11.29.2005

O TOMBO

Rala os joelhos
Rala as mãos
Rala os dedos
Faz um estrago muscular generalizado

Rasga as calças nos joelhos
Arrebenta o bico dos sapatos
Exige ataduras e mercúrio-cromo
Condena o tombado a mancar e dar explicações

Por uma semana às vezes anos.
Entretanto maior estrago é na alma
O descontrole da queda do tombo atemorizante

Ficar sentado no chão até que o susto e a dor diminuam e pior:
Como se tomar cuidado evitasse tombos separações falências
Ouvir de alguém Você deveria ter tomado cuidado.

11.26.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E SEIS –

As obras de construção da segunda hidrelétrica, nas mãos da iniciativa privada, seguiam aceleradas. As rodadas de negociação para indenização de proprietários e reassentamento de moradores e trabalhadores de terras que iriam ser alagadas não podiam seguir em ritmo diferente. A população não-proprietária atingida tinha que decidir para onde ser reassentada: reassentamento coletivo agrícola, uma casa na cidade ou um auto-reassentamento rural por carta de crédito? Dentro da casa, onde as salas serviam de escritório, assistentes sociais conversavam baixinho com as pessoas. Já o contratado para negociar a indenização de terras falava alto de se ouvir lá fora. Lá fora, a fila de quem esperava sua vez de ser atendido.

Luzia apoiou as mãos nas costas, muito cansada, mas sem cramá da vida. Na beira do rio, prantava o que desse, o marido fazia tudo que ela pedia. Na verdade, mandava. Mas ele fazia e de bom grado. A terra de Seu Ernesto já não estava dando era nada que prestasse. Para ela e a família, a idéia de se mudar para um lote de reassentamento que fosse seu era como um sonho que viria a se realizar de forma completamente diferente do sonhado todos os dias, todas as horas do dia e da noite.

10 hectar num é nada, num presta pra nada. 2 alqueire, o que é que se faz com 2 alqueire? Zininha de manhã tinha caído no buraco outra vez. Inferno de vida. Calor insuportável. Prantá se pranta em qualquer lugar, saiam dali e iam pra outro lugar, pra terra de outro, pra beira do rio, na beira do rio num tem seca, pranta e colhe e pronto, num tinha esse negócio de chegar uma empresa e tirar ela dali. Aquele buraco é que era um castigo, não sabia era do que, afinal, era castigada. Pecado todo mundo tem, o dela não era pior do que o de ninguém. Ninguém aparece, Deus do céu, pra me tirar daqui. Apareceu uma dessas moça da empresa, até que enfim, Moça, tira eu daqui, caí na disgrama desse buraco. Fica tranqüila, Zininha, me dê a mão, vá. Vamos pro escritório da firma, ocê precisa dizer praonde tu queres ir, Zininha, vamos, ajeita o cabelo, passa uma água no rosto, vai. O moço da camionete tá esperano.

O banco num vai emprestá dinheiro pra mim. Os fila da puta só qué sabê de papé. É só do queles querem: papé. Papé e mais papé. Essa hidrelétrica vai tirá muita gente das casa, o negócio é não sê idiota, tem que tirá vantage da situação. Se é pra mudá, se não tem jeito, mió que muda pra mió. Meu genro acho que tem os papé que o banco tá quereno, levanto o dinheiro no nome dele, pago pra ele, compro minhas cabeça de gado, umas vaquinha, vou tirano leite, vendo e pago a ele e pronto. Depois, compro outras vaca e vai se viveno. Já quebrei umas duas veiz, num vou quebrar de novo, nem fudeno. Seu Josefino aqui não é burro não, só de carga, êh êh.

Zequinha apareceu perambulando já totalmente bêbado, como era sua rotina. Queria cumprimentar os outros e ninguém lhe dava a mão, só o capanga do agiota que andava de chinelo de dedo, apertava a mão dele com uma nota de dez dentro e dizia, Vai-se embora daqui, Zequinha, vai pra casa da tua mãe. Vou me matá mais um pouco e depois eu vou, Zequinha respondia.

Essas negociação tinha que sê mais depressa, a fila tá grande demais. Dispois nós chega lá dentro e eles tem pressa, diz que o lago vai enchê, que a rente tem que escolhê depressa, senão as água vai cobri nossas terra. Mas o preço que eles tá pagano tá baixo, eu quero mais. Terra minha num tem ninguém que vai cobri de água se eu num quisé, num tem decreto nem revorve capaz de fazê isso não. Pelo preço que estão quereno pagá, num vendo não – dizia o agiota, proprietário de fazenda, pro capanga de chinelo de dedo. O revolver na cintura, tal e qual trazia o seu o segurança contratado, à porta das salas das assistentes sociais e do negociador de indenizações. Veio a moça com a garrafa térmica com café e copinhos de plástico, Dona Luzia lhe disse, Moça, quero café não, com esse calô, mió água. Traz água pra nós, moça do céu.

No Rio de Janeiro era um dia igualmente quente, apenas úmido, muito mais úmido que em Minaçu. Ricardo Coração dos Outros V visitava seu avô, muito doente. Enquanto esperava que a enfermeira saísse do quarto dele, olhava fascinado sua estante de poeta e compositor popular. Entre Vinicius de Moraes e Antônio Maria, Sheakspeare; ao lado de Paulo Francis, Caetano Veloso. Era um gozador. Não morre não, vovô, não morre não. Ricardo, seu avô faleceu, lhe disse a enfermeira, saindo do quarto do seu avô, mulata, forte, grande e doce. Era o ano 2000.

11.22.2005

GRAVAÇÃO TELEFÔNICA ANUNCIA

Há coisa que se ver por aí. Por aqui também. Florianópolis às vezes revela um por do sol que vou te contar. Muito interessante se ter o mar o tempo todo à volta. Aí muda-se para Minas Gerais bem no alto e o clima é o mais que perfeito, da temperatura ideal, pressão atmosférica baixa forçando a nossa pra cima, nada que um chope na pressão não atenue. Quem quiser que casse meu registro no Conselho de Medicina, e cassará o que jamais tive. Melhor que me prendam como charlatã, já vou sem defesa, para Leblon 1. Que fica no Bracarense. Melhor no sábado à tarde, mas pode ser na sexta à noite, não me importo. Desde que depois de uma rápida passada no beco da sardinha, na Rua Miguel Couto.

Há coisa que se ler por aí. Melhor deixar as novidades pra outro dia; se prescrevessem Rubem Braga e Manuel Bandeira pros dementes que posam de salvadores da raça da pátria do mundo pondo vísceras alheias à disposição de tiros explosões torres, haveria rejeição imediata de órgãos, todos os órgãos deles a eles os vomitariam de si, a se tornarem organismos vivos ativos ao invés de passivos órgãos dos abutres que os contém.

Há coisa para se assistir por aí. Canal Brasil / 66. TV por assinatura; não é barato não, mas a estação é boa. Ângela Rorrô entrevista músicos, Selton Mello, gente de cinema, Domingos de Oliveira, mulheres interessantes, Paulo César Pereio, quem há de interessante, Paulo Betti, atores e atrizes em início de já vitoriosa carreira. O diretor da programação se chama Paulo Mendonça, tenho um amigo que teve um amigo de infância com esse nome; ao terceiro sinal, grave sua mensagem. Passam filmes nacionais também, é essa a função primeira da estação; Chico Dias, a quem o amigo a quem me referi teve o prazer de conhecer pessoalmente faz um tempão, apresenta Cone Sul, com cinema latino-americano de nos fazer convidar o cachorro a assistir conosco depois de ter ido dormir quem estava com a gente e antes que começasse o filme, porque a tv do quarto estava aberta.

Não tem havido muito o que se ouvir, pelo menos cuja sintonia seja conhecida por gravações desavisadas como essa, que vem aqui propor o que se veja assista leia fora dessa mesmice constante onipresente ultimamente.

A você que me ouve, atenção: só dois descobriram o significado da palavra Lirismo – classificado pelas agências internacionais como investimento de altíssimo risco. Lirismo vive à beira da pieguice, mal maior que a breguice e mesmo a chatice, menor apenas que a imensafadeza. Manuel Bandeira e Rubem Braga souberam o que significa Lirismo, tentaram ensinar e ninguém aprendeu. Provavelmente ninguém aprenderá.

Mas há o que se ver e ler e assistir.

Ouvir é que anda um pouco difícil.

Ou foi engano?

Grave sua mensagem, por favor.

11.18.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E CINCO –

Adivinhar o futuro
ro
tu
fu
Será obra de análise

De
ca
da

De
Todas as possibilidades todas as possibilidades todas as possibilidades
Do

2°.

Este poema concreto de Olga Cristina, irmã do compositor Ricardo dos Outros (ou Ricardo III), publicado em 1972 (ano de sua morte, aos trinta e dois anos), foi minuciosamente examinado em 2002 por alguns dos mesmos patrocinadores da pesquisa – ou pseudo-pesquisa – que desenvolveria Ricardo V, acerca de perspectivas de revoluções na mentalidade brasileira, com conseqüências importantes no exercício da política no país, como afinal acabou ocorrendo, a partir de 2017.

Adivinhos nunca foram – nem serão – novidade. Ao longo da história, suas adivinhações sempre ficam em segundo plano em relação à expectativa que costumam causar. Previsões econômicas, muito em voga nos últimos trinta anos do Século XX e na primeira década do XXI, sempre se voltaram a platéias acostumadas a questionar e depurar o que lhes era dito; o problema é que eram veiculadas na televisão de então, para um público acostumado a questionar e duvidar sem a menor chance de questionar – o que gerou frustrações consideravelmente coletivas.

O que espantou aos patrocinadores de, primeiramente, Rita e, depois, seu marido, Ricardo Coração dos Outros V, ainda em 2002, quando os dois mal haviam chegado a Minaçu, para as pesquisas de Rita sobre a tribo Avá Canoeiro, então com seis representantes a caminho certo da extinção, foi o fato de que aquele poema, escrito havia trinta anos por uma tia-avó de Ricardo V, que falava de adivinhação, tivesse adivinhado (!) o processo de previsão – ou seja: um poema que falava da adivinhação adivinhara... a adivinhação.

Naquele começo deste Século XXI havia uma associação entre universidades americanas, francesas, italianas e alemãs especificamente para estudar o que se convencionou chamar de “A hipótese Deus”. Apenas para efeito de análise crítica, científica, os acadêmicos envolvidos na pesquisa partiram da premissa da existência de Deus. E questionaram-se:

- Por que Ele, que tudo sabe antecipadamente, não imprime profunda mudança de rumo nas coisas, sejam elas extra-terrestres, espaciais, próprias do Universo, ou as mais comezinhas, terrenas, às vezes supostas como grandes causas, mas que sempre costumam resultar em grandes ou, raramente, pequenos conflitos? Evitar catástrofes, pestes, fomes intermináveis, cobiças altamente predatórias do resto dos demais, porque não, se havia o dom da premonição, adivinhação, predestinação, e esse dom era um dom exclusivo de Deus?

Sem conseguir responder a essa questão, os “scholars” pesquisaram como poderia ser o processo adivinhatório ou premonitório dos fenômenos naturais, principalmente os humanos. Tomando uma hipotética vida humana como elemento de ensaio, aquele grupo de estudiosos da América e Europa concluíram que, se fossem conhecidas as características daquela vida - seu passado, hábitos, contatos, aspirações, amores, frustrações, limitações, anseios - e se a cada nova decisão que esse indivíduo tivesse que tomar fossem analisadas todas as suas possibilidades, várias previsões poderiam ser feitas – mas finitas; se for verdade que se tenham esgotado todas as possíveis opções para a decisão a ser feita por ele. Um processo de refinamento contínuo de cada hipótese do conjunto finito de hipóteses identificado e delimitado acabaria por reduzi-lo, até que se descobrisse – adivinhasse! - exatamente a decisão que a pessoa viria a tomar. Entretanto, seria necessário que se criassem softwares poderosos de levantamento e depuração das hipóteses de decisão, de modo que sua antecipação pudesse realmente acontecer, isto é, antes, evidentemente, que ela fosse tomada. Algo como costumam fazer os jogadores de xadrez, detetives particulares, centrais de inteligência das nações mais poderosas do mundo ou amantes que se supõem traídos – mas em velocidade muito maior, a ponto de que fosse possível modificar o próximo passo, seja a favor da pessoa que tem a indecisão à sua frente, seja daqueles que se beneficiarem da manipulação do destino alheio. Assim supuseram aqueles pesquisadores de mais de quinze, quase vinte anos antes deste 2020.

Por que Deus não faz isso, não interfere no destino dos homens, ou se o faz é de forma incompreensível a eles, os scholars não conseguiram responder; mas o desenvolvimento da informática e das comunicações é por demais veloz, dotando a ciência humana perfeitamente capaz de interferir na vida - na própria ou alheia, como se lhe aprouver, a depender do quanto se detenha de dinheiro e / ou poder. Talvez isso faça a diferença entre a divindade e a humanidade; mera especulação que constou da conclusão dos estudos daquele grupo de pesquisadores do início do Século XXI. Mas o poema de Olga Cristina persistia em intrigá-los; e era só um poema.

11.15.2005

MEUS CINQÜENTA ANOS

Quando foi a vez de Manuel Bandeira, ele disse ter feito cinqüentanos; mas era o Manuel Bandeira. Já Rubem Braga disse mais ou menos assim (não acho o livro dele com a crônica, porque o marceneiro não aprontou algumas prateleiras – pôr a culpa no marceneiro, só quem tem cinqüenta anos é que pode (e eu ainda não tenho)): “Cheguei à metade da minha vida sabendo que a segunda metade será menor que a primeira”.

Pois nem essa certeza eu tenho. Vivo no século XXI, os americanos até na lua já estiveram, provavelmente inventarão a pílula dos cem anos. Bem verdade que terríveis furacões mostraram algumas das suas deficiências, principalmente sociais. Quem sabe na África ou aqui mesmo essa pílula já não foi inventada e só eu não estou sabendo?

Pelo menos uma coisa é certa: a disputa entre a devastação e a descoloração permanece acirrada. Refiro-me ao couro cabeludo, claro; no meu caso, por enquanto está dando empate, mais ou menos de 5 a 5. Fios.

Não conheço Europa nem França, mas a Bahia, sim. Nasci no Leme e freqüentei Portela, Mangueira, Salgueiro e Vila Isabel. Conheço ainda Goiás, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e do Norte, Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Pará, Maranhão, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais. Pra que mais? Ouvi jazz em Nova Iorque, Chicago e Nova Orleans – eu conheci Nova Orleans! Estive em Dallas, Houston e uma outra cidade texana, onde comi o pior churrasco do mundo; Miami, Orlando, fui à Disney! Hartford, Connecticut. Em Saratoga Springs, na companhia de dois Carlos, comi sopa em prato de pão, e fomos os primeiros e últimos a deixar o bar daquela cidade, que parece de brinquedo, em uma tarde-noite de Domingo. Em Denver, conheci mansões de brancos e casarios de negros e um bode montanhês. No dia seguinte, um motorista de táxi, da Somália, me disse “Yesterday, we were completely East”. E eu completei: “Today, we are completely lost.”

E cheguei até aqui. Nascido no Rio de Janeiro, morando há cinco anos em Florianópolis, sim senhor, sim senhora. Casado, pai de uma filha – uma só filha – de onze anos. Aos quarenta e nove! O que eu poderia querer mais? Pois, por mais que eu me esforce em me esmerar na minha particular chatice, onde vou há gente generosa, que vira minha amiga.

Mais: saúde e doença, alegria e tristeza, riqueza e pobreza, são coisas ditas pelo Padre e que acontecem a qualquer momento, nada têm a ver com idade alguma. As mulheres continuam lindas, minha mulher ainda gosta de mim; sou um homem de sorte. Um homem de sorte, que nasceu em um país cuja probabilidade de se viver muito mal é muito grande – e eu, homem de sorte, vivo bem. Muito bem.

Muito bem. No próximo dia dezessete, vou fazer cinqüenta anos.

Preciso interromper agora, porque aqui, na praia, alguém me pergunta se tenho as horas. Não - eu respondo -, não as tenho, não. E nem as quero.

mariobenevides.blogspot.com 15 de novembro de 2005.

11.12.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance inédito de Mario Benevides
- CAPÍTULO TRINTA E QUATRO -

Manuel Bandeira, estrela da vida inteira, minha amada quer ficar solteira. Não me olha nem de baixo pra cima nem de cima pra baixo, me sinto objeto de puro esculacho, menos pra sapato que pra capacho. Meu caro modernista, me dai uma pista, me aconselhai. Parei na contramão, não tenho dinheiro não, estou mais pra chuchu que pra camarão. Farei das tripas coração, dizei a mim, meu irmão, se vou-me embora pra Passárgada ou se minha vida é beco, sem solução.
Com essa letra, do seu samba "Minha estrela quer ficar solteira", que fez muito sucesso nos anos cinqüenta do século passado, Ricardo Coração dos Outros III tocou o coração do grande poeta pernambucano, que o quis conhecer. Marcaram encontro em Petrópolis, a cidade imperial na região serrana do Rio. Ricardo VI encontrou, no fundo de uma gaveta, uma carta de seu bisavô paterno ao poeta que tantos anos viveu na Lapa, no Rio, que diz assim:
Meu caro Poeta, com P maiúsculo,
Que presente a vida me deu. Esse negócio de inspiração é privilégio de gente como você, Gente com G maiúsculo, de Generosidade. Meu g é minúsculo, de modesta gratidão. Inspiração, no meu caso, é coisa que o vento carrega com ele e o primeiro e mais rápido vai lá e pega e põe numa canção. Foi assim com meu samba, no qual eu só queria mesmo era homenagear você, meu nobre Poeta, sua elegância e fidalguia. Que muitas gerações ainda possam ter o privilégio do seu convívio e do convívio e afeto pela raça humana que guardam seus inspirados versos. Quanto aos meus sambas, chorinhos e marchinhas, ora, são mais passageiros que o próprio vento que os trouxe para mim, assim, de graça, a mim, que nem os mereço.
Houve pelo menos mais um encontro dos dois em Petrópolis, dessa vez na presença ainda de Vinícius de Moraes, pouco antes de acontecer sua mais famosa parceria, com Tom Jobim. Foi desse encontro, registrado em carta de Ricardo III a um amigo seu, Alfredo das Neves, que nasceu a marchinha de carnaval "A marcha do operário que diz não", censurada, no final dos anos sessenta do mesmo século XX, que dizia assim:
O operário em construção disse não, não, não. Hoje não vou trabalhar, não, não, não. O meu pai morreu na guerra, minha mãe ficou na serra, não, não, não. Hoje eu vou ficar em casa, do franguinho, quero a asa, não, não, não. Eu não sou nenhum malandro, vagabundo ou preguiçoso, não, não, não. Eu trabalho pra caramba, tenho orgulho do meu samba, não, não, não. Mas eu vou ficar em casa, do franguinho, quero a asa, não, não, não. O operário em construção disse não, não, não. Hoje não vou trabalhar, não, não, não. E aí o operário, que não era salafrário, perdeu o salário e foi chamado de otário, não, não, não.
A marchinha terminava em breque – isto é, uma frase dita quase sem melodia:
Com saudades do Bandeira, o operário do Vinícius foi preso e morto sem vícios - tal e qual sua construção.
Por causa da marchinha censurada, e por conselho de amigos, foi para Petrópolis que Ricardo Coração dos Outros III fugiu, disfarçado de caseiro em casa de veraneio de rica família carioca, que resolveu protegê-lo por gostar muito dele e suas canções. Em uma outra carta a Alfredo das Neves, Ricardo III conta assim:
Querido Amigo,
Gosto desse friozinho e também de fazer o que eu faço por aqui. Arrumo o telhado da casa principal, coloco a antena no lugar, deixo o jardim arrumadinho e carregado de hortênsias, uma graça. Já chamo a amada de patroa, e ela está-se saindo muito melhor que a encomenda: faz uma galinha ao molho pardo que deixou Vinícius dormindo na poltrona depois do almoço com cara de anjo. Meus patrões, que são grandes amigos meus, deixaram o poetinha dormindo até o quanto ele quis. O poetinha, ao acordar, abriu um sorriso maroto, levantou-se e perguntou: "Alguém viu meu uisquinho?". Não falo nada do que fazia antes, pois, nesses tempos, é melhor ficar quieto, cumprimentar os vizinhos, trabalhar modestamente e, principalmente, não fazer barulho.
Saudades,
João.
(Claro: naqueles dias, Ricardo não podia assinar outro nome, que não fosse João.)
De um telefone público, ainda que com medo, foi que Ricardo III confessou:
- Mais difícil que usar barba e cabelo postiços, mais duro ainda que perceber minha mulher tristinha, chorando baixinho, é nem poder chegar perto do meu violão, que ficou aí, no Rio, e essa foi a condição dos meus amigos e patrões para me proteger nesse disfarce de caseiro. E não é que eles não gostem dos meus sambas, não, é que eles se preocupam tanto comigo e gostam tanto de mim, que me disseram assim: "João, você é tão bom violonista e compositor, tão conhecido, que se você pegar e tocar seu violão, toda a vizinhança vai logo saber quem é você, e aí..." E aí, meu amigo Alfredo das Neves, em vez de morrer o Neves, quem vai morrer sou eu.
Aquela fase seria encerrada e narrada em outra letra sua, da canção "João caseiro", que diz assim:
João gosta de ficar em casa, de trabalhar em casa, de não sair e falar com ninguém. Melhor ser João caseiro que João festeiro, que João Ninguém. Outros farão a história mas sem ficar na memória de ninguém. No entanto, João é modesto e reconhece: quem faz a história não é o famoso nem o festeiro nem o caseiro; quem faz a história, a verdadeira história, é João Ninguém.

11.08.2005

DO ATO DE ESCREVER

(SEM DESFAZER DE FERNANDO SABINO OU VINICIUS, DE SUAS TESES E CONFIÇÕES DA LUTA DO EXERCÍCIO DA CRÔNICA)

Sua dificuldade pode estar no formato do caderno, na combinação da sua postura com o ângulo que sua caneta faz e projeta na folha pautada, com a margem à margem, vermelha, delimitando as regiões do seu texto e sua vizinhança hostil, de espirais e perfis desconexos, alienados e descontentes com sua escrita - a história que você vai registrando pauta a pauta, à direita da margem vermelha. Virando a página, a direita vira esquerda e a esquerda volta a ser direita.

A letra da união – ê, é, e – varia na pronúncia e no desenho. Є, Е, Σ. Escolha o seu “e”, seu mais, sua letra de união, mas escolha: indecisão é perda de tempo.

Seu teclado deveria ter o CAPS LOCK mais distante do A, o Alt Gr longe da barra de espaço; ou suas mãos poderiam ter não mais que cinco dedos cada uma. Lembre-se das máquinas de escrever ou, se você não chegou a conviver com elas, conviva – e verá que apagar, nas Olympia alemãs, era mais difícil. Principalmente da memória, que só começou a existir depois delas.

Apóie seus braços nos braços da cadeira, porque, senão, cada adeus lhe causará inflamação no epicôndilo. Traduzindo: dor de cotovelo.

As costas, as tenha protegidas, quer por montanhas, quer por duzentas milhas náuticas e oceânicas. Mas livres, sempre. Apoiadas, sempre. E amigas.

A testa, melhor mantê-la ligeiramente franzida, desde que sobre uma perspectiva de sorriso ou indignação.

Usando nem caneta nem teclado, bom e velho e apontado lápis ou namorada lapiseira zero-cinco ou zero-sete, perceba ser a grafite a mais que capaz de reproduzir as impurezas do branco que Drummond transformou em puras palavras. A área cinzenta tanto poderá ser cérebro quanto indefinição – e guerra. Assim, não se curve demais sobre as sombras, tampouco debaixo delas.

Escrever nem é inspiração nem transpiração.

Escrever é postura.

O resto é instrumento.

11.04.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E TRÊS –

Depois da assim chamada reforma eleitoral e partidária de 2007, dizem muitos que, nas eleições de 2010, a convulsão social foi determinante para a vitória do PIB – Partido Idealista Brasileiro -, formado por vários ex-integrantes tanto do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) como do PT (Partido dos Trabalhadores). Se em 2002 Anthony Garotinho tivesse chegado ao segundo turno contra Lula no lugar de José Serra, era tido como certo que o PSDB apoiaria o PT no segundo turno da eleição presidencial daquele ano; e a passagem do cargo de FHC para Lula, naquele ano, foi tida como pacífica e até mesmo elegante. Portanto, não foi grande surpresa quando a rixa de anos entre os dois partidos terminasse por resultar na formação de um terceiro e sem que os originais que lhe deram origem se extinguissem e mesmo deixassem de apoiar o PIB - como sucedeu. Tampouco foi surpreendente que as acusações de corrupção havidas principalmente no período em que ambos se alternaram nas posições de situação e oposição de parte a parte fossem esquecidas, ainda que lembradas pelos outros partidos, de oposição à coligação PIB-PT-PSDB de 2010 – mesmo porque tinham também contra si outras tantas suspeitas.

Outro fato é que as cassações de alguns mandatos em 2005, ainda que em número inferior ao que gostaria grande parte da população, tiraram de cena alguns dos mais que suspeitos de uso da caixa dois e / ou suborno, muito embora algumas das renúncias tenham trazido de volta ao Parlamento, em 2006, alguns não só dos suspeitos como até dos comprovadamente culpados, tenha sido por desinformação ou por uma espécie de fé inabalável que pareciam merecer dos seus eleitores.

“Contra a convulsão, a união” – esse foi o slogan da chapa vitoriosa em 2010.

O artigo 2° do Capítulo II do estatuto do PSDB (“Dos Objetivos e dos Princípios Programáticos”) definia: “O PSDB tem como base a democracia interna e a disciplina e, como objetivos programáticos, a consolidação dos direitos individuais e coletivos; o exercício democrático participativo e representativo; a soberania nacional; a construção de uma ordem social justa e garantida pela igualdade de oportunidades; o respeito ao pluralismo de idéias, culturas e etnias; e a realização do desenvolvimento de forma harmoniosa, com a prevalência do trabalho sobre o capital, buscando a distribuição equilibrada da riqueza nacional entre todas as regiões e classes sociais.”

Já o do PT, em seu capítulo I (“DA DURAÇÃO, SEDE E FORO), artigo 1°, estabelecia: “O Partido dos Trabalhadores (PT) é uma associação voluntária de cidadãs e cidadãos que se propõem a lutar por democracia, pluralidade, solidariedade, transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas, jurídicas e culturais, destinadas a eliminar a exploração, a dominação, a opressão, a desigualdade, a injustiça e a miséria, com o objetivo de construir o socialismo democrático.”

O programa de governo da coligação liderada pelo PIB, a grande vitoriosa das eleições de 2010, continha propostas diferentes mas absolutamente convergentes, não sendo difícil identificar de que vertentes partiram suas respectivas propostas - desde que se conheça um pouco da história dos mandatos e da prática política, como situação e oposição, dos partidos que deram origem ao PIB e a ele se aliaram em 2010, PSDB e PT, que propriamente seus estatutos. Por exemplo:

“AMPLIAÇÃO DE MERCADOS – favelas e periferias constituem-se excelentes oportunidades de rápida ampliação de mercados de diferentes produtos e serviços, mas muito especialmente para concessionárias de água e esgoto. Sob a liderança do Governo, Estado, empresas privadas e sociedade em geral deverão fomentar a capacitação para o trabalho e o empreendedorismo dos habitantes de favelas e periferias para que estes possam se tornar consumidores, pagando suas contas, eliminando conexões irregulares e ilegais (“gatos”), com ganhos de escala e conseqüentemente diminuição da tarifa, eliminação de perdas, menores gastos públicos com saúde e menores tensões sociais. Para tanto, é preciso vencer o tráfico de drogas, visto ser uma atividade cujas oferta e demanda são contrárias ao interesse da maioria.”

“INCLUSÃO SOCIAL – é preciso desmarginalizar o favelado e o habitante das periferias das grandes cidades. Para isso, é necessário levar as redes de água e esgoto às suas casas, permitindo a eles alcançar o direito constitucional da cidadania e da saúde, o que poderá ser conquistado criando-se para eles oportunidades de justa e lícita auto-geração de renda, através do emprego, da formação de cooperativas e de pequenas empresas, afastando a criança, o adolescente e o adulto da marginalidade, do tráfico e do consumo de drogas.”

Ricardo V percebeu a afinidade daquelas idéias com as suas, contidas em seu best-seller “A Revolução Brasileira de 2017”, publicado um ano antes da vitória da coligação e seu programa de governo. Por isso, filiou-se ao PIB e passou a freqüentar algumas das suas reuniões e convenções, em Brasília, em Goiânia, no Rio e em São Paulo, além das havidas em Minaçu, muito raras e pouco freqüentadas, diga-se de passagem. Ricardo V sofreu forte resistência à sua filiação, além de feroz crítica por parte de escritores, intelectuais de plantão, cientistas políticos e outros setores. Com o sucesso do livro, já alcançara autonomia financeira para não depender da universidade que o mantivera por um bom tempo, à guisa de que desenvolvesse suas teses. Queria conhecer a política profissional para melhor chegar ao seu oposto: a sua sonhada política amadora.