12.31.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- UM: POR PARTE DE PAI –

Ao invés de desenhar, Ricardo V começou a contar ao filho o que sabia da família:

- Nossa história só é conhecida a partir do meu trisavô, o violonista Ricardo Coração dos Outros, amigo de Policarpo Quaresma. Não sabemos ao certo quando ele nasceu, mas sabemos que desapareceu no final dos anos vinte do século passado.

- No final dos anos vinte do século vinte – observou o garoto.

- Isso mesmo. Ele e a mulher, sua tetravó Olga, desapareceram a caminho do Rio, vindos de Cavalcante. Olga era filha de um comerciante italiano, que migrara para o Rio. Não sabemos nada dos pais e avós de seu tetravô, como não sabemos o que houve ao certo com os dois, ele e a mulher, Olga; simplesmente sumiram, sem deixar vestígios.

Ricardo V bebeu um pouco d’água e tornou a explicar:

- Ricardo Coração dos Outros e Olga tiveram como filhos Ricardo II, seu trisavô, e Ricardina Olga. É comum, nas famílias do mundo todo, principalmente no Brasil - na América Latina de modo geral -, e, principalmente, naquele tempo, repetirem-se nomes; no nosso caso, Ricardo, Olga e Ricardina, além de algumas de combinações desses nomes entre si e com outros. Na nossa família, o hábito vem até hoje, sabe-se lá porque. Quem sabe você o interrompa, já é hora, não é? O livro mais famoso do colombiano Gabriel Garcia Marques, “Cem anos de solidão”, mostra muito bem essa tradição. Ricardina Olga permaneceu em Cavalcante, casada com o Coronel Eurípides Ovídio Tavares e Silva; ela morreu em 1982, aos...

Ricardo V continuou depois de consultar uma espécie de agenda:

- Oitenta anos. Do Coronel, não se sabe; não encontrei registros em Cavalcante, preciso pesquisar mais. Ricardo II morreu assassinado na Itália, tão logo terminada a Segunda Grande Guerra, aos quarenta e cinco anos. Sua viúva, Maria Cristina, viveu até os noventa anos. Isso mesmo – confirmou, após consultar sua agenda de registros da sua genealogia -, morreu aos noventa, em 1995, no Rio de Janeiro. Meu avô, Ricardo III, de quem tenho muita saudade – Ricardo V teve que fazer uma pausa -, foi arrimo de família.

- O que é isso? – quis saber Ricardo VI.

- Sustentou a mãe e os irmãos, Ricardo Maria, Ricardina Cristina e Olga Cristina, a partir da adolescência, ainda.

- Como?

- Com canções populares. É: outro músico na família, o mais bem sucedido de todos. Casou-se muito cedo, com Andréia Cardoso Moreno, sua bisavó Andréia, que mora em Petrópolis; ela está, agora, em 2010, com... Setenta e oito anos. Meu avô, Ricardo dos Outros, poeta e compositor, morreu aos sessenta e oito, no Rio.

Outra pausa; depois:

- O irmão dele, Ricardo Maria, morreu solteiro, aos sessenta, em 1996. Olga Cristina Bastos Coração dos Outros, a poetisa concretista, irmã de meu avô, morreu aos trinta e dois anos apenas, em 1972, solteira, como o irmão. Os dois, do coração, enfartos fulminantes, naquele tempo era assim, não se sabia muito como prevenir doenças comuns. E não venha fazer graça que os “Corações dos Outros” morreram do coração, porque não tem nenhuma graça, tá?

- O resto da história, você sabe: sua tia-bisavó Ricardina Cristina está bem viva, em São Paulo, com setenta e dois anos, casada com o embaixador aposentado Nereu Esteves da Fonseca; não tiveram filhos. Seu avô, Ricardo IV, casado com minha mãe, Sérgia, tiveram suas tias-gêmeas em 1974, Ricardina e Olga.

- Pra variar.

- O quê?

- Os nomes, né, pai?

- É. Olga vive com aquela pessoa e Ricardina continua solteira e um tanto devassa pro meu gosto.

- Isso é preconceito, pai.

- É. Seu avô, nascido em 1950, o pai e a mãe dele tinham só dezoito anos, depois que o pai se viu obrigado a se esconder em Petrópolis por causa da ditadura militar, foi impedido por ele, meu avô e seu bisavô, de participar de qualquer forma de protesto ou reação contra aquele regime e se sente meio culpado por isso. Já sua avó...

- Ela não tem árvore genealógica? E mamãe, também não tem a dela?

- Não. Brincadeira, claro. Claro que as duas têm.

- Sua brincadeira também foi sem graça.

- Foi.

- Você me conta as árvores genealógicas delas?

- Conto.

- Agora?

- Amanhã.

- Puxa, pai...

12.27.2005

O EXTRAORDINÁRIO AVANÇO DA TECNOLOGIA

Difícil encontrar expressão mais batida que esta: o avanço extraordinário da tecnologia. De tão batida, o avanço tecnológico já deixou de ser extraordinário faz tempo. Ainda que você se surpreenda com o fato de seu celular ser mais máquina fotográfica que telefone - ele gosta muito de dizer a você que a rede está ocupada ou, mais ainda, de deixar você com cara de tacho, falando com o éter, por um bom tempo, enquanto você pensava que sua amiga ainda lhe ouvia - ou desculpe, foi engano? -; mesmo que seja incrível o limpador de pára-brisa do carro de seu amigo funcionar com uma simples gota d'água - e pior: sem fazer aquele barulho que o do seu carro faz, rac-rac, bru-bru -; tudo bem que a máquina de lavar roupa da sua tia toque rock-and-roll dos anos cinqüenta, enquanto lava - e passa -, o fato é que tudo vai virando banalidade, a ponto de seu tio nunca mais ter dito "Não há mais nada que inventar", ou perguntar ao éter "Onde é que esse mundo vai parar?".

Procure aí na Internet por artigos de Engenharia, Medicina ou Culinária: 99,3,1416 começam pela expressão-título dessa crônica on-line, underground e muito mais out que in.

Pessoa de bom gosto que é, você vai mesmo é no antiquário, procurar por um abajur igual àquele que havia na casa da vovó, - ou a papeleira - escrivaninha com uma tampa que desaparece lá pra dentro, não há tecnologia capaz de explicar aquilo - parecida com a que você viu quando era criança, no sótão da casa da bisavó daquela garotinha que morava numa casa e não em apartamento; vai visitar cidade histórica, tropeça nas pedras de Parati. Acha o Fusca - aquele, com sobrancelhas nos faróis - um barato (sim, você usa essa expressão ultrapassada: um barato!), e se espanta: "Que carro é esse?" - "Um Puma" - lhe responde o primo, bem mais velho que você.

Pera aí, que agora chegou um e-mail pelo celular, exatamente quando você fotografava aquela coisa que acabou por achar horrorosa, aquele Puma cor de mamão, e sua mãe quer saber onde você anda que não aparece há três semanas, e começou a chover e você não trouxe um guarda-chuva. Pois não é que, desde a Idade da Pedra, chuva é muito boa pra lavoura, mas, pra gente, é uma incomodação danada?

Agora, o avanço tecnológico é impressionante.

12.24.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
- CAPÍTULO 40 -
O apelido "Macunaíma do Méier" foi, a um só tempo, ascenção e queda de Pedro Ramon Pereira. Foi o jeito simples, despojado e irreverente de Pedro, na sua primeira entrevista após e sobre o seu ato heróico, que o tornou imediata e mundialmente famoso, que inspirou o comentarista político Adalberto V.B. Martins a associá-lo ao "Herói sem nenhum carater", de Mário de Andrade. O fato de Pedro morar no Méier, bairro da Zona Norte carioca, o mesmo onde, muitos anos antes, Prestes e Olga foram encontrados e presos pela polícia de Filinto Müller, foi o assentar do cimento a juntar os tijolos do apelido irresistível, que ficou estampado na capa do principal veículo da mídia impressa de então e também no super-freqüentado site de Adalberto.
Usando uma camisa social com as mangas arregaçadas e parcialmente para fora da calça; ainda suado, das horas de cativeiro e negociação absurda com o sequestrador e sua cúmplice, tudo aquilo transmitido em rede, a princípio, local, depois, nacional e, em sua útlima hora e meia, mundial, ficou para sempre na memória de quem assistiu, com a aparência, ainda assim, tranqüila, Pedro, a declarar:
- Tive a impressão de que ele (o sequestrador) não queria sequestrar; aliás, ele não queria também resolver causa social nenhuma; pensando bem, deu pra perceber que ele não queria era resolver nada.
- Não, maluco ele não era; talvez um pouco entusiasmado demais; não sei.
- Não gosto de governos, governos deveriam trabalhar pra nós, são bem pagos pra isso, mas, ao invés disso, se disfarçam por trás de ideologias, supostas causas, programas, e nos traem, quase que invariavelmente. Nem que seja somente por megalomania, sede de poder, incompetência - mas sempre nos fazem mal.
- Não, não sou anarquista, porque sou incapaz de varrer a calçada em frente à casa onde moro.
- Tenho quarenta e sete anos, isso mesmo. É, sou casado. Em Deus? Claro que acredito nele, ué. Deve ter sido ele que me pôs nessa situação.
- Medo? Medo, não: pavor. Foi pavor, o que tive; o que senti. O camarada estava descontrolado, totalmente descontrolado, arrebanhou a turma toda na feira de susto, apontando a metralhadora, dando tiros para o ar. Todo mundo deve ter pensado: "É o tráfico.". Que nada! O cara queria era salvar o mundo, salvar a política, terminar com a pobreza. Depois, não sei, fico na dúvida, como já disse, sei lá, vai ver que ele só queria aparecer.
- Pois é, foi uma surpresa, ele ser racista. Foi aí que tive a oportunidade de virar o jogo: "Você não acha uma burrice, o racismo? Afastar em vez de aproximar, juntar, ter mais gente se dando bem, gerando oportunidade? Não é um tiro no pé, no pé dos poderosos, eles serem racistas? Não é ultrapassado, isso?" - eu perguntei. Aí ele abaixou a arma e a jogou no chão e ela matou ele e depois se matou, com o revólver.
- Descobri que quem estava com ele, encapuzado, era mulher, por causa do olhar. Mulher olha diferente de homem. E ela, às vezes, me olhava nos olhos, um olhar muito impressionante.
- Provavelmente dois malucos. É, eu sei, todo mundo viu, tava sendo filmado, né, pela fenda no telhado do depósito onde ele nos trancou, não é? Eu vi, deu pra perceber.
- Fui criado na religião católica, mas não vou à missa, não. Nem entendo nada de missas, padres, essas coisas. Prefiro as igrejas vazias, que nem o Nelson Rodrigues. O Nelson Rodrigues nasceu aqui no Méier, sabiam?
- Presidente da República? Eu? Só porque fui capaz de negociar com aqueles dois? Daonde você tirou essa idéia? Tá maluca?
- Que partido? Não tenho partido. Não acredito em política, já disse. Voto para que alguém cuide do que é público, só isso. O resto, deixa andar, porque anda por si, com ou sem governo, com ou sem ideologia.
Difícil de se imaginar que, três meses depois, Pedro Ramon Pereira, o Macunaíma do Méier, já estivesse em plena campanha pelo PAN - Partido Anarquista Nacional. O slogan da campanha foi: "Estado Mínimo, Responsabilidade Máxima". Disparou nas pesquisas de intenção de votos, quando havia uma total indiferença da população pela política em geral, uma generalizada sensação de frustração, de vontade de não votar em ninguém, sequer de comparecer às urnas para anular o voto.
Aí, começaram os que pareciam estar mortos, afastados, em absoluta condição de desprezo dos outros, em total ostracismo: "Lá vem de novo o neo-liberalismo!", "Quem é que quer anarquia no Brasil, quem é que quer uma bagunça generalizada?", "Fora, herói sem carater! Fora, mau carater!".
Venceu as eleições se sabe quem. Pedro Ramon Pereira, depois de, às vésperas do primeiro turno, estar disparado em primeiro lugar nas pesquisas, sequer ter chegado ao segundo, com a vitória de última hora, surpreendente para todos os analistas especializados, ainda em primeiro turno, se sabe de quem, desapereceu de cena. Dizem que se mudou para o interior do Paraná. Ou do Pará - ninguém sabe ao certo. O comentarista político Adalberto V.B. Martins se matou, jogando-se do vigésimo-quinto andar do prédio onde residia e trabalhava.
Assim que saíram os resultados das eleições, Ricardo V e o filho estavam sentados no sofá da sala. Olhando para a mangueira do quintal da frente pela abertura da janela - era uma tarde fresca; chovera de manhã, em Minaçu -, Ricardo VI propôs ao pai:
- Vamos desenhar nossa árvore genealógica?
Assim foi.

12.20.2005

BLAGUNÇOU O BLOGUE

Isto podia ser muito bem um samba de breque, mas virou um samba de blogue. Olha que seu autor persegue a disciplina que a si mesmo impôs e propôs aos seus adoráveis visitantes, qual seja, a de produzir dois livros ao mesmo tempo e em tempo real: um de crônicas e poesias, às vezes, mini-contos, cujas peças vão surgindo às terças; outro, um romance, que pretende - sem pretensão - recuperar, não o ufanismo, o otimismo de Policarpo Quaresma no começo da sua história, tão sensivelmente contada por Lima Barreto, contrapondo-se ao tom de desânimo e descrença que se caracteriza em seu triste fim, tão recorrente em cada um de nós, mais platéia que atores e atrizes desse espetáculo permanentemente contundente, chamado Brasil.
Pois que o autor do blogue, que começou por fazer blague, dando-lhe o nome de Diário de um Mario, veio a visitá-lo, para ver como andavam as coisas em seu jardim, onde planta e pouco sabe de suas mudinhas, se se viraram e desandaram a falar ou permaneceram mesmo mudas, para sempre mudas; e surpreendeu-se - como quem pisa no que ninguém gosta de pisar ou, mais distraído, vai pela rua e dá com a cara no poste -, ao perceber que sua disciplina havia ido pro espaço, espaço muito longe deste, o blogue, ele mesmo. Como última publicação (horrendamente chamada de postagem), uma de 18 de novembro - quando, hoje, Terça, é 20 de dezembro. Repetindo e sublinhando, sem sublinhar: Terça - e Terça-20-de-dezembro; não um dia qualquer de novembro, já ido, ultrapassado, remanescente na memória e olhe lá.
Protestar o que e contra quem? Contra o blogue? Um espaço virtual e, portanto, espaço que não há, ninguém mora nele, atende a campainha, manda dizer que não está? E de graça! Ora, nada a fazer, a não ser confessar que, além de tudo, é de graça.
E fazer a - com perdão da palavra feia - postagem, exatamente deste desabafo, com a única intenção de desblagunçar o blogue.
Aí vai. E seja lá o que Deus quiser. Mesmo porque, ano que vem, teremos eleições. Sinceramente, pela primeira vez dessa coincidência-mais-que-forçada, que bom se não houvesse Copa do Mundo!
Mas há.
Seja o que Deus quiser.
E que ele exista.
E que despache aí um anjinho principiante, cheio de boas intenções, para arrumar essa blagunça, Brasil incluído, quem sabe?

VIVEMOS A ERA DA INCERTEZA. TEM CERTEZA?

Vivemos a era da incerteza. E qual foi a era que não foi assim – da incerteza?

Houve um tempo em que se discutia se a Terra era quadrada, chata ou redonda. Descobriram mais tarde que era redonda – como também descobriram que, a depender de onde, em que companhia ou era, a terra pode ser chata. Quadrada ela costuma ser em outros lugares, onde se determina, a depender da era, que a saia não pode ser mini, o top, jamais less, Oscar Wilde, gay, Orlando, homem, Virginia Wolf, ela mesma.

Discutia-se mais: se era a Terra que girava em torno do Sol ou se este é que ficava dando repetitivas, monótonas e incendiárias piruetas em torno do planeta, cheio de água em suas entranhas e superfície.

A era, aliás, já foi do gelo. - E sem uisque! – diria Vinicius de Moraes.

A incerteza era tanta em outras eras que um trovão, seguido de um raio, era tido como castigo divino por se ter traído a mulher ou o marido. Só anos mais tarde é que a ciência provaria que era isso mesmo – embora, em alguns casos, a situação se enquadre é como divino castigo.

Ninguém sabe porque nasce, duvida um pouco de que pai foi mesmo, discorda às vezes de que mãe tenha sido; incerteza nova, por acaso?

Ninguém sabe quando, porque e como vai morrer. E jamais soube ou saberá, ainda que se tenha esmerado ou se aperfeiçoe na precisão do suicídio.

Ninguém escolhe filho nem filha. Ninguém escolhe pai, mãe, irmão ou irmã; nem tio, nem tia, avó, avô – e há vários casos de nascidos sem um ou todos eles. Quando muito, o que se pode fazer é comprar um cachorro, ou se deixar seguir por um, nas ruas, mendigando esmolas e sobras, para o cão e si próprio.

E nem o si é próprio: ou se tem um chefe, um cônjuge, um caso de amor, um sócio, e sempre que se tem um desses também se é tido; próprio, portanto, o si jamais o é. Nem o foi, nem o será – em era alguma.

Tanto melhor que se compreenda, pois, que essa história de era da incerteza é a coisa mais burra e banal de que já se teve notícia. Toda e qualquer era é da incerteza.

Fundamental é conjugar o verbo corretamente: não é “era da incerteza”, mas será incerteza.

A certeza, sim: era.

12.17.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E NOVE –

Os criadores das marcas e redes que substituíram a Internet - a 1012 e a Tera-portal Mundial (TPM) - já haviam percebido que sua estratégia em comum, de querer inspirar um certo saudosismo, um passo atrás da real potência e seu correspondente número de zeros em capacidade e velocidade de transmissão de dados, não havia sido percebida por uma quantidade considerável de usuários, ainda que minoritária. Exatamente essa minoria é que começava a se encantar com a marca concorrente das concorrentes, que nada oferecia a mais – apenas o marketing da realidade: o máximo de modernidade e potencial que se podia por à dispor da multidão e de cada usuário naquele ano, 2015.

Sabe-se hoje, em 2020, que a concorrente não conseguiu sobreviver à capacidade de reação e inovação implacável das duas grandes, que continuaram mantendo em comum a ultrapassada e supostamente emblemática e nostálgica potência 12 em suas marcas registradas. Mas, naquele ano, a ousadia da competidora das duas hiper-redes expuseram Ricardo IV a uma chateação: não a maior, mas fundamental cliente de seu escritório de advocacia era a TPM; pensar em buscar apoio – parceria! –, justo na concorrente Dez à Décima-segunda, era de arrepiar, ainda que parcerias entre concorrentes já não fossem havia muito tempo nenhuma novidade.

E daí? O que acontecia com ele é que, mais uma vez, havia uma mulher a lhe embaçar a realidade. Seu escritório, que cuidava, como cuida, muito bem de marcas e patentes, e de encontrar grandes possibilidades em imensas impossibilidades - como o faz, de maneira geral, a humanidade, desde que foi inventada -, saberia, como soube, enfrentar a crise, abraçar a parceria antes inimaginável com a Dez à Décima-segunda, até derrubar a concorrente das concorrentes e retornar ao mundo já conhecido, onde só havia uma concorrente a enfrentar e com ela dividir o mercado. Ele fazia parte da máquina vencedora, mas não era assim que se sentia. Uma melancolia lhe tomava a alma, sonhador demais, sofredor demais.

E que mulher era aquela? Amante? Não era. Mais que em qualquer tempo antes daquele, sentia-se apaixonado pela mulher, Sérgia. Desejo por desejo, ora, era homem vivido, experimentado; sabia que desejo é coisa de tão natural que animal.

O fato era que ela passara para a concorrente – não para a terceira, mas para a popular Dez-a-doze. O que, na verdade, funcionaria – ele sabia disso, antes mesmo que funcionasse – como facilitador da parceria com a tradicional concorrente, que já propusera à sua cliente, a TPM.

Mas, quem era aquela mulher? Sua irmã? Se assim a definisse, nada mais falso haveria no planeta da falsidade, ainda que não tivesse irmãs, pois achava que não precisava delas, suas filhas gêmeas lhes bastavam como companhia, senão fraternal, quase como se fosse, as duas com 42 anos, ele, 65.

Amiga? Ela não era mais, como não era menos, que sua amiga – mas assim não a conseguia ver.

Estaria apaixonado, sem o saber? Não! Não admitia essa hipótese. Teve interrompida sua angústia de encontrar melhor palavra que admiração, que descrevesse o que sentia por aquela mulher, por um de seus sócios minoritários, Renato Campos de Melo, que lhe perguntou:

- Que cara é essa?

- Não se descende de poetas impunemente.

Seu sócio estava preocupado demais para tentar decifrar a resposta de Ricardo IV:

- Toda história de “joint-ventures”, parcerias explícitas ou por debaixo do pano, como a que vamos fazer, fusões, aquisições, ainda que várias tenham sido bem sucedidas, todo casamento entre empresas, depois que se desfaz, como o da TPM com a Dez-a-doze será desfeito assim que engolirmos essa novidade perniciosa que surgiu, é como qualquer casamento: deixa uma seqüela, uma ferida, um estrago qualquer. Estávamos bem como estávamos, não sei se essa estratégia de aliança é uma boa idéia. Por que simplesmente não enfrentamos essa a mais e pronto; pra que casarmos escondidinhos com Dez-a-doze?

- Não há outra saída.

- E depois, como será?

- Será depois. Mais nada que isso.

- Você hoje está esquisito mesmo, hein?

- É que não sou poeta, como meu pai. Por não ser poeta, não encontro a palavra certa para o que não consigo definir. Fico nostálgico de meu pai e fico frustrado por mim.

- Não é melhor pensar no problemão que temos nas mãos, essa fusão falsa debaixo da mesa, que nem amantes em restaurante, na presença do marido de uma e da mulher do outro?

- São favas contadas, como diria meu pai. E logo se vê que você também não é poeta. Vamos lá?

E foram, ao encontro dela, no escritório da Dez-a-doze, levando com eles dois diretores da TPM. Daria tudo certo, como deu certo o descasamento, um ano depois, depois de devidamente falida a concorrente, assunto que sequer chegou ao hiper-noticiário, nem tanto porque este fica sob controle das duas hiper-redes, mais porque um ano depois foi o da Revolução de Mentalidade, matéria que dominou todo e qualquer noticiário durante seu acontecimento. Por causa dela, da revolução, esse tipo de fusão e disfusão, com o único propósito de destruir uma terceira concorrente, teria sido mais difícil; mas ainda assim ocorreria. Haverá sempre no mundo gente como aquela mulher, para a qual Ricardo IV não achou palavra capaz de descrever seu sentimento por ela. Filha da puta! – foi outra expressão que lhe ocorreu na mente, encerrada a reunião, que selou o acordo das duas hiper-concorrentes, tramado por aquela mulher.

Seria medo a palavra que não encontrava? Era isso que sentia por ela? Tinha medo daquela mulher?

Não! Isso ele não queria admitir.

12.13.2005

O ALFERES, OS DENTES E AS IGREJAS

TINHA IGREJA DE BRANCO
TINHA IGREJA DE PRETO
TINHA IGREJA DE MULATO.

A DE BRANCO ERA FEITA DE DIA
A DE MULATO ERA FEITA DE TARDE
A DE PRETO ERA FEITA DE NOITE.

DE DIA ERA PRETO
QUE FAZIA A IGREJA DO BRANCO
DE TARDE ERA PRETO
QUE FAZIA A IGREJA DO MULATO
DE NOITE ERA PRETO
QUE FAZIA A IGREJA DELE

PRETO.

O OURO
DA IGREJA DO PRETO
MALOCADO NO CABELO
NO DENTE NA UNHA.

NOSSA SENHORA
DO ROSÁRIO DOS PRETOS
TUA MEIA-LUA
TUA ESTRELA PRETA
DE OITO PONTAS
SÃO BENEDITO ASSISTINDO
À EXPLICAÇÃO

DO INEXPLICÁVEL.

SE FOI OURO DO BRANCO
NO DENTE DO PRETO
SE FOI DENTE DO PRETO
NO OURO PRETO DO BRANCO
O QUE FICOU.

O ALFERES
QUE TIRAVA OS DENTES
PODRES DAS BOCAS PODRES
POBRES DAS BOCAS POBRES
VIROU NOME DE CIDADE

TIRADENTES.

12.11.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005


- CAPÍTULO TRINTA E OITO –

Nesses tempos em que o dólar já não é mais referência nem moeda, quando a economia do Brasil, em tamanho, chegou ao terceiro lugar do segundo bloco de países, ocupando a décima-segunda posição do Produto Mundial Bruto pelo critério da Paridade do Poder de Compra – PPC -, e seu índice de Gini é de 0,302 - quando, por muito tempo, superou a marca 0,5, significando que, hoje, tem a distribuição de renda mais justa de toda sua história, ocupando a décima-quinta posição neste quesito, não mais a 117ª, como ocorria no início deste século -, fica difícil até de lembrar que, em 2008, quando foi proposto o projeto do acesso ao Oceano Pacífico, incrementando as possibilidades logísticas do intercâmbio Brasil-Japão e Brasil-China, o país estava prestes a enfrentar mais um colapso energético e também logístico, suas estradas e ferrovias em petição de miséria.
Foi naqueles dias que Rita retomou fugazmente seus estudos das etnias indígenas da América Latina, contratada para uma consultoria visando a estudar a barreira que se interpunha à ligação, formada pelas reservas indígenas existentes no trajeto que atravessava o Peru, os índios já governando a Bolívia, que, com o apoio do Peru, já cortara as relações e o fornecimento de gás para o Chile, a Argentina, sem poder continuar a adquirir gás boliviano para vendê-lo ao Chile – que se empenhava para desenvolver às pressas projetos hidrelétricos e de fontes alternativas – biomassa, eólica – que fossem capazes de suprir suas necessidades energéticas. Mais ainda: a Bolívia ameaçava invadir o Chile para ter de volta seu acesso ao Pacífico, por Arica, território perdido na guerra de 1879 a 1883 entre os dois países.
O continente sul-americano dera majoritária e acentuada guinada à esquerda.
Outra expectativa com respeito à Bolívia era se seus governantes iriam também querer de volta o Acre - o qual, pelo Tratado de Petrópolis, de 1903, teve seu território de 143 mil km² cedido ao Brasil, pelo valor de 2 milhões de libras esterlinas.
Também poluía o ar das relações sul-americanas a perspectiva de tentativa de recuperação, ainda pelos bolivianos, do território perdido na Guerra do Chaco, de 1932 a 1935, para o Paraguai, que anexou ao território paraguaio 249.500 km² da região fronteiriça, então cobiçada por empresas petrolíferas, principalmente inglesas, que supunham haver petróleo naquele subsolo e souberam muito bem fomentar o conflito por intermédio do governo britânico.
E, claro: em nada ajudava a região o estado das relações da Venezuela com os Estados Unidos.
Enquanto este era o cenário de 2008 do continente sul-americano, a China continuava crescendo a taxas assustadoras. O Brasil ainda pagava sua dívida externa, herdada em grande parte dos governos militares, que investiram em infra-estrutura a custa de empréstimos em dólares. Já o país-continente asiático guardava em caixa mais de 800 bilhões de dólares em reservas cambiais.
Rita mergulhava em mapas, livros, páginas da Internete, telefonemas, emails, viagens; Ricardo VI, com os avós e as tias, no Rio de Janeiro; Ricardo V passeava com sua camionete pela região do cerrado, escrevia um pouco, parava, ouvia o que diziam os camponeses, roceiros da região, ex-garimpeiros sem licença ambiental, o povo, seus anseios e frustrações. Assistia aos debates acerca da estrada para o Pacífico e da transposição do rio São Francisco, mais ainda sobre a eternamente mal-resolvida reforma agrária. Ricardo V era de opinião que a produção em massa deveria ficar nas mãos do tão então propalado agro-negócio, mas que, na região em que morava, minifúndios de sub-existência e pequeno escoamento local seriam uma das mais fortes possibilidades de sobrevivência, tão difícil para a maioria das pessoas no cerrado goiano daqueles tempos. A floricultura ainda não era explorada, a não ser muito timidamente, nos jardins municipais. O eco-turismo era ainda mais tímido, perdendo terreno e terra para a pastagem da pecuária extensiva, tão sujeita à sazonalidade e à fraca qualidade do solo.
Ricardo V se enchia de coragem e ideais quando conversava com Seu Josefino e Dona Luzia, uns dos poucos a vencer a sub-existência, a ignorar totalmente quaisquer regras, prognósticos ou receitas macro-econômicas, plantando, criando gado leiteiro, ampliando suas propriedades sem qualquer subsídio, produzindo mais, na contra-corrente do agro-negócio mecanizado, na contra-mão da reforma agrária, levada a duras penas pelo Estado.
É aqui que começa a Revolução de Mentalidade, é aqui e no teatro daqueles meninos e meninas que assisti há três anos, há de ser aqui, Ricardo V deixou gravado no Winchester de seu desk-top, então em uso, ainda - quando os nano-tubos ainda eram experiência de laboratório.

12.05.2005

NOITE DE ANTÔNIO MARIA

"Se eu estiver dormindo, deixe. Se eu estiver morto,me acorde."
(A.M.)
Deve haver no fundo da gaveta uma folha
De papel almaço
Para escrever alguma coisa
Que faça sentido amanhã.

Deve haver no fundo do armário do corredor
Uma garrafa de aguardente
Um vinho bem guardado
Um bilhete
Um retrato.

Deve haver na cabeceira uma agenda
Para não deixar de esquecer
Aquilo que parece importante
E não é.

Deve haver na geladeira
Uma fatia de pudim
Uma garrafa de leite
O telefone dela e também do corpo de bombeiros
Grudados na porta por irritantes ímãs
Que caem sempre que se abre a porta
Da geladeira.

Perto da cama não pode faltar uma terrina
Cheia de água
Embora uma garrafa também sirva.

A cabeceira
A parede da cozinha
A mesa de centro da sala
Deve ser o mais longínquo esconderijo
Do telefone.

À porta do prédio, o porteiro e um botequim
Senão uma boate
No mínimo um cão de caça.

Se nada disso houver
Se não houver ninguém
Melhor ficar atento
Acordado
Porque a morte
Deve andar perto.

12.03.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E SETE –

O tema de abertura foi o mesmo que Stanley Kubrick escolheu para uma das principais cenas daquele que viria a ser seu último filme, Eyes wide shut – na versão brasileira, De olhos bem fechados, com Tom Cruise e Nicole Kydman, quando ainda eram casados e viviam um outro casal, naquele roteiro.

Um ator representa a morte – menos que pela foice, o capuz e a vestimenta cumprida, muito mais pela expressão do rosto. (Que se desfez um pouco ao reconhecer alguém na platéia, não se sabe se a namorada, um amigo ou a irmã: foi o ensaio final, aberto a uns poucos convidados.)

Nessa Minaçu de 2005, – suas farmácias atropelando-se na Avenida Maranhão, esbarrando-se nas incontáveis lojas de tecidos e mercados que se querem fazer de super-mercados – nesse período úmido, numa noite de poucas estrelas, sem chuva, o ar, um pouco abafado, -ali, no Centro Cultural, onde a platéia ocupa cadeiras escolares que se usavam mais antigamente, com tampos basculantes de fórmica, todos para destros - Água, Terra, Fogo e Ar, representados por adolescentes, impressionantemente obstinados, idealistas, talentosos.

Isso de um ponto de vista preconceituoso: fosse Minaçu um grande centro, seriam vistos da mesma forma: obstinados, idealistas, talentosos; mas não “impressionantemente”.

Havia muito mais na trilha sonora como havia fumaça, luz estroboscópica, belos figurinos, costurados por uma associação de costureiras, algumas delas, mães de atrizes e atores no palco. Mas o melhor de tudo nos efeitos visuais ficou por conta de um ventilador, explicitamente exposto no palco a soprar as vestes da moça que vestia o papel do Ar, o Elemento Ar: sim, é tudo de mentirinha; sim, é tudo verdade - a mais concreta que há.

Idealistas, chamam-se de Agentes Ambientais. Organizaram-se por ocasião da implantação da segunda hidrelétrica e assim se mantém, com o apoio das empresas da região, principalmente pela responsável pela segunda hidrelétrica, mas, acima de tudo, por uma determinação e um talento que seriam impressionantes em qualquer grande centro do mundo – e, portanto, sem qualquer preconceito. Meninos e meninas de 15 até, sabe-se lá, 17 ou 18 anos. Estudantes, base sólida apesar de tão poucos recursos na região, postura firme, sorriso largo. Às vezes, uma timidez; e daí?

Freqüentemente, em diversos locais da região, apresentam peças sempre com o mesmo tema: o descuido para com o planeta. Depois do espetáculo (ainda em seu último estágio de experiências, para estrear na noite seguinte ainda para convidados especiais – prefeito, padre, juiz e juíza, entre eles), a convite do diretor, um dos comentários vindos da pequena platéia foi: tema batido, mas apresentado tão naturalmente, com espírito e graça. E não à toa: às tantas, surge um ator do meio da platéia batendo pratos metálicos, paramentado de poluição – uma peruca, roupa cinza, a voz, bem colocada, belo contraponto.

Monólogos de envergadura foram ditos desenvoltos, como se fossem todos eles atores e atrizes de grande experiência.

Caiu hoje de madrugada Zé Dirceu, um dia ícone e, hoje, indesejável do PT.

Caiu muito mais por terra hoje à noite em Minaçu, cidade que poucos conhecem e em muito menor número sabem que existe. Só não se sabe exatamente o que foi que caiu, que não foi o Zé Dirceu: foi coisa, atitude, - não gente, que ruiu por terra, hoje, no Brasil. Só se sabe que foi coisa ruim, que atravancava, impedia, afastava, excluía. Muito, muito pior que atos ou atitudes de políticos, e que se duvide mesmo que tenham sido ou não comprovados, sejam eles de esquerda, centro ou direita, o que caiu hoje em Minaçu – ou começou a cair - foi um monstro – e levará tempo para que se saiba seu nome e mais tempo ainda para se saber que foi em Minaçu que ele iniciou sua queda e seus efeitos transformadores que virão.

Esse foi o relato enviado por Ricardo Coração dos Outros V à universidade americana que patrocinava seus escritos acerca de possíveis transformações que poderiam ocorrer no Brasil, em 11 de dezembro de 2005, às 23 horas e 40 minutos.

Só muito recentemente foi que se soube que o texto foi escrito por sua mulher, a americana Rita.