10.02.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E OITO –

Ricardo II morreu na segunda guerra mundial. Resolveu que seria correspondente de guerra para desespero de Maria Cristina, com quem se casou depois que ela se arrependeu de ceder às pressões familiares para deixar o plebeu Coração dos Outros II e enamorar-se de um rico filho mais moço de um nobre e já ligeiramente velho amigo de Alfredo D\'Escragnolle (Visconde de) Taunay - com o qual o antepassado do ex-quase-noivo de Maria Cristina teria estado na “heróica retirada da Laguna”.

Da mesma forma que pode soar estranho que tenha sido heróica uma retirada, muito estranho era, para muitos, que Ricardo II e Maria Cristina se dessem tão bem, como deixou registrado o amigo dele do qual descende um conhecido Profissional de Comunicações e Reportagens desses nossos dias de 2020. Talvez, aliás, bastasse saber que Ricardo II deixou a viúva com dois filhos, Ricardo III e Ricardo Maria, e duas filhas, Ricardina Cristina e a poetisa, que morreria concretista, Olga Cristina Bastos Coração dos Outros – embora, é claro, filhos, ainda que em número significativo, nem sempre sejam sinal de amor verdadeiro. Mas o deles era.

Convém fazer logo outro registro de interrupção de trajetória visível a olhos meramente humanos: Olga e Ricardo Coração dos Outros, de cuja fuga do Rio de Janeiro dos tempos do Marechal de Ferro nasceria a dinastia da qual aqui livremente se fala e que participou de importantes e nem sempre heróicos episódios da história pátria, especialmente a Revolução de 2017, simplesmente desapareceram, sem deixar nenhum sinal que fosse, em mais um percurso de Cavalcante ao Rio – exatamente quando o objetivo da viagem era conhecer a nora, Maria Cristina. Deixaram em Cavalcante a única irmã de Ricardo II, Ricardina Olga Tavares e Silva, casada com o Coronel Eurípides Ovídio Tavares e Silva, que não foi a nenhuma guerra não por outro motivo que não fosse o de que seu título militar tenha sido obtido pela sua atividade de dono de mina de ouro – alguém que explorava não só minério, mas mão de obra também (tudo indica que com alguma correção pecuniária, mas com certo excesso de autoridade).

A atividade de exploração mineral ainda perduraria por muitos anos na região, para onde o fluxo de nortistas do Pará e nordestinos do Maranhão foi bastante intenso, até ainda depois da fundação de Minaçu, em 1976. Por exemplo, no centro mesmo de Cavalcante, havia uma mina que foi passando de mão em mão a cada vez que dava sinais de exaustão até idos já deste século XXI. O garimpo a base de mercúrio e bateia na beira dos rios e diferentes formas de mineração de algum modo legalmente constituídas conviveram por séculos, gerando um pouco de tudo que há na história humana: povoados, cidades, riqueza, pobreza, miséria, fidalguia, covardia, famílias, desavenças, disputas judiciais, matança de índios, abruptos desemprego e perda irrecuperável de renda, vida nômade, outras matanças, sangue - mais sangue, até, que ouro.

Porém, tal e qual nem toda riqueza vem do ouro – em sentido largo e estrito -, nem sempre foi o ouro que causou sangramento e desgraça na região.

Dentre algumas das anotações do falso antropólogo italiano, a serviço dos empregadores de Ricardo V a seguir e reportar seus passos, porque este desenvolvia na época suas primeiras idéias de uma revolução social pacífica, achou-se a seguinte:
“R V cismou de fazer caminhadas. Debaixo desse sol acachapante, o louco sai andando desde a casa dele, na Vila de Furnas, perto da esquina de Porto Colômbia com a Av Maranhão, até o centro da cidade, percorrendo a mesma Av M de ida e volta, numa distância total superior a 10 kM. Isso às 4 ou 5 da tarde, mama mia!, quando o sol ainda está fervendo e do chão de asfalto sai o bafo do demônio. Ainda bem que está terminando a estação seca, quando só se respira poeira quente e a gente nem precisa de cachaça pra sentir tonteira, porque seguir o camarada debaixo de muita água é desgraça um pouco menor que ficar debaixo desse sol daqui. Hoje dei sorte de pegar o moto-taxi certo, uma mocinha gostosinha de apertar na cintura e que respeita os quebra-mola, não é que nem uns doido que tem por aqui e ultrapassa os cruzamento sem nem olhar. Hoje, como estava chovendo, o maluco resolveu mudar o trajeto e ficar subindo e descendo a Porto Colômbia pra cima e pra baixo e fiquei que nem um idiota atrás dele, na garupa da motoca. Tá na cara que ele já sabe que eu estou na cola dele, mas não tenho o que fazer, os americano querem assim, depois invento umas bobagem e eles fica satisfeito. Vi umas meninada interessante saindo do colégio, valeu a maluquice diária. Os menino de chinelo de dedo, aqui não parece chinelo que a modelo famosa usa, é chinelo de dedo mesmo, nem dá pra chamar de flip-flop que nem os americano. As menina, que graça, fala umas palavra bonita e de repente uns ‘caralho!’, esses brasileiro parece italiano. Mas que pena: Sábado passado, de noite, já era quase Domingo, um meninote que reclamou que um outro tinha roubado o boné dele foi espancado pelos amigo do ladrão do boné na porta do baile onde eu estava, boa parte da cidade estava no baile. O rapazola que levou porrada foi em casa e voltou com uma faca de cozinha e, mama mia, tem um que ficou sem o braço e outro que perdeu os dedo e um terceiro foi a orelha esquerda que deixou ele. Pena que o quarto foi furado no fígado, morreu na hora, uma pena, tudo uns garoto, tudo com cara de anjo. Tem uns dois paisano na minha cola, já saquei, todos os dia.”.

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