4.10.2022

CARTA AO DIREITO

 Formatura da turma 2021/1 de Direito da Unisul

Carta ao Direito

Mario Benevides – 26 de março de 2022

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Às senhoras e aos senhores membros da mesa e a todas as pessoas que estão aqui conosco,

boa noite.

Venho aqui compartilhar uma carta-poema dirigida a um amigo de todos nós, dentro ou fora deste ambiente. Importante lembrar o que disse Vinicius de Moraes:

amigo a gente não faz, amigo a gente reconhece.

Como toda carta, começa com local e data.

 

Florianópolis, 26 de março de 2022.

 

Meu caro amigo Direito:

 

Começo por te dizer que de cor nada tem a ver com decorado, ou memorizado:

de cor quer dizer do coração.

Pois é assim, amigo Direito, que te dirijo essas palavras: do coração.

Sem te pedir permissão, de público.

 

Falando em memorizar,

sabias que, nesta noite inesquecível,

teremos uma festa com direito a open bar?

Então bebamos também água e juízo

Para que a noite, além de inesquecível, seja memorável.

 

Te quero, Direito, mais que amigo do peito.

Todos te queremos caminho para a Justiça.

Mas, se Drummond encontrou uma pedra no meio do caminho,

no caminho para a Justiça, para os menos afortunados,

há uma rocha.

Em vez de instâncias, há distâncias.

Não raro, são presos por furtar comida,

sem direito a julgamento.

 

Darcy Ribeiro disse há muitos anos

que se governantes não construíssem escolas,

logo estariam construindo presídios.

Por isso, Direito, a escola pública tem que ser a escola do Darcy:

em tempo integral,

com crianças e jovens aprendendo,

praticando esporte,

em contato com a arte,

com alimentação, recreio e banho,

levando ensinamentos para os seus,

longe do crime, da milícia e da polícia.

 

 

 

Educação é oportunidade,

trabalho digno é oportunidade.

Um povo sem oportunidade é um país sem oportunidade,

fadado a ser um PIB, nada mais que um PIB.

 

Direito, não te quero mais nem menos

que qualquer outra ciência, arte ou ofício.

Por isso te quero lado a lado com a matemática e as línguas

desde o ensino fundamental.

Quem tecla no celular com a velocidade da luz

certamente é capaz de compreender teus conceitos

da importância das leis, do saber que,

o que é de direito,

tem que ser direito, e não omissão ou vedação.

Quem tecla no celular com a velocidade da luz

certamente é capaz de entender o que é dever

e que o dever é somente dever,

e não um dedo em riste ou uma arma no nariz.

 

Te quero, Direito, no ensino médio e profissionalizante,

a Pirâmide de Kelsen

com a Constituição no topo

a irradiar valores e princípios às leis.

Te quero fato, valor e norma do nosso Miguel Reale

explicados com simplicidade e prazer

no ensino médio e profissionalizante.

 

Uma teoria mais ou menos recente é a das partes interessadas.

Por exemplo, amigo Direito,

o Ministério do Trabalho deve existir para representar quem trabalha,

o Ministério da Empresa deve existir para representar quem empreende,

e o Ministério da Fazenda deveria se chamar Ministério do Contribuinte.

Concordas, Direito?

 

Sem conhecer essa teoria, no século XIX,

o alemão Ferdinand Lassalle defendeu que uma constituição

deveria contemplar todas as partes interessadas da sociedade

ou não passaria de uma folha de papel.

Já no século XX, outro alemão, Konrad Hesse,

defendeu que a constituição não deve ser vista como mero papel,

e essas duas formas de pensar não me parecem contraditórias

e sim complementares.

 

Pois é isso que é a Constituição da República Federativa do Brasil:

contempla todas as nossas partes interessadas,

é escrita em papel e está disponível nas nuvens que acessamos todos os dias.

Se o Hino Nacional todo mundo canta mas ninguém sabe a letra,

da Constituição, todo mundo fala, mas ninguém lê.

Por isso fazem gato e sapato de nós,

por isso passam tratores sobre nós,

perdidos na nuvem do não-saber.

 

Tudo poderia mudar, Direito, se o que se enseja no preâmbulo da Constituição –

uma sociedade livre de preconceitos tendo a liberdade e a justiça como valores supremos,

comprometida a resolver controvérsias internas ou com outros povos pacificamente -,

fosse dado de beber como a água do bebedouro da escola e da universidade.

 

Eu,

que vi a Constituição ser fecundada nas marchas das diretas já para presidente em 1984,

que acompanhei e debati seu texto dia após dia em 1987 e 88,

logo te reconheci amigo.

A engenharia, que me trouxe até aqui, permitiu que nos tornássemos melhores amigos

com três vezes os 22 anos com que me graduei naquela outra ciência.

Por isso acredito que teríamos menos palavreado enganoso e nuvens de fumaça

se os Fundamentos da República Federativa do Brasil –

a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político - fossem dados de comer

a quem come nos refeitórios e lanchonetes da escola e da universidade.

 

Se a plena noção e a paixão do que reza nossa Carta Magna –

os Poderes são três, exclusivamente três, e todo poder emana do povo,

que em maioria crê em Deus e quer Estado e religião distantes um do outro -,

fosse dado de beber e de comer a quem tem sede e fome de saber e pertencimento,

calhordas não se atreveriam a nos ameaçar com nossas armas,

a rasgar nossa Constituição e ameaçar nossa democracia,

nem ousariam a nos empulhar com sórdidos pseudopastores

a se imiscuírem em assuntos de Estado.

 

Darcy Ribeiro também alertou

que a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto.

Isso explica, amigo Direito,

porque arrancaram tuas vizinhas sociologia e filosofia do currículo escolar.

Nesses tempos em que a senhora robótica,

cheia de vitalidade e capacidade de reprodução,

se uniu à jovem e brilhante inteligência artificial

para nos livrarmos do que para nós possa ser um fardo,

o projeto é criar autômatos humanos a perder seus empregos para os de plástico e metal,

a perambular invisíveis, drogados, traficando, prostituídos a caminho do presídio

e da loucura.

 

Direito, considero a palavra tolerância tão injusta e arrogante quanto a sua oposta.

No lugar de tolerância, o que a maioria de nós quer é convivência respeitosa e pacífica.

Se tu estivesses nos bancos escolares e universitários,

talvez o preconceito e a covardia contra negros, índios, mulheres e LGBTQIA+,

entre outros, desaparecessem.

Da mesma forma, estou certo de que no dia que princípios e valores

sejam dados de presente à infância, à adolescência e à juventude,

gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta

ficaria na triste memória desses nossos tempos

em que esses versos musicais de Milton Nascimento e Fernando Brandt

persistem a conviver com nossa indiferença.

 

 

 

Dia haverá, meu amigo Direito,

em que a nossa sociedade será pautada pela Constituição da República,

e todos temos certeza

de que esses jovens que se formam hoje serão parte fundamental disso.

 

Talvez chegue ainda outro dia, longínquo dia,

em que a sociedade será tão respeitosa, solidária e amiga

que as leis não sejam necessárias,

e nesse dia, talvez utópico dia,

tu, Direito, não serás necessário.

 

Não chores, meu amigo.

Quando não fores mais necessário,

para sempre serás bem lembrado

por causa do segredo que me sopraste ao ouvido

logo quando comecei a rascunhar mentalmente esta carta,

logo no começo dos teus ensinamentos,

segredo que, mais uma vez, sem tua permissão, aqui e agora revelo.

 

Tu, Direito, para sempre serás lembrado

pelo teu verdadeiro nome.

Afinal, Direito, teu nome

é respeito.

 

E que em um dia próximo esta palavra substitua

o obsoleto, incompreendido e por isso tantas vezes distorcido Ordem e Progresso da bandeira do Brasil.

Que um dia o respeito seja gravado na bandeira e na alma brasileiras.

 

É o que mais quero,

querido amigo Direito.

 

Muito obrigado.