3.27.2006

O QUE VOCÊ QUER LER?

Mas afinal, o que é que você gostaria de ler?

Da minha parte, li que a candidatura da oposição já nasce com suspeitas de favorecimento de verbas para aliados e que a da situação, enquanto permanecer no cargo, trocará de ministros, tanto os que pretendem se candidatar a cargos eletivos como aquele sobre cuja cabeça pairam tantas suspeitas e acusações.

Li que o tráfico modernizou-se, lançou a cota extra gratuita, de prêmio, disponível a cada dez compras.

Que há mares antes navegáveis e agora, intragáveis.

De um ator de novelas que está fazendo novela que diz ter-se cansado de fazer novela; perguntassem a ele, Você já pensou em quem as assiste?

Quebraram o sigilo bancário de um caseiro! Essa, sim, deveria ser a manchete do ano.

Consta da capa de uma revista que uma cantora afirma e pergunta, Sou bi, e daí? Pois é: e daí? Mais precisamente: e nós com isso? Se ela pelo menos cantasse – houve um tempo em que cantoras cantavam! Não é fantástico?

Saudosismo? Nada disso. Sentir saudades é mirar do alto de calças curtas botas de cano longo, marchando no meio da cidade. Parece que foi ontem – e foi: as tropas saíram por aí PDV porque lhes roubaram as armas debaixo dos narizes. Caramba! Parece que foi sempre.

À procura de um tema capaz de responder à pergunta lá de cima – única realmente importante para esses dedos que vão pintando de preto uma tela em branco, tolas teclas ritmadas ao invés de poéticos pincéis ou nanquins ou grafites, tela que se desfará depois em mudo e inexpressivo cinza e não uma capaz de fixar os dedos de Diego Rivera ou a multifacetada sua mulher Frida Callo -, passei por um quarto de dormir onde de fato dormia alguém, uma menina de doze anos, com um sorriso nos lábios, metade do seu rosto na penumbra, metade clareada por uma nesga de sol que penetrou pela janela sem pedir licença. Não sei se era isso que você queria ler – provavelmente não –, mas era isso o que se tinha a dizer. Mais: era isso que se tinha de dizer.

Por escrito.

3.25.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- QUATRO –

De nada adiantou que o país fosse auto-suficiente em petróleo a partir de 2010, por causa da bem explorada capacidade do sub-solo “on” e “off-shore”, do uso massivo do álcool nos automóveis e da expansão da biomassa na energia elétrica: foi em 2010 que manifestou-se a desorganizada e perigosa convulsão social, que saiu pipocando pelas cinco regiões geopolíticas do Brasil de maneira pavorosa. Ainda era o país da concentração de renda, fosse nos períodos de crescimento, mais ainda nos de contenção.

Agora era diferente. Em 2017, ninguém explicitava seus anseios e frustrações. Ninguém sequer cruzava os braços, muito menos os que perderam seus trabalhos por força do boicote coletivo aos meios de comunicação e à política. Uma proposta de governo militar, “saneador”, foi recebida do mesmo modo: ao invés de indignação e palavras de ordem ou acolhedora aclamação, silêncio. Foi quando o presidente da república, em conversa com o General Fernando, que fora convidado para apaziguar os ânimos das tropas em regime, foi por este convencido a convocar homens de letras, sociologia e antropologia (dentre eles, Ricardo V e sua mãe, Sérgia), matemáticos e físicos, (estarrecidos) políticos, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, (desesperados) profissionais de comunicação e reportagens, empresários e sindicalistas. Formou-se um fórum de setenta e oito pessoas, reunidas no palácio de governo, em Brasília - fato este que foi noticiado, para audiência alguma.

Daquele seleto grupo, onde a presença de mãe e filho – Sérgia e Ricardo V – só não era espantosa porque, ela, há muito defendia o ponto de vista de que a raiz dos problemas era a cultural e enraizada exclusão e má-distribuição da renda, ele, por ter ensaiado algo de parecido com o que estava ocorrendo, em livro que se tornara best-seller, 55% eram homens, 45% mulheres, dos quais, 15% homo ou bissexuais; 58% mestiços e os restantes 42% predominantemente negros ou brancos em, praticamente, igual proporção – o que não ocorria relativamente à distribuição geográfica: região a região, havia mais paulistas, sulistas, nordestinos e radicados ou nascidos no centro-oeste que cariocas e nortistas.

Depois de algumas horas, surgiu, afinal, uma lista de pontos de consenso:

As comunicações se haviam tornado insossas, repetitivas e sem crédito. Programas de entretenimento das massas haviam chegado ao auge da banalização ou mesmo da boçalidade;
A política, por mais esforços que tivessem havido para torná-la o mais transparente possível referentemente à obtenção de recursos e à sua utilização, caíra em terreno tão árido quanto o que estavam experimentando as comunicações;
Era preciso de uma vez por todas haver uma definição da causa indígena: criar uma nação independente, fomentada pelos países interessados na medida – o que causava tenebroso mal estar em alguns setores, como o militar – a Nação Xingu era o exemplo mais citado -, manter as reservas como se encontravam, sabendo de antemão que as verbas públicas para tanto pareciam ser eternamente insuficientes, órgãos indigienistas dando a impressão de abandono, seus escritórios, até de falta de higiene, ou aculturar e absorver de vez os silvícolas remanescentes na sociedade cidadã - o que era duramente combatido por ONGs, governos nacionais e internacionais ou quem quer que se apresentasse disposto a abraçar a causa que fosse e onde fosse;
Ações do Ministério Público, do Governo e do Judiciário em suas outras esferas para punição, anistia parcial e repatriamento de capital transferido para o exterior por brasileiros, abastados ou agraciados (lícita e ilicitamente) mas descontentes com a tributação e respectiva utilização em solo pátrio, de forma ilícita (ainda que tacitamente aceita como usual e correta) não eram percebidas pela população, ou, se o eram, era nada capaz de causar emoção ou contentamento – nada parecia mais despertar ufanismo, desejado por muitos como algo a deixar perceber satisfação patriótica, nem mesmo o velho futebol;
A concentração de renda ainda persistia, embora a fome e o analfabetismo tivessem atingido níveis bastante baixos frente aos padrões da história do Brasil;
A tecnologia avançava em seu ritmo já assimilado mundialmente, ou seja, vertiginoso, o que significava que existiam lares de chão de barro e/ou telhado de palha e/ou parede de adobe no Brasil e mundo afora, onde a tele-multi-mídia exibia toda sua exuberância, nas paredes e bolsos e mesas.

Foi neste momento, quando a lista de pontos de consenso foi concluída, que chegou Ricardo V, acompanhado de duas mulheres: sua mulher, Rita; e Dona Eduarda - até então, ilustre desconhecida. Ele foi recebido com alguns aplausos e expressões entre a recriminação e a estranheza pelo seu atraso; as duas, como se fossem penetras de uma festa para a qual sua presença não havia sido nem muito remotamente cogitada.

Gelidamente.

3.21.2006

O OLHO IMITA A LENTE OU A LENTE IMITA O OLHO

Às vezes se está em algum lugar alegre, cheio de gente em volta. Conversa-se com alguém, sem intimidade, os assuntos vão surgindo e, de repente, a conversa se esvai, muda-se de lugar. Há uma outra pessoa que roubou sua conversa, que monopolizou quem conversava antes com você – que ficou só, na cabeceira da mesa do bar, sem ouvir direito o que os dois conversam. De vez em quando você olha para os outros que estão compartilhando a mesma mesa. E você mira a cena, olha em perspectiva os olhares, trejeitos, quem fuma e quem rói as unhas, quem sente uma súbita e irresistível coceira. Uma gargalhada.

Você volta a perceber os dois que estão próximos, um de cada lado, você, na cabeceira. A conversa segue aos sussurros, você tem vontade de propor uma troca de lugar, há alguém interessante do lado de um deles, mas eles não param de sussurrar, não lhe dão chance de fazer nenhuma proposta. Quer intervir, participar, mas acha que não fica bem. Pensa em ir para o outro lado da mesa, mudar de cadeira, mas as outras conversas parecem estar tão íntimas e exclusivas quanto esta que está tão perto de você – que fica parado, não consegue mais se mexer, não tem oportunidade de se expressar, só pode observar. Nem o garçom se aproxima para lhe salvar. Aliás, agora lhe deu uma sede tremenda, onde uma cerveja?, pelo amor de Deus!, agora uma fome súbita, irresistível.

A conversa dos dois de repente íntimos e exclusivistas se torna um pouco mais clara aos seus ouvidos, você entende perfeitamente o que eles dizem, e eles falam em Francês. Todos falam Francês, e você, não. E daí? Se falassem Português, a sensação seria exatamente a mesma. Inglês, e nada mudaria.

Você vai ao banheiro. Quando volta, a cena permanece a mesma. Quem fumava com mistura de sofrimento e graça continua fazendo a mesma coisa: sim com a cabeça, um sorriso soprando fumaça para baixo, olhares sonhadores. Quem ruía unha agora penteia e despenteia os cabelos com os dedos longos. A coceira de quem se coçava já não é mais súbita; fica indo e vindo, em movimentos agora vagarosos. Os dois mais próximos da sua mesa continuam sussurrando.

Você filma; e mais nada. Filma com os olhos, a imagem ficará somente em sua memória, na de mais ninguém.

Num instante, a imagem passa a se modificar ao seu gosto, sem nenhum comando ou movimento. Você gosta dos olhares, do ambiente ligeiramente enfumaçado, logo você, que não fuma e tem alergia. Percebe o Francês falado sussurrado aos seus ouvidos e sem tocá-los, tem vontade de comentar, fica mudo, distorce as palavras para si a seu gosto. Alguém pede a conta e paga; era isso o que você queria.

Parabéns, diretor.

3.17.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- TRÊS –

Aquele movimento sem nome e sem rosto provocou um retrocesso no tempo: mídia e seus anunciantes foram para as ruas distribuir panfletos oferecendo programações e produtos, em pleníssima era das ultra-telecomunicações, televendas, tudo tele - longe, tecnológico, impessoal.

O Exército mobilizou-se; sem saber contra quem. As tropas estavam lá, nas ruas. Depois, foi a vez da Marinha: mares de frente para as praias tratadas para manter a poluição em níveis aceitáveis, com suas porções reservadas à geração de energia e à sua conversão em água para consumo, além de suas reservas para assinantes, passaram a vir boiarem sobre si embarcações circunspetas, nada esportivas, até agressivas, desde que assim decidissem ser vistas. Jetsons militares passaram a sobrevoar todo o território brasileiro, além de equipamentos bem mais aparelhados e específicos, ruidosos ou não, dos maiores aos menores.

Depois de décadas apregoando que todo e qualquer empregado de toda e qualquer empresa era, antes de tudo, um vendedor, as empresas mantinham seus departamentos de vendas, ainda que com os mais variados nomes. Isso somado àquela onda de silêncio – que, na verdade, se baseava, antes de tudo, sem que se soubesse ainda porque, no absenteísmo do acesso aos veículos de comunicação de massa e de intercomunicação – causou a demissão de quem trabalhava diretamente em vendas. Os demais – vendedores acessórios, por assim dizer – mantinham suas atividades, inclusive a de tentar descobrir o que estava acontecendo e o que fazer para projetar o futuro. Mas todos faziam parte do dito movimento sem rosto e sem nome.

Naquele momento, Cidade do México e Minaçu pareciam-se imensamente – na distância do mar, no ar seco, no aspecto indígena de suas populações, e o mais espantoso: no silêncio.

Nova Iorque era silenciosa, como o era – e sempre foi – a população de Pequim.

Copenhague era diferente, porque sempre o foi; mas a semelhança para leigos desavisados dos trajes de algumas de suas louras com os de algumas louras norte-americanas não-nova-iorquinas – não só trajes, mas posturas, maneira de se expressar – acentuava-se.

E os que distribuíam arcaicos panfletos de propaganda, implorando para que todos voltassem a sintonizar redes, toda a imensa e multifuncional conexão ultra-multi-mídia disponível, também faziam parte; seu corpo a corpo era silencioso, embora sorridente.

E era só no Brasil – mas começava a incomodar o mundo.

E a sensação de desconexão foi maior. Depoimentos dos líderes mais importantes da China e dos Estados Unidos bem o demonstraram. Toda aquela momentânea mas duradoura desconexão já traziam, mais que desconforto, evidentemente, prejuízo.

Todas as marchas de protesto que percorreram tão especialmente o Século XX e, já bastante conhecidas na forma e nem tanto em intenção, na primeira década do XXI, passaram a contrastar com aquele espetáculo de indivíduos propondo que fossem aceitos pelos passantes panfletos de papel pelas ruas de cidades grandes e muitas outras de outros portes do Brasil.

Tudo isso, como se sabe, aconteceu há somente três anos. Um batismo do que ocorria ficou gravado na memória de dois amigos. Em conversa ligeiramente embriagada do General Fernando com seu amigo Almir, ambos da reserva (militares aposentados), em uma noite no apartamento do General, este, que geralmente não veste nem pijamas nem qualquer outra roupa quando está em casa, e que houve por bem manter-se vestido naquela noite de uisquinhos, disse assim a Almir:

- É a Revolução do Silêncio.

Em seguida, Almir pensou em silêncio alguma coisa genial de que jamais conseguiu se lembrar, a empregada bocejou e deu boa noite e retirou-se e Almir resolveu despedir-se também e foi para sua casa, a pé, sem medo, com muito sono.

3.13.2006

CUCARACHA

(PARA TERÇA, 14 DE MARÇO DE 2006.)

“Cucaracha / vou-me embora lavar prato nos states / logo agora / que eu me vejo tão somente coração / logo agora / que a orquestra toca essa do Roberto / que eu me vejo baterista rindo à toa / nos teus braços, um artista / logo agora” (de uma canção em parceria com Tião Coelho, engenheiro e compositor).

O Brasil é um país onde um documento dentro de seu prazo de validade não vale. Isso mesmo: se seu passaporte está com menos de seis meses para expirar sua validade, vá à Polícia Federal e não dê queixa nem se queixe, não: tire outro – pois, com o seu atual, você sequer consegue embarcar, para qualquer que seja o país para onde você precisa ou deseja ir.

Para ir ao México, agora, é exigido visto. Claro: virou moda ir pra lá para se juntar a mexicanos desesperados e cruzar a fronteira para o Grande Irmão do Norte. Fizeram uma novela no ano passado sobre o tema, não foi?

E assim vamos nós, brasileiros, mantendo-nos com fama de ilegais, indo embora pros states para trabalhar em atividades que os americanos já não querem mais pra eles. Vamos lá, macacada, virar cucaracha.

Vistos para os Estados Unidos já são negados até para profissionais de nível superior devida e comprovadamente empregados no Brasil, que gostariam somente de visitar Disney World ou Nova Iorque - porque nós não merecemos crédito.

E não adianta dar desculpas, justificativas, explicar que o Brasil não oferece empregos, que é preciso ir para os states lavar pratos porque lá eles pagam em dólar. Fato é que, lá, a classe um dia ou ainda média brasileira não se envergonha de fazer trabalho subalterno, coisas que aqui não quer fazer nem jamais faria, imagina, lavar pratos. Nem pensar em tentar mudar de cidade no próprio Brasil, para buscar um emprego de acordo com suas aptidões, pois “Nova Iorque é aqui / Nova Iorque é ali / Nova Iorque é mais perto que o sertão” (canção de Sá e Guarabira). Cobrar do governo, protestar, exigir redução da carga tributária, eficiência, probidade, tudo mais que gere emprego, ora, nada disso é brasileiro. Melhor passar vergonha lá fora, ser tratado como sub-raça – mas é lá, nos states. “Fazer a América”. Vale para a classe dita média como para a pobre, tanto faz: já é mais uma tradição brasileira entrar e permanecer ilegalmente nos Estados Unidos, até que venha a extradição ou o “paraíso”: o green-card.

Não há governo que dê conta disso, porque essa já deixou de ser questão meramente pecuniária ou de arranjar emprego, ou ainda de dar vazão a um imaginário e romântico instinto aventureiro. Não é aventura jogar carreiras e estudo fora, desistir da própria terra para competir com desgraçados e desgraçadas de outros países, “para aprender Inglês”, “para juntar dinheiro”, “lá é que é país”.

Nem nossos passaportes merecem mais crédito se não estiverem válidos por longo prazo. Caramba!

Não há governo que dê conta, porque não há governo que não seja parecido com seu povo. O político é Deus: ele está no meio de nós. O político é um de nós. Ou melhoramos nós ou nossos políticos permanecerão corruptos, muitos, envergonhados, poucos, ineficientes, vários, indecentes, mais alguns, despreparados, mais ainda, arrogantes, a dar com o pau, covardes, a grande maioria. Ou continuemos a tapar o sol com a peneira, a deixar pra lá, tudo bem, very good, é isso aí, my friend, podes crer, brother, a Califórnia é diferente, irmão, é muito mais do que um sonho: é o pesadelo da discriminação, do faz de conta pros que estão no Brasil que estamos bem pra caramba e não escondidos nas sombras dos nativos, Jimmis, Edwards, Johns, Joes, Marys, Sarahs, Debis, Lailas, babando pelo dinheiro deles, o idioma deles, o que é deles é que é bom, um dia eu volto, rico, pro Brasil, vocês vão ver. Discriminado aqui, ora, discriminado lá - há quem pense assim, quem sonhe assim, quem faça assim; é assim – e pronto. Acabou-se. Tudo por dinheiro – é esse o tempo; é esse o país: Brasil.

O risco Brasil despencou, ultimamente – é o que dizem os noticiários; é o que divulgam as agências que avaliam o risco de se investir neste ou naquele país.

Sim, o risco Brasil caiu. O risco Brasileiro, não.

3.11.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario BenevidesBrasil, 2005

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- DOIS –

Ricardo V sorveu prazerosamente uns bons goles da cerveja gelada, na varanda da sua casa, de frente para a piscina. Vinha revezando esse novo prazer com as viagens ao Rio, Orlando, Irlanda e Escócia, seus escritos e longas caminhadas, com direito a acampamento, em companhia de Rita e do filho Ricardo VI, pelas trilhas na Chapada dos Veadeiros, suas matas e cachoeiras. Ricardo VI estava com 14 anos e Rita, esplendorosa: o bronzeado produzido pelo sol filtrado pelas matas fazia um belo contraste com seus cabelos ruivos, escondendo um pouco suas sardas, deixando delas somente uma sombrinha graciosa; suas pernas e a barriga geralmente expostas pareciam agradecer ao exercício oferecido pelas trilhas. Mais ainda, Rita vivia fase de grande vivacidade mental; voltara a pesquisar índios e demais raças que habitavam aquele Brasil de 2017 e comparava-os, sem qualquer compromisso científico – muito pelo contrário – com os celtas e suas tradições ainda existentes na Irlanda, Escócia e Galícia. Raças que, no seu entender, teimavam por resistir e continuar a existir, mesmo que vivendo longos períodos das mais diversas formas de submissão.

Numa daquelas caminhadas, deram com a comunidade descrita havia sete anos pelo então Coronel Fernando, sem travar qualquer contato além de cumprimentos amistosos e silenciosos, pois perceberam que se agissem diferente o resultado teria sido igual: o mesmo silêncio observador.

Ricardo V deixou a cerveja de lado, espreguiçou-se, deu um mergulho e deixou mulher e filho na piscina, para tomar um banho e sair de carro. Visitou um dos diversos assentamentos coletivos da região rural e percebeu quase que o mesmo silêncio da “comunidade do General”, como haviam se habituado a chamar os silenciosos da chapada. Tentou puxar conversa com um dos agricultores – um dos mais ativos, produtivos, alguém que soube aproveitar a oportunidade de receber um lote de terra e treinamento para o explorar, e que conseguira obter para o assentamento um bom sistema de logística para entrega de insumos e escoamento da produção, superando exemplarmente a cultura de subsistência -, e só recebeu em troca um amigável sorriso. Tentou novamente: futebol, um sorriso; política, uma cara amarrada, foi o que conseguiu em troca.

Foi até uma bêbada contumaz. Como vai, Dona Zeza, tudo bem com a senhora? Ela levantou o rosto na direção dele, sorriu, fixou seu olhar do de Ricardo V, baixou os olhos e tirou mais um trago do gargalo da garrafa de cachaça. Ele sentiu-se um idiota, debaixo daquele sol estonteante como sempre e pensou em voltar para casa, para sua piscina.

Ou para seus escritos? Ou ao telefone ou à rede – para uma conversa com o General?

Caminhou um pouco mais, entrou no carro e dirigiu até um bar no centro da cidade. Lá, encontrou conversa; pediu um chope, que bebeu de um gole só e foi para casa, um pouco mais satisfeito. Mas intrigado; e atordoado. Sol demais, cerveja demais para sua parca experiência como bebedor, comida de menos, conversa pouca, silêncio demais na zona rural. Lembrou-se de 2006, do Movimento dos Sem Terra, da sua invasão ao laboratório rural de uma multinacional de papel e celulose. 20 anos de pesquisa destruídos por algumas mulheres pobres e ignorantes, em nome de um “protesto para chamar a atenção da sociedade”, à guisa de atacar “os novos inimigos: as transnacionais” – palavras do líder do MST.

Que silêncio era aquele?

3.06.2006

CADÊ O ÔNIBUS

Uma poesia sem verso, espalhada em prosa, solta em frases curtas e longas, pontuadas com vírgulas e pontos, espaçando-se ao longo de parágrafos, que não falava de amor nem de morte, falava da vida, inclusive e principalmente da alheia, mas, sim, falava da vida, nos morros, asfaltos, calçadas, apartamentos, mansões.

Procurava compreender o porque da diferença de apartamentos, mansões e bancos de praça, evitando para isso a rima, fugia da métrica como quem foge da polícia.

Deixou para trás, como já dito, o verso e, conseqüentemente, as estrofes, substituindo-as por formais parágrafos.

Examinou alguns lares, lares desfeitos, recém-construídos outros, alguns idosos, solitários, unidos, vizinhos, clandestinos, em suspiros de amor e de morte, embora tivesse tentado evitar esses temas tão complexos.

Quisera ater-se no concreto não do verso mas da existência, pecúnia, peculato, pederastia, pedofilia, predisposição, resfriado, gripe, matrimônio, separação, virgindade, estupro, assassinato, fortuna e miséria, dor de barriga, azia, dor de cabeça, enxaqueca, calcinha, sutiã, cuecas penduradas em um varal de subúrbio, cachorros magros e seus latidos afônicos, uma limusine.

Entretanto, o que acabou acontecendo foi uma crônica, gênero tão desprezado e ao mesmo tempo tão presente, todo cronista corresponde-se com seus leitores, a crônica é o bate-papo à distância, um cafezinho ao telefone, um chope de aeroporto, um vôo perdido, um novo sonho esperando o próximo.

Uma poesia sem verso
espalhada em prosa
solta
em frases curtas e
longas
pontuadas com vírgulas e pontos
espaçando-se
ao longo de parágrafos
que não falava de amor nem de morte
falava da vida principalmente alheia
falava de amor
falava de morte.

E era só uma poesia, poeminha de se guardar na gaveta, crônica de se ler no ônibus, cadê o ônibus, a cidade comeu o ônibus, o futuro engoliu a cidade, a cidade levou junto a gaveta, só ficou a crônica

Da poesia
Saudosa do verso.

3.04.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005
TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- UM –

O General Fernando caminhou com seu amigo Almir ao longo da calçada da Avenida Atlântica tal como fez, em 1° de abril de 1964, Carlos Drummond de Andrade, em companhia de Carlos Heitor Cony. Havia várias diferenças entre os dois encontros. Primeiro, em 1964, no dia em que foi anunciado à nação que o Presidente João Goulart fora derrubado por uma assim chamada revolução, comandada por tropas militares, a Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro, ainda não tinha passagens subterrâneas e passarelas aéreas, nem trechos privativos ou pontos de pouso nos prédios para os mini-turbo-helicópteros de hoje, os populares (no nome) Jetsons, por causa de um desenho animado de Hanna e Barbera, dos mesmos anos sessenta do século passado. Aliás, em 1964, nem mesmo havia sido duplicada a pista para automóveis. A rebentação do mar, na infância dos dois generais da reserva, se dava lá longe, para depois as ondas virem se desfazendo, lentamente, até a beirinha, era como via em sua memória o General Fernando, enquanto caminhava com o amigo Almir.

A segunda diferença é que, naquele dia de 2017, nenhum golpe ou revolução fora anunciado; apenas havia um silêncio até então desconhecido pela maioria.

- Depois que você me telefonou, eu tentei descobrir a que diabos de silêncio você se referia. Copacabana continua como sempre foi, alguns investiram na despoluição sonora, outros preferem pagar a multa. Aí foi que percebi, quando liguei a minha tv. Aliás, um modelo novo, você precisa ver, deixa o que o Bradburry imaginou em Farenheit 451 parecendo coisa do tempo das diligências, se é que você me entende. Você leu o Farenheit 451, Fernando? Leu, né. Você é teimoso, Fernando, você se referiu ao silêncio do povo, mas o silêncio do povo está vindo é via televisão, mídia, comunicações. O indicador da assistência que aparece no canto superior esquerdo - que é restrito ao Brasil, claro, vamos frisar -, que costuma indicar alguns milhões para a totalidade e uns bons milhares para cada canal, - até, às vezes, dependendo do canal e horário, uns milhõezinhos – rapaz, mostrava centenas! No total, uns míseros milharezinhos! Você acredita, Fernando?

- O mortal silêncio das tvs – que, na verdade, é o silêncio do povo, que silenciou suas tvs. Pior, muito pior do que aquele silêncio estranho, daquela comunidade de que te falei...

- Eu sei – Almir interrompeu o amigo -, na chapada dos veadeiros, em Goiás. Mas não foi só isso, não.

- As redes – adiantou-se o General.

- Isso! As redes, as duas, a dez a doze e a TPM, tiveram uma queda brutal de acesso no Brasil – justamente o país de suas sedes administrativas; você sabia disso, Fernando, que desde 2014 as redes têm seus headquarters no Brasil, com crise, seqüestro e tudo, sabia, né? -, a mídia eletrônica está tendo um colossal prejuízo nas últimas horas, aqui no Brasil, meu camarada!

- Quem estará por trás disso? A quem interessa esse tipo de boicote?

- Na tv não dizem nada; mas apareceu um deputado, na tv da câmara, dizendo que, aparentemente, só políticos estavam assistindo tv. Disse isso em tom de ironia, mas depois ficou sério.

Fernando balançou a cabeça e disse, Não pode ser, isso não faz nenhum sentido.

- Mas coincidência não é! – disparou seu amigo de fardas, na reserva, aposentado, como ele.

- Se eu acreditasse que fosse coincidência não teria dado o alarme, não é, Almir? Fui eu que liguei pra você, eu tenho um faro terrível pressas coisas.

- Faro, não: ouvido.

Os dois riram. Fernando confirmou:

- É. Ouvido. Depois do silêncio de Almir, Fernando completou o que pensava:

- Pois é, meu amigo. No Brasil, o mundo da informação está em silêncio, informando para ninguém, a não ser uns poucos. Dentre eles, sim, a maioria deve ser de políticos. E uns poucos mais – que, à medida em que o tempo passar, irão se retirando também da frente das hiper-telas e das hiper-redes, das micro-telas de bolso, de seus micro-teclados ótico-sensitivos, engrossando o número de não-assistentes, não-acessantes, não-público, não-consumidores, não-eleitores. Continuarão trabalhando, normalmente. Mas em silêncio. Palavras, só as essenciais.

- Profético?

- Não. Mineiro!

E riram mais um bocado, risada de amigos, velhos amigos.