressa:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Precisa dizer mais?

Mas o artigo preferido do presidente é o 142. Na inesquecível mas não memorável reunião gravada e exibida (com duplo sentido) de 22 de abril de 2020, ele chegou a dizer que, por causa daquele artigo, é muito fácil implantar uma ditadura “nesse país”.

A esse respeito, um dos ministros do STF diletos da família e seguidores, Luiz Roberto Barroso, deu uma aula de hermenêutica em recente decisão. Vamos começar pelo artigo, que estipula em seu caput:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Antes de adentrar na decisão do ministro do STF, é de bom tom perceber que uma das destinações das Forças Armadas é a garantia dos poderes constitucionais. Nesse momento, a hermenêutica nem participa da cena e deixa a atriz principal atuar só, pois, se os poderes constitucionais são três, como usar as Forças Armadas para desautorizar os três ao mesmo tempo? Pois não seria isso que aconteceria se essas forças, a mando da sua autoridade suprema, se insurgissem contra decisões do STF, do Congresso e de chefes do executivo de estados e municípios? Vamos então à aula de L.R. Barroso, em resposta a um “advogado paulista que pedia a regulamentação do artigo 142 da Constituição Federal para estabelecer os limites de atuação das Forças Armadas em situações de ameaça à democracia”, nas palavras encontradas no website do Supremo. Vale a pena ler o que lá se encontra reportado:

Em sua decisão, Barroso afirma que, nos mais de 30 anos de democracia no Brasil sob a Constituição de 1988, as Forças Armadas têm cumprido o seu papel constitucional de maneira exemplar. Por isso, considera que presta um “desserviço ao país quem procura atirá-las no varejo da política”. Segundo ele, nenhum método de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico* – autoriza que se dê ao artigo 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. “A menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de 200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se falar em poder moderador das Forças Armadas”, afirmou. Barroso lembrou que, ainda que seu comandante em chefe seja o presidente da República, elas não são órgãos de governo. “São instituições de Estado, neutras e imparciais, a serviço da pátria, da democracia, da Constituição, de todos os Poderes e do povo brasileiro”, concluiu.

*) Se você não sabe o que significa “teleológico”, vamos ao pai dos burros, ou a um dos melhores deles, o Dicionário Houaiss: o que relaciona um fato com sua causa final. O mesmo se acha no Dicionário Filosófico de Jupiassú e Marcondes, que acrescenta a informação de que Kant, em Crítica do juízo, se prova a existência de Deus pela existência do universo: um propósito que só poderia ser dado a ele por Deus, seu criador.

Mas o que o que se chamou aqui de mau humor é outra coisa.

Bruno Paes Manso, em República das milícias (São Paulo: todavia, 2020, p. 269), conta que, em 1999, o então deputado em terceiro mandato, em depoimento a um programa da TV Bandeirantes do Rio, ao ser perguntado se fecharia o Congresso se fosse presidente do Brasil, respondeu:

“Não há a menor dúvida. Daria o golpe no mesmo dia”.

 Em 5 de maio de 2021, o presidente voltou a insinuar que o vírus podia fazer parte de uma nova guerra química empreendida pelo país de maior crescimento do PIB em 2020, e a ameaçar pôr o bloco na rua - leia-se, as FFAA (no linguajar originário da sua turma) -, com um decreto que nenhum tribunal iria ser capaz de derrubar; e com a certeza de contar com o Congresso.

Há quem atribua esse tipo de arroubo a uma suposta insanidade do presidente. Das duas uma. Ou ele, que há décadas defende atos antidemocráticos, violentos e atentatórios contra a vida e o princípio constitucional de resolução pacífica de conflitos, sempre foi insano, e seus pares e seguidores nunca perceberam; ou há inocência, tentativa de escape ou ironia de quem supõe sua insanidade.

Quanto a não admitir ser criticado pela imprensa, frase esclarecedora de Millôr Fernandes está em Mau humor, de Ruy Castro (São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 142):

Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.

Bom humor pra você.

E, principalmente, saúde.