12.23.2007

CERVANTES, O BAR, OU LAPAS-BRASIS

No lançamento do meu romance “A revolução do silêncio”, na Livraria Argumento do Leblon, Rio, 20 deste dezembro, ganhei de presente a visita e um livro de autoria do poeta Ronaldo Werneck, carinhosamente autografado por ele. Na orelha, Geraldo Carneiro o chama de poeta do bas fond. Inevitavelmente, me lembrei de uma canção que fiz há uns vinte anos (letra e música), a qual chamei de “Cervantes, o bar” e, alguns anos depois, inseri na peça “Lapas Brasis”, que escrevi a quatro mãos com Carlos Sérgio Bittencourt. Reproduzo a seguir a letra da canção, deixando meu abraço para alguns poetas amigos meus, especialmente o Ronaldo, pela gentileza, pela re-inspiração:

À porta, três atores
Do diretor, dizendo horrores
Balcão, sanduíche, salpicão,
Schmidt, schinit, uisque, Nietzche,
Fredericos no balcão

Olhando no fundo do copo
Olhando no fundo do copo

Na esquina, moças-vagalumes
Meninas-bolsas com perfumes
Salão, cerveja, salsichão
Magros e godos, visi-gordos
Sincretismos no salão

Olhando no fundo do copo
Olhando no fundo do copo

- Que o mundo morra sem saber que eu fui poeta
- Que o mundo morra sem saber que eu fui atriz

Todas as tardes, quarto andar
Faço um doente caminhar
Depois, de noite, eu vou dançar
O funk da galeria
C’os negros da galeria
Na boate, finjo alegria
C’os brancos sem companhia

- Que o mundo morra sem saber que eu fui poeta
- Que o mundo morra sem saber que eu fui atriz

E de manhã, quantos amores
Quantas saudades de manhã
Jornal, cigarro, macarrão,
Ministro arisco, tão malquisto
Desligo a televisão.

Que o mundo morra sem saber
Que eu fui poeta olhando
Eu
Olhando no fundo do copo
Eu...

12.13.2007

O QUE FICARÁ DE NÓS

(De uma triste constatação de Rosamaria)

Ficarão reportagens sobre gente que a gente detesta
Corruptos, bandidos, prepotentes, mentirosos
Catástrofes
Muito futebol
Alguma coisa parecida com música
Mulheres nuas
Aberrações
Big Brother -

Mas verdadeiramente de nós
Não ficará nada.

Nossas fotos
Nossos textos
Nossas mensagens cifradas
- TXT, ABÇ, BJS -
Tudo será lixo digital.

HDs, será que alguém guarda os seus?,
Disquetes já são coisa do passado
CDs também já são
Nada ficará.

Nem no provedor; nem na CIA.

Nem as florestas
Com as quais nos preocupamos tanto
E por isso deixamos de imprimir
Nossas fotos
Nossos textos
Ficarão: todas serão torradas
Para nos empanturrarmos de carne bovina
Alface e etanol
Enquanto muitos de nós continuarão passando fome
Alguns poucos, andando a pé.

Ficarão fotos esmaecidas
Cartas amareladas
Dos nossos avós.

Nada de nós.

Nada.

11.16.2007

HOJE FOI ASSIM:

Pode não ter feito sol onde você mora e você não foi à praia nem à cachoeira, mas dormiu até o sono acabar. Não tocou o despertador. Bem verdade que o vizinho resolveu recolocar o telhado, arrancado pelo vendaval da noite passada, e você acordou antes e diferente do que gostaria; mas teve um dia inteiro para fazer o que bem quis, a ponto de se esquecer de que, para tudo, há uma moeda – redundante dizer “de troca”.

Você ficou na moita. O tiroteio vai ficar para amanhã – ou, se você não for banqueiro nem bancário, comerciante ou comerciário, para segunda-feira.

Você ficou em casa. Aparou a grama, fez ginástica, amor, alongamento, consertou o encanamento, pegou um filme, uma onda, namorou, telefonou, escreveu, se esqueceu.

Você foi ao cabeleireiro, fez as unhas, pintou-se, acomodou-se, foi ao cinema, inclusive e principalmente se trabalha na bilheteria.

Viu tv. E viu tv. E desligou a tv.

É que hoje é quinta-feira, você mora no Brasil e – em 1889 – um marechal de pijamas foi informado de ter ele mesmo proclamado a República. Um imperador foi embora com sua coroa e sua família e você não compreende porque, afinal, isso, essa partida, causa em você essa tristezazinha. Simpático, aquele sujeito, de barba branca, andam falando muito bem, dele. Do marechal, sabe que nem tanto? Da República, também não, da Monarquia, também não, da Ditadura e da Ditadura, também não.

Fato é que você acordou quase no mesmo momento em que seu sono acordou e virou dia e você se deu conta de que a vida não deve mesmo ser levada muito a sério não. Porque aqui é o Brasil. Mesmo essa tristezazinha - com vários outros maiores motivos que a partida do velhinho de barba branca - não é capaz de desfazer a certeza de que a vida não pode ser levada a sério e a de que o lugar da sua celebração é aqui: o Brasil. E a do privilégio que isso significa.

O que não significa que você esteja realmente convencido de que devesse ter deixado de reclamar com a polícia que seu vizinho desrespeitou a Lei, martelando o telhado neste feriado nacional, interrompendo seu sono de feriado, sono de feriado nacional.

10.27.2007

A MULHER NUA QUE EU VI

Ela se apresentou de repente
Imensa de beleza e luz
Saí de casa, voltei
Ela estava mais contida.
Continuou me fitando de longe
Nua
Depois cobriu-se de panos
Me dizendo,
Calma, coração,
A vida é um dia de cada vez.
Era uma banal,
Com uma bandeira fincada no colo
Meramente material.
Banal é quem pensa
Que a lua é somente uma banal
Com uma bandeira fincada no colo
Somente
Passivamente
Refletindo a luz do sol.

Ela se apresentou de repente
Imensa em sua beleza e luminosidade
Saí de casa, voltei
Ela estava mais contida.

Florianópolis, tarde-noite de sexta-feira, 26/10/2007.

10.24.2007

QUE TÍTULO VOCÊ DARIA?

Uma canção será berço do meu verso. Uma prosa será verso do entendimento. Meu idealismo será dito sem palavras. Rasgos imensos desses desde sempre feitos por mãos e ferramentas calarão vozes milionárias e as parasitas. Rasgos deixarão de ser feridas, deles brotarão botos, peixes, baleias, árvores as mais frondosas, crias - ricas crias. Livros. Será o dia da minha morte, a noite do meu dia. Minha mulher dirá, Que triste!

Eu direi:

- Não, mulher.

Poesia.

BARATAS E LAGARTOS

Houve uma noite em que minha filha estava com amigas lá em casa. Enquanto eu já estava dormindo, todas se preparavam para dormir. De repente, gritos, agudos e carregados de decibéis, muito mais que os usuais dentre as mulheres de 13 a 130 anos, mais ainda que os aceitos pela Organização Mundial de Saúde, Organização das Nações Unidas e a Organização do Tratado do Atlântico Norte - todas organizadas demais para aceitar tudo que não sejam guerras. E não era uma guerra e os gritos não eram nada organizados: eram histéricos. Sonâmbulo como de meu direito, levantei-me da cama preparado para um sermão. Não sou bom de sermões, nunca quis ser padre nem juiz, nem mesmo de futebol; mas fui lá.

Claro: era uma barata – e voadora.

Já morei sozinho e deixei uma barata dormir na minha casa enquanto me dirigi ao hotel mais próximo, para não incomodá-la. No mesmo período, houve uma que chegou pela janela, de asa delta e prancha de surfe debaixo da asa; aniquilei-a a doses cavalares de spray venenoso e, resoluto, dirigi-me, primeiro, ao necrotério, para me certificar da morte da invasora e, depois, ao hospital, para me certificar da minha própria.

Ocorre que pai de adolescente é outra pessoa; cheguei a pensar em mudar de nome, Alfredo, Pessoa, Eustáquio; mas não: uma vez Mario, sempre Mario (e não me perguntem “Que Mario”, por favor). Adentrei o quarto da minha filha munido de vassoura – como já disse, era outra voadora, Florianópolis e Rio têm tudo a ver, cara, impressionante – e matei-a. Engano: caída ao chão, ela ressuscitou – e foi batizada, por uma das presentes, de Barata Jesus.

Heresias à parte, eis que uma amiga advogada me conta de seu embate com um lagarto, no morro atrás do quintal da sua casa. Florianópolis e Rio têm tudo a ver, cara, é impressionante, praia, morro, só muda de assaltante pra lagarto (pelo menos, por enquanto). Por um lagarto! Aquele ser pré-histórico, jurássico, inspirador do dragão, com suas papas laterais, cor de lagarto quando ataca, língua de sogra, digo, cobra, soltando fogo pelas ventas. Me disse a amiga – minha, não do lagarto – que ele, o lagarto, foi para um lado e, ela, para o outro. A troca de olhares foi tão fulminante que acarretou uma de pernas, e minha amiga rolou morro abaixo, ralando-se como se fosse criança, uma alegria só – para não dizer o contrário, claro. Escoriações na perna, nos braços, no corpo todo – e o lagarto, tranqüilo, na dele, passeando pelo morro da casa dela, até agora. “Lá em casa, a gente não mata nada”. Pois, na minha, eu mato. Desde sempre. Aula, por exemplo; quem nunca matou uma aulinha na vida, hein?

Minha filha não mata aula.

Alfredo, Pessoa, Eustáquio...
Vou pensar.

10.04.2007

CRÔNICA SENTIMENTAL

Na TV
Reportagem
Arquivo N
Pelé.
Copa de 70
Meus pais vivos.
Meu pai assistia comigo Brasil contra Inglaterra
E minha mãe também.
Este o inusitado:
Minha mãe também,
Numa poltrona perto da TV,
Chutando,
Soltando a perna e o pé no tapete da sala,
Querendo acertar o gol que não saía.
Tostão-Pélé-Jairzinho,
Gol do Brasil.
Antes, uma cabeçada do Pelé nas profundezas do Inferno
E Gordon Banks pegou.
Eu tinha 14 para 15 anos.
Meu irmão por perto.
O melhor jogo de futebol a que assisti.
Jamais assistirei a outro tão bom.

Nem minha mãe.

***

Peter O'Toole,
Venus,
A morte chegando,
A delicadeza cúmplice
Do desejo explícito
Impudico
Depravado
Defasado
Anos de diferença
Filme imperdível.

Ela: "Você acredita em alguma coisa?"
Ele: "No prazer.".

***

Pelé a Lucas Mendes
(cheio de cabelos pretos):
No Brasil, o racismo não é racial. É social.
Preto rico entra em qualquer lugar.
Branco pobre não entra em lugar nenhum.
Lucas Mendes: Mohamed Ali,
Há quem cobre de você uma postura equivalente,
Defendendo o negro no Brasil.
Pelé: - Eles devem ter suas razões.
Cassius Clay teve uma infância discriminada,
Preto de um lado, branco de outro.
Eu, não. Vivi minha infância no meio de pretos e brancos.
Minha primeira namorada foi uma japonesa.

Julguem Pelé
Pelos seus atos,
Seu futebol,
Suas palavras.

Julguem Peter O'Toole
Mais ainda, a personagem vivida por ele
Em Venus.

Julguem: sejam juízes.

Sabendo que eles
Continuarão o jogo.

Eles fazem.
Eles são.

O jogo.

9.14.2007

ÀS MÚSICAS E AOS MUSICAIS

Acabo de assistir a um show de Ney Matogrosso e Pedro Luiz e a Parede, com direito a alguns músicos convidados. Na TV. (Canal Brasil, 66, da Net. De vez em quando, Ariano Suassuna e sua amizade com Chico Science.) Percussionistas, um violonista de outro planeta, um guitarrista, um baixista, instrumentistas de sopro, todos verdadeira origem do big-bang são a Parede. Um deles corre o palco devagarzinho, Pedro Luiz toca uma guitarra cortadinha na ponta, uma verdadeira atriz, que só se afina escondida pelo braço da guitarra, seu camarim. Ney Matogrosso e um figurino que não pode ser pirata, porque legítimo, como seu gingado único, sua voz de dezesseis anos, seu dom de descobrir maravilhas, Rafaéis Rabellos, Pedros Luizes e suas Paredes e por aí vai. No intervalo do programa, Zeca Baleiro é a próxima atração.

No rádio do carro, ouço assim: “Tranqüila / eu levo a vida tranqüila / não tenho medo do mundo / não tenho medo do mundo / a inveja que me passe / o olho grande que me passe...” – não consegui saber quem era, na hora; depois, na loja, me disseram Thalma... Thalma de quê? Não baixo músicas da Internet, quero o CD com capa, aquela de plástico, que quebra logo da primeira vez que a gente vai tirar ou guardar o disco. Não tem. Na loja.

Nem só de Chega de Saudade vivemos, como se vê. Ou se ouve. Nem só de Beatles – aliás, ouvir Sergeant Peppers fazendo quarenta anos e prestar atenção em todos seus sons e letras é nascer de novo. Rita Lee cantando I want to hold your hand com uma sanfoninha ao fundo, que bonitinho, que contrário do Renan Calheiros, da Ideli Salvatti, do falso argumento em-cima-do-muro do Mercadante (ou será Mercante?).

Pedro Luiz, Parede e Ney Matogrosso cantam de tudo, de Faca Amolada, passando por Martinho da Vila, chegando à maravilha “O mundo tá muito doente, o homem que mata, o homem que mente”. (Impossível não perceber que a mistura de ritmo brasileiro com guitarra, ora, ora, nasceu foi mesmo com a Tropicália. Ariano Suassuna e sua amizade com Chico Science, também. Nem só de Ministério vive Gilberto Gil nem só de fala empolada ele e Caetano Veloso vivem.)

Jack Johnson. Bom também o anúncio do cara que teve as roupas roubadas por uma garota que usava sandálias havaianas (“Quer uma aguinha coma açúcar?”). O que é que isso tem de música? As garotas – é claro. E o humor – que é musical.

Assim deveriam ser homens e mulheres: eles, musicais; elas, músicas.

O que acaba de acontecer no Senado nada tem nem de homem, nem de mulher.

Por isso é que não temos medo do mundo; durmamos tranqüilos.

9.01.2007

UMA QUESTÃO DE TEMPO

A calçada ou o atropelamento.
O parto interminável ou a cesariana.
As escaras ou a cura.
A janela ou o dia seguinte.
A maca ou o lençol.
O tiro; ou a persuasão.
O insulto e o auto-controle.
O arremeter ou o aterrissar.
O parar na hora certa ou avançar, arriscar, bater. No cruzamento.
Umazinha a mais. Só umazinha. Ou ir embora ou dormir.
Apertar o cinto ou afrouxar a gravata.
Ir de tonta, com. Ou sem. Camisinha.
Remoer uma vingança e alimentar um câncer.
Enfrentar um câncer
Vindo ou não da vingança remoída
Vindo sabe-se lá da pureza
De tão pura que não suporta a si e a si tenta destruir -
Ou se deixar levar.

A morte não é uma questão de tempo.
A morte é escolha.
Apenas nunca somente sua.

8.17.2007

O AEROPORTO NOSSO DE CADA DIA

A INFRAERO informa: cama redonda é boa para quem se movimenta dormindo que nem ponteiro de relógio; no chão do aeroporto, você vira para o lado que quiser e sintoniza na rádio oficial a canção Tô nem aí, tô nem aí.

A INFRAERO informa: seu vôo sairá a qualquer hora ou em edição extraordinária.

A INFRAERO informa: o vencedor da licitação para o trem bala brasileiro foi o modelo AR-15.

A INFRAERO informa: a duplicação do aeroporto de Congonhas duplicará também a marginal Tietê, a marginal Pinheiros, a marginalidade será toda duplicada.

A INFRAERO informa: se acabar a bebida em Cumbica, dirija-se a Viracopos.

A INFRAERO informa: respeito é bom e a gente não gosta.

A INFRAERO informa: não seja comunista, socialista, capitalista nem anarquista: seja um ANAQUISTA, desgraças a Deus.

A INFRAERO informa: o que restava de respeito foi esquecido no Raio X.

A INFRAERO informa: a classe média não sabe o que é tomar banho frio. Nem quente, porque no aeroporto não tem chuveiro.

A INFRAERO informa: Na voz de Tom – desculpem - Nelson Jobim, Dentro de mais umas horas talvez sairemos no Galeão.

A INFRAERO informa: seu vôo está previsto para está previsto para está previsto para...

A INFRAERO informa: é proibido deixar este aeroporto.

7.06.2007

Meu Rio

O Rio que passa na TV é o da bala perdida, do PAN, da bunda, do Cristo Redentor, da Baía de Guanabara, do Pão de Açúcar, da Garota de Ipanema. É Copacabana. É o Funk, o Rap, o Tom Jobim, o Chico Buarque, o Cartola. É a Ana Maria Botafogo de atriz de novela. É um Rio de grã-finos, de novos ricos, de Barra da Tijuca, de pobretões, de uma mulher chorando a filha morta quando ela ia para a escola que fica na favela ou então no sinal, uma bala achada e não perdida, numa cabeça adolescente.

Um dia vou dizer do meu Brasil. Hoje eu quero é dizer do meu Rio, que não é o da TV. Não é o do Vinicius de Moraes nem o do Carlinhos Niemeyer, do Paulo ou do Oscar Niemeyer. Meu Rio é tão pessoal que não é nem Leila Diniz. Não é Fernanda Montenegro nem Banda de Ipanema nem Ponte Rio-Niterói. Não é Zezé Mota, como não é Sérgio Porto nem Nelson Rodrigues. Paulinho da Viola meu Rio não é, do mesmo jeito que não é torcida do Flamengo nem do Botafogo. Nem regata nem camisa de regata. Nem pivete nem garoto lavando o pára-brisa sem a gente pedir, nem sujeito vendendo amendoim de paletó e gravata, nem o rifle apontado para a minha cabeça. Não é Luma de Oliveira, não é Camila Pitanga, não é a sede do Jóquei Clube nem a serra de Petrópolis. A rua do Lavradio fica lá, o beco do Manoel Bandeira é perto, o gasômetro; nada disso é meu Rio.

Porque meu Rio é a cidade onde eu nasci. É um cheiro de peixe misturado com cheiro de asfalto. É um par de pés femininos caminhando à minha frente descalços. É uma areia de praia fazendo um barulhinho que deixou de fazer faz tempo, quando fazia um frio danado às sete da manhã dentro do mar e eu esperando onda pra descer de jacaré para ir pro colégio depois. De noite, uma bola de meia na calçada. Um pedaço de pizza no Beco da Fome, que em tempos que eu não vivi foi o das Garrafas, onde uma nata musical se formou. Lá, só fui capaz de comer pizza e puta. (Graças a Deus e graças às putas.) Meu Rio é meu pai serrando qualquer coisa, minha mãe fazendo sanduíche domingo à noite, uma mulher no prédio em frente trocando a roupa, loura, menos onde ela está sem roupa. Um par de seios e seus bicos. Uma barriga e seu umbigo. Um cão. Um doente que morde minha prancha de isopor e meu pai pergunta a ele, Você gostou? Meu irmão de tênis rasgado no bico; foi tropeção ou porta de elevador?

O câncer da minha mãe é meu Rio. E sua morte. A formatura do meu irmão, o nascimento da minha filha, meus tropeços nos cadarços dos meus sapatos. Escadas de uma casa no Cosme Velho e um sótão na Rua Umari. Bares proibidos, manhãs de dores de cabeça colossais, amigos e sua incomensurável tolerância para com meus vôos sem nave, minhas presenças ausentes. Meus amigos a não me ouvir porque miram uma face, uma bunda, um sorriso, uma possibilidade. Garçom, mais um chope, por favor. Meu primeiro casamento, seu desfecho sem morte, meus namoros. Uma inimaginável Florianópolis. Ou Minaçu. Ou Nova Iorque. São Salvador de El Salvador - ou do Tocantins. Poços de Caldas, Salvador, Bahia.

Minha mulher eterna.

O Rio não passa na televisão e nenhuma cidade passa e nenhuma vida passa. O que passa é o que fica. A cidade onde se nasce. O cheiro, o peixe, o cão, a mulher. A filha, o filho, os filhos. A opção: solidão ou companhia. Deus é a cidade onde se nasce.

6.18.2007

O OUTRO

Nada de teorias psicanalíticas ou filosóficas será abordado aqui. E agora. Porque, agora, o outro é aquele tão popular quanto desconhecido. Aquele que diz tudo, principalmente ditados populares. O popular outro da expressão “É como diz o outro”.

Quem será esse outro, que tanto diz? Vira e mexe e alguém o cita: “É como diz o outro: mais vale um pássaro na mão que um caixa dois voando.”. Geralmente – preste atenção – o outro embaralha ditados, cria novos, um danado de imaginativo – inovador – é esse tal de outro.

Por um tempo acreditou-se que outro era nome próprio: - Prazer; eu sou o Outro. De quê? Ele – que, de tão especial, é o Outro – não responderia; omitiria o sobrenome de família – que é outra família, por ser a família do Outro.

A entrevista com o ser que, de tão espetacular, é Outro, continuaria:

- Outro, o que você diria hoje, hein?

- Sobre o quê?

- Sobre esse – sabe como é, esse que, como diz o outro...

- Outro sou eu.

- Pois é: o que você tem a dizer sobre esse outro, esse aí, que...

Entretanto, lamentamos informar que a identidade do Outro acaba de ser revelada. No interior do Tocantins, existe um indivíduo muito popular, que vamos fingir que se chama Fulano de Tal. Alguém o encontrou e exclamou: - Ah! Então, o senhor é que é o Fulano de Tal! Pois que, para surpresa do alguém citado, Seu Fulano respondeu:

- Eu não sou esse que você está pensando, não: eu sou o outro.

O que dizem é que o espanto do alguém que foi apresentado ao outro - mais famoso até que o tal fulano, o Fulano de Tal -, passou a se apresentar, mais modesto que qualquer outro, da seguinte maneira:

- Muito prazer: Ninguém.

Enfim, para ser ninguém, basta ser alguém. É como diz o outro.

6.04.2007

PAULO JOSÉ, FALCÃO E QUANDO MENOS VALE MAIS: QUANDO?

O ator Paulo José, administrando bem os sobre-movimentos que lhe são exigidos (mal de Parkinson), com a mente e o caráter tão caracteristicamente seus – brilhantes - a lhe saírem pelas palavras e silenciosas e rápidas e fulminantes pausas, com seus jovialíssimos setenta anos de vida, é entrevistado no Programa Roda Viva. Às tantas descreve uma cena do filme adaptado e homônimo do romance de Fernando Sabino, “Faca de dois gumes” - ainda que não exatamente com essas palavras:

“Eu fazia o pai de um jovem seqüestrado que acabava de receber um estojo com o pedaço do dedo do filho dentro. Como reagir? Como fazer a cena?”.

O ator, então, faz umas duas ou três tentativas de uma possível dramatização do choque de um pai vivendo tamanha tragédia, repetindo a mesma frase com diferentes entonações (todas dignas do grande ator que é): “MEU FILHO.”. “MEU FILHO!”. “MEU... FILHO...”.

E conclui por dizer o seguinte:

“Em certas horas, o melhor é não fazer nada.”.

Agora – dirá você, para este narrador de entrevistas alheias -, lá vem você falar de futebol e – pior - de mais de vinte anos atrás.

Brasil contra Rússia, Copa de 1982. Um jogador brasileiro dispara um chutão, da intermediária, de frente para o gol. Falcão está na meia-lua, esperando pela bola. O que ele faz? Não faz; abre as pernas e a bola passa, ligeira, implacável, reta: gol do Brasil.

Na mesma Copa, em um outro fatídico e inesquecível jogo, o Brasil precisa de um empate, contra a Itália. Está 2 a 1 para a que viria se sagrar campeã; só que, naquele momento, ninguém sabe disso (a não ser o Sobrenatural de Almeida - não é, Nelson Rodrigues?). Da mesma meia-lua, o mesmo Falcão dispara, de canhota, um chute mortal: gol do Brasil.

Era hora de fazer - e não de não fazer.

Depois, como se sabe, o time deixou de fazer quando deveria ter feito e Paolo Rossi marcou o terceiro gol da Itália, que tirou o Brasil da Copa, com uma das suas melhores seleções de todos os tempos.

Voltando à entrevista do Paulo José: em outro momento, ele comenta sobre o desejo de muitos da presença de soldados do Exército nas ruas, para combater a violência; e pergunta:

“E se eles gostarem de ficar nas ruas?”.

Pois é, Sheakspeare: há momentos em que ser ou não ser vira fazer ou deixar de fazer. E a questão passa a ser: - Quando?

NU

NU

Era muito especializado

Vivia de bico de boca do que desse e viesse
Namorava quem se desse
Não tinha nome não tinha cara
Nem cara de pau ele tinha
Cara nenhuma
Parecia disfarce topete chapéu capa guarda-chuva

Não era moleque nem bandido
Marginal no sentido literal
Vivendo à margem
Do rio
Da linha do trem
Da sala de visitas
Do anfiteatro
Da pista
De alta velocidade

Ia lento
Ritmo
De quem passa a vida observando e deixando
Não mais que a própria sombra
Na lembrança de quem fosse
Que tivesse encontrado
Beijado
Esbarrado

Ninguém sabe se deixou filhos mulheres amantes viúvas
Diplomas

Deixou sapatos sua capa e o guarda-chuva
Sumiu de repente
Ninguém sabe se morreu
Ou se foi embora nu
Pela porta dos fundos

Da vida.

5.13.2007

O DIÁRIO DE UM MARIO

MEU QUERIDO DIÁRIO,

o pit-bull perdeu: para duas cirurgias, muita paciência da Rosa, fotos da vítima estampadas no chamado papel de parede do computador da Maria Luiza antes da mordida e meu grito de liberdade, ainda que tardia. Bolinha, quatro meses de prótese na mandíbula, abajur no pescoço, papinhas as mais variadas e caixas e mais caixas de lenços de papel, deixado em manhã precoce na clínica e tomado de volta à tardinha do mesmo dia, foi ressuscitado. Recuperou o pelo, o peso, o apetite, o abanar do rabo desproporcional, o latido fora de hora e as necessidades absolutamente desnecessárias, enfim, o canino senso do inoportunismo. É um cachorro, outra vez.

O Botafogo ganhou e perdeu. Tem um bom time, um técnico que pode não ser um mestre mas é Cuca e fala parecido com o Felipão. Ganhou a Taça Rio e foi vice-campeão estadual do Rio de Janeiro. Deixou de ser campeão por conta de um impedimento inexistente, um apito inaudível, uma expulsão associada a um não-acréscimo de tempo e uma recorrente incompetência para bater pênaltis. Segue, porém, candidato a seguir na Copa do Brasil, e ganhou do gaúcho Internacional, na casa do adversário, na sua estréia no Brasileirão. Aventurar-me-ei a assisti-lo quarta-feira que vem contra o Figueirense, no estádio deste, ainda pela Copa do Brasil, sendo que Maria Luiza quer ir junto, junto com seus treze anos. A vida é assim: um mar de intranqüilidade.

Sigo escritor e engenheiro, levando tudo muito a sério – o que é muito sério. E grave.

Continuo tendo amigos que persistem em assim se manterem: meus amigos. E permaneço casado com mulher que persiste em me modificar – o que me faz pensar que meu casamento vai muito bem. Isso também deve ser grave. E é sério.

Maria Luiza e Rosa continuam se amando, em sua condição de, respectivamente, filha e mãe da filha, necessariamente nesta ordem. Amam-se e brigam calorosamente, especialmente frente a frente. Ao computador e a um tal de orkut. Bolinha me pergunta: - Por quê? E eu, categórico, respondo: - Não sei. E ele – só ele – me compreende.

O Brasil vai mal. E vai bem. Como sempre. A questão é saber em que lado você está: no que vai bem, ou...

Mas você é só um diário – o diário de um Mario - e não de um mago. Apenas um Mario a mais, a brincar com palavras, a tentar desvendar a Física e dela um pouco fazer modesta Engenharia. Desta, extrair o que resta de criativo, como pão, como hóstia pagã, como ciência humana – essencialmente, a anti-ciência; o empirismo nosso de cada dia. Lidar com gente e não com a mãe - a Física. Escrever como quem desenha; digitar como quem toca piano.

E é só, meu querido diário.

Florianópolis, Dia das Mães de 2007, Mario Benevides.

3.29.2007

BBB

Eu fico aqui falando de mim, só pra ver se alguém também fala, não de mim, mas de si – e a frase é mal construída e eu bem que podia por a culpa na língua, a portuguesa, que é charmosa, bonita e difícil.

O boxe havia me deixado várias seqüelas. A maior de todas foi a saudade. Foi por isso que voltei, como volto frequentemente à boemia, e é evidente que esse casal, boxe e boemia, não casa muito bem, não.

Ando nadando – não literalmente, claro. Venho praticando natação, esporte que não deixa seqüela alguma, a não ser quando a gente bebe água, cheia de cloro ou de sal.

Faço ginástica, ando de bicicleta, caminho. Tenho sido cada vez mais o contrário de mim mesmo. A mesma alma boêmia ainda mora dentro de mim, mesmo quando nado e bebo água. Mais até quando bebo água.

Já o blogue precisa mudar. Mudar de cara, de assunto, de endereço. Volto a ele para avisar que ele vai mudar, e em breve. Como em breve farei acontecer minha primeira publicação (agora é pra valer). Uma professora da UFSC – lê-se UFSC – leu meu romance “A dinastia de Ricardo Coração dos Outros”, e quem gostou fui eu. Agora, vai.

O outro, a novela “Paredes que falam”, continua, mas um pouco fora do blogue, porque carece de uma revisão: as paredes andavam falando demais.

E fico por aqui, porque Rio, São Paulo e Minas ficam muito longe; mas estarei em São Paulo de 4 para 5 de abril – semana que vem. Se alguém se animar, não vou quebrar meu tamborim – é claro. Nem tocar tamborim eu vou – que fiquem tranqüilos meus amigos, que não vou perturbar seu sono, muito menos sua conversa.

Para encerrar, esclareço: ainda não sou tão ao contrário de mim, a ponto de assistir ao BBB global, não. No meu caso, BBB é isto: boxe, boemia e blogue. Já que o casamento dos dois primeiros não vai dar certo mesmo, que seja um triângulo amoroso.

Mas que o blogue precisa mudar, precisa.

Por favor: que alguém fale de si.

mariobenevides.blogspot.com, 29 de março de 2007 (hoje, minha mãe faria 86 anos)

3.05.2007

LÁ LONGE

Hoje era segunda-feira
Dia difícil para quem trabalha
Mais ainda para quem não trabalha
E precisa.

Hoje
Era uma favela
Era uma menina preta
Que levou a irmã para a creche.

Na volta
Ela não voltou.
Ela
- a menina preta da favela
que tinha levado a irmã na creche -
Levou um tiro.

O tiro foi da polícia
O tiro foi do tráfico

Ela não voltou.

Ela era preta
Ela morava na favela
Ela morreu.

Quase íamos esquecendo:
Sua idade era 12 anos.

A mãe dela(preta)
Ficou gritando
Quero minha filha
Quero minha filha
Quero minha filha.

Quase íamos esquecendo:
A que morreu tinha 12 anos.

A irmã dela ficou na creche.

2.21.2007

ATOLADOS

Pode até ter sido de cesariana ou parto normal – mas todos já atolaram, pelo menos uma vez na vida.

Atolamento de carro é o mais comum. A sensação de impotência é inversamente proporcional à de vexame. Se houver dois surfistas e um estivador nas proximidades, eles serão potentes por você, minha amiga, meu amigo; em contrapartida, de nada adiantará passar filtro solar, blush ou óleo de peroba. Quando a solidão for total, prepare-se: o buraco é mesmo mais embaixo.

Quero ver é atolar de avião. Dos pequenos, com nome inocente. Xingu, por exemplo - de seis lugares. A você, coube aquele assento bem à direita de quem entra, atrás da porta, onde, a depender da estatura de quem senta, a posição, de cabeça baixa, mais que resignada, é humilhante; e, sob o banco, encontra-se o vaso sanitário – uma privada que, pela ausência de portas que não a que do acesso às nuvens, é pública. Todos rezam, não para que o avião não caia, mas, sim, para que ninguém precise usá-la durante o vôo.

Nas nuvens, a nave não atolará; apenas chacoalhará. Atolado ficará você, tendo nas mãos o terço, a estrela de David, a figa e o patuá.

Chove lá fora, sem que isso seja verso de samba-canção. O comandante está tranqüilo. Brasileiro, sabe que algumas leis pegam e outras, não. As da Física, por exemplo: na opinião dele, mestre dos ares, principalmente dos ares de quem fez ponta em cinema mudo, poucas devem ser levadas a sério. Por isso ele acende um cigarro, e a cinza vai direto no seu olho esquerdo, que está sentado lá mesmo, no banco sobre o vaso, que você se esforça para não utilizar. Você, que está com as mãos ocupadas: agora, com a Bíblia e o Corão. Você – que se dizia ateu.

Dentro de mais uns minutos estaremos no Galeão – grande Tom Jobim, que só aterrissava em aeroporto grande, com pista asfaltada, sem problemas nem de inundação, onde o que balançava era o corpo da morena.

A pista onde o Xingu vai posar é de saibro.

O intrépido e desafiador comandante apaga seu cigarro sobre o vidro do altímetro e pousa. E evolui, sobre a pista, em linha reta. E vai manobrar. E atola. Pouco importa: você e os demais, que entraram tripulantes, deixam a nave incandescente como sobreviventes. Parabéns.

E você trafega agora dentro de uma camionete traçada, quatro por quatro, e observa galinhas de angola no piso do cerrado do estado do Tocantins e é observado pelas vacas do Nelson Rodrigues a repetir o bordão da piada sobre a hiena: “De quê ri este animal?”.

É de alivio, donas vacas.

Quando do seu retorno, a chuva continua, como continuou pelos dias que você lá permaneceu, em São Salvador do Tocantins, junto com seus bravos 1.500 habitantes, excluídas as vacas e as galinhas, de Angola e outras, com pintas ou não.

O comandante, com cara de pinguço, elogia o avião. Estamos em 2007 – e ele afirma, orgulhoso: “Este modelo é de 1989, ou então de 1988; não me lembro.”. Tudo para tranqüilizar você, que entra por ultimo na aeronave e retoma seu nobre assento sobre o equipamento onde covardes e corajosos se igualam. O avião segue até o fim da pista, vagarosamente, para fazer o retorno e decolar. O comandante, com seu cigarro pendurado no canto da boca, chama a manobra de “pião”. E com toda a razão: atolamos de novo, na pista de saibro.

Quem conta essa historia, se conta, foi porque sobreviveu. A tudo: a dois atolamentos, ao desdenhar profundo e filosófico das vacas, à indiferença absoluta das galinhas, aos cigarros do comandante e ao girar com as mãos do super-treinado co-piloto das pás das – ou serão “dos”? – hélices. Sobreviveu como todos os demais passageiros, incluindo os profissionais generosamente não-enterrados, graças à equipe de resgate: um estivador saudoso de um cais já faz tempo, que cavou e cavou e não nos fez o favor de enterrar em vida piloto e seu co, e, por mais correta que tenha sido a cova que cavou para deixar livre a roda dianteira da, por assim dizer, aeronave, não foi possível ao desafiante das leis naturais, dito comandante, desfazer seu atolamento reincidente; e meninos de treze a quinze anos, um deles pilotando um trator. Avião rebocado, decolado antes do tempo para não atolar de novo, pousamos em Brasília, 19 horas.

Ouvir a Hora do Brasil foi reconfortante.

2.13.2007

NÓS

Monstros
Arrastaram um menino
Pelas ruas do Rio de Janeiro.

Entre nós
Sempre foi natural
Emprateleirar pobres
Ou encaixotá-los
Nas periferias.

Trabalhadores
Honestos
Humildes
Resignados

São gerados
Geração a geração
Emprateleirados nos morros
Ou encaixotados nas periferias.

Monstros
Misturaram-se a eles
- honestos trabalhadores sem trabalho -
Nas mesmas prateleiras nos morros
Nas mesmas caixas de papelão
Das periferias.

Nós
Que compramos guardas de trânsito
Desde sempre em cada esquina.

Nós
Que temos uma conhecida
Que é do Ministério
Que arranja uma vaga
Pro nosso filho
Na escola pública.

Nós
Que desprezávamos negros
Até que as cotas passaram a valer
E aí nos tornamos todos parentes.


Nós
Que erguemos grades
Para proteger o sono
Das crianças que dormem na rua.

Nós
Que convivemos bem
Com os que dentre nós
Blindam seus automóveis.

Nós
Que freqüentamos festas
Onde o pó rola solto
E dizemos aos nossos
De olhos vermelhos
Aí, cara, tudo bem?,
Brigado,
Não tou a fim.

Nós
Que ouvimos os gritos dos nossos
Do apartamento ao lado
E continuamos ouvindo.
(Agora, de janela fechada.)

Nós
Que perdemos nossos empregos
Resignadamente
E que não moramos no morro
Ainda.

Nós
Que temos Deus no meio de nós:
O político.

(E ele é um de nós, necessariamente.)

Nós
Pacíficos
Passivos
Décima-qualquer-coisa
Potência-econômica-mundial.

Nós
Centésima-décima-sétima
Pior-distribuição-de-renda
Mundial.

Nós
Criamos monstros

De uma raça
Dentro da raça
Que mora nos morros
Nas periferias.

De uma outra raça
Dentro da raça
Que freqüenta rodas
Do mais alto
Poder-de-compra.

De uma outra ainda raça
Dentro da raça
Que representa a droga
Que representa o crime
Que freqüenta o congresso
Nacional.

De mais uma outra raça
Que quando se refestela
Do dinheiro público
De fato mastiga e cospe
Vidas de talentos natimortos
Pernas mendigas
De vidas-zumbis.

Nós
Criamos raças
Dentro da nossa
Brasileira raça.

Nós
Criamos monstros
Desde sempre
No nosso quintal.

Monstros
Arrastaram um menino
Pelas ruas do Rio de Janeiro.

1.16.2007

MICO

A partir dos 12 anos, atenção: é proibido pagar mico. Por exemplo, andar de mãos dadas com o pai e a mãe. Aqueles beijos e abraços apertados, só em casa. E olhe lá – porque o vizinho pode estar olhando e, se ele tiver 13 anos...

Do lado de cá, de quem carregava o filho ou a filha pela mão – depois de muito tempo no colo -, não se deixe emocionar em comédia romântica na companhia dela. Na dele, sequer proponha uma. Desandar de dar risada e gargalhada em desenho animado, esteja certo: vão chamar a ambulância.

Tio. Esse é o seu nome – a não ser que seu sexo seja o feminino; nesse caso, oi, Tia, muito prazer.

Prazer inclusive de ver sua sala abarrotada deles e delas, sentados no chão, encostados na parede, chão e parede recheados de bolo para todo o sempre. Antes fosse: esse paraíso acabará e você vai se tornar o maior religioso de todos os tempos. Seu colar – você usará um – trará um crucifixo entre a estrela de David e uma figa, assim que o passeio de quem você trocou as fraldas passar a ser com João ou Maria. Maria tem carteira de motorista; João rouba o carro do pai. Há os gêmeos, também: Rafael e Gabriel, cada qual com sua moto. Lucas não tem dinheiro, mas bicicleta, sim. Primeiro, ele tirou a camisa enquanto pedalava e a danada cismou de enrolar na roda dianteira e ele foi de cara no chão; depois, Matheus, que tem menos dinheiro ainda e casa não tem, mas revolver, sim, levou a bicicleta de Lucas – agora, com uma bicicleta e 3 dentes a menos. Onde anda Salomão?

Melhor parar o relógio e perguntar, sem ofender: quem inventou o mico terá sido alguém com inveja de quem anda de mãos dadas com a filha ou o filho?

Pode até ter sido. Mas isso não lhe dava o direito de ter gritado LINDÃOOOOOOO quando ele fez aquele gol de placa. Menos ainda de ter socado o juiz porque o gol de placa foi com a mão e, consequentemente, anulado. Está ouvindo, agora? A sirene é a mesma da ambulância; mudou foi a cor do carro.

Mico.

1.11.2007

O MAIS FORTE

Escondia-se. Exibia-se. Aparecia porque grande era sua cabeleira. Claro, era ela que lhe mantinha protegido; escondido. Veio um corte de cabelo indesejado e o que ele gostava de esconder ficou à mostra; aquilo que exibia fora embora. Veio uma mudança. Era da casa antiga o seu aconchego. Foi ficando triste. Vieram umas férias, uma viagem – ele gostou. Foi quando o mais forte sentiu-se incomodado e partiu pra cima dele e ele quase morreu. Poderia ter acontecido com qualquer um: o mais forte se incomoda e o mais fraco é que se muda – ou morre. Hoje ele anda jururu, mascando seus bigodes, impedido de coçar a mandíbula, temporariamente reforçada por uma prótese, por um anteparo. Espécie de noviço rebelde, assim ficou o poodle depois de atacado pelo pit-bull. Este, por sua vez, ninguém sabe como ficou. Apenas se sabe que continua sendo o mais forte.

1.09.2007

VIVAS E MANIFESTOS

A visita de um poeta é sempre bem vinda. O poeta Aldo Votto ainda nos visita; mais: manifesta-se - a nós. E a nós ultramarinos. Vivas a ele, que, como bom poeta, nos mantêm vivos, interessados, ativos. Em resposta nos manifestamos nós (plural e, portanto, covardemente):

Fui ator não vou ao teatro.
Escrevo poemas não leio poetas.
Que pretensão será esta
Egoísmo será este
Fazer e não querer saber
Do que fazem os outros – os de verdade?
Leio Equador
De autor português contemporâneo
A narrar fios e meadas de dom Carlos
Rei
Que viria a ser morto por revoltosos
Idos de 1905-8
São Tomé e Príncipe
Ilhas
Colônias portuguesas
Equatoriais.

Descubro-me navegador
Ansioso por aventura
Engenharia e poesia incapazes dela.
Novas e naufragadas Friburgos
Encharcados Rios geralmente praianos
Metralhados e incendiados inocentes
Respondei:
Há lugar
Longe do naufrágio
A salvo do incêndio
Perto da aventura?
Haverá lugar a inda
Para sonhadores
Que sonham tão somente transformar? Sem o saber?
Sigamos.
Vendas nos olhos
Vendavais nos ouvidos
Chuvas torrenciais
Sóis cegadores
Preconceitos e medos e seus desastrosos consertos
Sigamos.
A fazer e pouco ler poesia.
Mais a representar que assistir a intérpretes.
A nos alimentar de manifestos
Mais que nos manifestar.
Vivas a eles manifestos.
Vivamos.

1.05.2007

IRREGULAR

Eis aqui um lugar
Freqüentado por poucos
Todos de idoneidade assegurada
Ainda que freqüentadores
Deste lugar
Que,
De tão pouco freqüentado,
Mal dá o que falar.
Serve este espaço
Muito mais para organizar
Aquilo que não pode:
A obra errática, anti-sistemática
De seu ocupante-anfitrião.
Que não se exija dele portanto nada
Que não a mais completa irregularidade.
Tudo que sai na capa só foi verdade por indeterminado tempo:
Hoje é dia de crônica
Amanhã ou quem sabe quando,
Um capítulo.
Que dia é hoje?
Por aqui, não se sabe.
Se, ainda assim, você, de idoneidade assegurada ou não,
Quiser visitar este lugar,
Será um prazer.
Deixe sua queixa, por favor:
Será sempre bem-vinda.
Queixe-se do assunto e da sua falta; da forma; do des-conteúdo.
Mas venha sempre – até que uma multidão nos separe,
Uma frente fria,
Um crime hediondo,
Uma roubalheira infame
Nos separe.
Ou nos una.
Irregularmente.
Como deve ser.