10.29.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E DOIS –

Naqueles dias de 2005, de crise política e referendo à proibição das armas – amplamente recusado -, as sensações variavam do espanto à revolta, passando pela indiferença pela repetição das reportagens e cenas de acareações e interrogatórios conduzidos pela comissão parlamentar mista de inquérito então constituída. Quanto ao referendo, houve quem dissesse que o “não”, que venceu ao “sim”, não fosse restrito à proibição da venda de armas, mas significando também repulsa à “caixa dois” - a própria caixa de Pandora, que foi a primeira mulher feita por Zeus e entregue a Epimeteu, que possuía a misteriosa caixa, que Pandora abriu, sem saber que assim deixaria escapar da caixa a inveja, a vingança e o reumatismo, deixando lá dentro somente a esperança - a mesma da população brasileira de quinze anos antes desse relato, de que a política se transformasse, ainda que ruidosa, tediosa e dolorosamente. Sabe-se agora que a conhecida e por vezes desprezada esperança brasileira – não tão diferente da de outros povos, como os gregos - não foi em vão: hoje, em 2020, a política, a partir e por conta da revolução pacífica de 2017, mantém-se elevada.

Dez anos antes da revolução, Giulio Vincenzo, o falso Vincenzo Scarpini, assumira estratégia semelhante ao daquele “our man in Havana”, de Graham Greene – com muito menos imaginação. Como não encontrava mais o que dizer sobre seu vigiado, passou a enviar aos seus chefes nos Estados Unidos relatórios inventados; como este, por exemplo (já com a ortografia e a gramática corrigidas):

“R V continua dizendo à polícia que está escrevendo sobre turismo no cerrado. Tive acesso aos seus escritos em arriscada operação. Está marcando regiões em mapas de Goiás e Tocantins, que, na verdade, comunidades americanas vão ocupar, criando novas fronteiras dentro do Brasil. Abadiânia e Cavalcante são as mais riscadas a caneta hidrográfica, em vermelho e amarelo, mas também em azul.”

Ricardo V depois contaria à mulher e ao filho que simulara telefonemas em código de seu celular a supostos cúmplices enquanto dava suas caminhadas, notoriamente seguido por Giulio Vincenzo, sempre na garupa de uma moto-taxi. Dizia, por exemplo, assim:

“Para os mórmons, há boas terras no trajeto de Cavalcante a Minaçu. Já para a Third Millennium Civilization, que acredita que o calor dos trópicos seja a única força capaz de arrancar o demônio dos corpos, já adquiri duas em Palmeirópolis. Há projetos de hidrelétricas em andamento por lá, o que encareceu os preços, mas essas propriedades ficam distantes delas, em locais praticamente inabitados, perfeitos para nossos propósitos.”

Numa dessas simulações, Ricardo V foi ouvido por Pedrosa, agente do Tenente, o que lhe levou a dar explicações, inclusive para a Polícia Federal. Ricardo V foi visitado em Minaçu por um investigador daquela instituição, sob suspeita de traição da pátria. O detetive, depois de passar alguns dias vigiando e inquirindo Ricardo V, prendeu Giulio Vincenzo. Ao perceber o quão despreparado era seu prisioneiro por suspeita de espionagem internacional; depois de ouvir súplicas de Marita, a prostituta dona de um trailer de cerveja e churrasquinho, que lhe garantira na cama do motel que ficava na estrada para Goiânia que o italiano era um homem bom; ainda que obviamente o tal Vincenzo fosse grosseiro impostor, que de cientista não tinha nem sombra, o investigador foi embora. A partir daí, Giulio passou a inventar uma história sem qualquer nexo para a universidade que o contratara, baseada nos riscos que Ricardo V continuava a fazer em mapas que jogava nas lixeiras públicas da cidade, só para manter o estranho ocupado. Os agentes do Tenente, Figueiredo e Pedrosa, foram transferidos para Porangatu. Ricardo V pode enfim trabalhar e caminhar e freqüentar cidade e região em paz - coisa que nenhum habitante de Minaçu tinha em época de eleições, como a que se deu no segundo semestre de 2006, para deputados, senadores, governadores e Presidente; mas só até 2017, pois, em 2018, o sistema eleitoral seria radicalmente modificado, como se sabe.

Já em 1945, a humanidade comemorava o fim da Segunda Grande Guerra enquanto sofria suas dores. Maria Cristina chorava a morte do marido Ricardo II e, para completar o drama, o fato de estar com quarenta anos e quatro filhos para criar sozinha: Ricardo III, com treze; Ricardo Maria, com nove; Ricardina Cristina com sete; e Olga Cristina com cinco, que se tornaria poetisa concretista e que viria a morrer em 1972, aos trinta e dois anos. O que a viúva não sabia era que o mais velho, Ricardo III, viria a se tornar o salvador da família, com seus dotes musicais herdados do avô e muito cedo revelados, logo se tornando famoso, ainda adolescente, apresentando suas canções na Rádio Nacional com sua voz macia e em baixo volume (quase que um prenúncio de João Gilberto). Emilinha Borba gravou dois de seus sambas, mas cortou relações com ele publicamente quando soube que ele dera para Marlene gravar a marchinha “Minhas moléculas estão no teu sangue para sempre”. A versão em Inglês dessa marchinha – “My cheek is your cheek”, ou “Minha bochecha é sua bochecha” -, foi grande sucesso de Carmen Miranda.

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