8.07.2009

ELIANA DINIZ

Não tenho propriamente uma fé. Tive um catecismo católico muito agradável, menino de Laranjeiras, Rio de Janeiro, em um convento, com árvores, tamarindo, passarinhos e, naturalmente, freiras. Minha primeira comunhão foi franciscana, diferente das usuais naqueles anos, os mesmos quando vi, trazido pelas mãos de pai e mãe, soldados fardados e armados e os dois me dizendo, O Jango caiu e vai sair do Brasil. Meus pais não eram religiosos. Ela, de um internato de um rigor absurdo e crenças assustadoras, a ponto de ser obrigada a tomar banho vestida e dormir com a certeza de que o diabo estava embaixo da cama; ele, do Colégio Zacarias, no Catete, ao qual ia a pé, desde a Rua Umari, nas proximidades do Convento onde fui catequizado, já por falta de dinheiro – meu avô era um aristocrata, de família tradicional, talvez fino, seguramente falido – e saiu sem completar o curso, exatamente por esse motivo. Seguiram suas vidas, tinham curiosidade, liam tudo, os tempos eram outros, de uma forma um pouco diferente da de hoje, não era o diploma que fazia a diferença, a não ser para a tríade medicina-engenharia-direito. Foi assim que fui crescendo, indo às vezes à missa, já no Leme, começo de Copacabana, levando na gozação o “coração ao alto”, sentindo certo alívio quando percebia que a missa ia chegando ao fim. Depois, fui conhecendo a história, preceitos, preconceitos, dogmas, cheguei ao ponto de me sentir espécie de paria no mundo dos crentes, dos que tinham fé. Li Morris West, Nelson Rodrigues e Graham Greene, católicos de diferentes gradações, seus profundos encantamentos e desencantamentos, questionamentos, particularizações. Disso tudo, o que me restou foi uma sensação de ilógica e semelhança entre o Gênesis e o Big Bang e a esperança, mais do que crença, na transformação pós-morte, igualmente ilógica e semelhante às possíveis sucessivas transformações de ameba em quadrúpede, bípede implume, hominídeo, até o homo sapiens. Com relação à Igreja Católica, uma desconexão, uma não-aceitação de certas inflexibilidades, imposições, e a leitura de Em que crêem os que não crêem, troca de correspondências de Humberto Eco – mais um ilustre desiludido e desgarrado - com um cardeal. Ficou-me a mesma admiração dos escritores que citei, mais – muito mais - pelo humano que a instituição; mais por conhecer de perto alguns sacerdotes, sinceros, devotos, convictos e ao mesmo tempo conscientes de tanta incoerência, da defesa do tantas vezes indefensável, do distanciamento do poder do Vaticano corporativo e a dura realidade de crentes e descrentes, a maioria dos habitantes do planeta ainda excluídos, desgraçados, desesperados.

Em que crêem os que não crêem? – permanece a pergunta-título do livro já citado.

Da minha parte, passei a crer na perseverança de Eliana Diniz.

Ela cuida de um lugar que não existe, a não ser em certo gênero de filme americano. Em uma sala de mesas coloridas, há estantes, crianças lendo livros, querendo contar histórias. Noutra, meninos – meninos – tecem colchas, tapetes, panos de prato. Na terceira, meninas e meninos reaproveitam jornais velhos, lidos ou não, e fazem cestos e porta-retratos. Na quarta sala do lugar inexistente, só imaginado em filme americano sobre escolas de música, dança e teatro, três teclados, em cujas teclas se encontram escritas as notas, dó, ré, mi... abrindo o caminho para mais uma sala, onde oito jovens, de todas as misturas étnicas possíveis e sua beleza espontânea, bruta e ingênua, dos dois sexos, aprendem a tocar violino. Sete violinos para oito jovens, fazendo com que um deles fique esperando, olhando para o chão, pensando no que não queria, no mundo que deixou e o espera lá fora. Melhor esperar a vez do violino.

O maestro-professor, como os alunos, tem vida dupla. Os alunos e alunas da casa inexistente estudam em um turno e, no contra-turno, freqüentam o lugar imaginário. O maestro-professor, quando não está lá, conserta relógios.

Meninas e meninos, dos que querem ler e contar histórias aos que aprendem teclado, tecelagem, reciclagem e violino, se dividem entre os que costumam dormir debaixo da mesa da sala das casas onde moram e os que dormiam na rua e hoje vão para o abrigo municipal tentar dormir e sonhar com seus instrumentos, livros e agulhas.

Às vezes, quero desistir, diz Eliana Diniz, é miséria demais, é cada coisa que a gente vê... E dizemos a ela, mas aqui se conseguem resultados tão bons, esses meninos, essas mocinhas, estão encontrando seus caminhos, sonham, aprendem, vão querer se desenvolver, se encontrar em suas vidas, têm sua auto-estima recuperada...

Mas querem que eu tire o almoço deles, ela nos conta, tinha uma verba estadual que acabou e aí eles me disseram que eu tirasse o almoço e continuasse o projeto. Mas como eu vou tirar a refeição deles? Eles comem direitinho, todos em fila, depois eles mesmos tiram e lavam os pratos.

Este lugar de mentirinha fica em Quedas do Iguaçu, interior do Paraná. Só quem vai lá percebe que isso, o lugar que não existe, guarda ilógica e semelhança com o Gênesis, o Big Bang, Adão, Eva e o primata-ameba hermafrodita, o desaparecimento absoluto e a alma, ou seu equivalente, o espírito, partindo para outra, quiçá um paraíso.

Esta a minha falta de fé. Esta a minha crença. A insistência, a perseverança, crer no que não é crível, esperar o que não deve nem pode ser esperado. Mais que qualquer coisa espiritual, lógica ou ilógica, cética ou crédula, sábia ou pseudo-intelectual.

Eu tenho a mais absoluta certeza de que esta mulher, Eliana Diniz, a irmã Eliana, existe.