8.30.2005

ImaGINI!

O matemático italiano Conrado Gini inventou uma medida para a distribuição da renda de um determinado grupo, baseada em dada equação que compara o quanto da renda fica com os mais ricos e o quanto dela fica com os mais pobres. Sem entrar no mérito matemático-estatístico, quanto mais próximo de zero for o índice de Gini, mais proporcional é a distribuição; quanto mais perto de 1, maior é a concentração. Assim, se os 20% mais ricos ficarem com 20% da renda e os 20% mais pobres com 20% dela, estaremos em um país economicamente equilibrado.

Entra governo e sai governo, com os mais variados receituários econômicos, de 1960 para cá, o índice de Gini brasileiro situou-se entre 0,5 e 0,6, aproximadamente. Em 2004, era 0,576, 120° do mundo, quando, na Dinamarca, o índice ficava em 0,247, o 2° melhor do mundo; mas não somos dinamarqueses, ora. Pois Portugal estava em 67°, com 0,385. Esses dados ficam somente para comparação – pois o que deve ser observado é que, seja com Jucelino, Jango, militares, Collor, FHC ou Lula, passando por Sarney e Itamar, e seus respectivos macro-economistas, a distribuição da renda nacional fica ali, entre o ruim e o péssimo. Percebeu? Não é de economia que estamos falando – tão somente de curiosa, para não dizer perversa, constatação: se a economia cresce ou desanda, a mandar pra casa ou pra rua um monte de gente; se a inflação é latente ou pungente; se é a esquerda ou a direita quem governa; ou se o regime é aparentemente democrático ou ostensivamente seu oposto, tanto faz: o Brasil é mais concentrado que leite em pó - sendo que, tal como o velho Leite Glória, vive desmanchando sem bater.

E agora? Ora, José! (Saravá, sinhô Carlos.) Não vá você perguntar aos políticos ou aos seus macro-economistas, nem mesmo aos economistas de plantão na tv, com suas respostas e fórmulas prontas, nem ainda aos bons economistas – os há – o que fazer. Ao contrário; responda depressa: se a distribuição da renda brasileira fosse melhor, (1) haveria tantos farsantes na política? (2) Se você, José, é pobre, seria mais pobre do que é? (3) E se você é rico – seria menos rico do que é? Ah! Você, além de não ser José, é rico, sim; e nem vai-se dar ao trabalho de responder esta questão. Afinal, você não é Papai Noel pra sair distribuindo sua renda pros outros e, com o mesmo direito de nós, menos ricos que você, não confia nem um pouco na gestão dos impostos, gordos impostos arrecadados pelo governo brasileiro – seja ele qual for; não é? No entanto, meu amigo ou amiga cujo nome não sei, se a renda fosse melhor distribuída, até os impostos seriam menores, como menor seria sua dor de cabeça, seja ela por causa da indecisão entre atrasar a conta do telefone ou a da luz, seja a de blindar ou não e em que porção seu belo automóvel.

Mas é muito fácil falar, não é? Ora, se de JK a Lula, nada muda? Se o governo não faz, - isso não é coisa pro governo fazer? Se tanto “fera” em economia não resolve, que petulância é essa, - de vir com liçõezinhas rasteiras e perguntinhas sem resposta?

Só nos resta esperar pelas mais novas gerações e sua superior sabedoria. Só que, no meio delas, vai crescendo a legião dos que não pedem; mandam - com o ferro na mão. Sacou? Não? Ele, sim. Ah, nem pense em se armar e sacar antes! Ele é muito mais rápido; e cresce na razão direta do índice de Gini – que nos EUA-2004 era igual a 0,408, ou o 76° mundial.

8.26.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E TRÊS –

A médica terminou o caso, pois percebeu que o amor dele, Ricardo IV, seria sempre de Sérgia. Mas não sem dor para ele, porque algo especial havia acontecido: uma naturalidade que jamais vivera com a mulher. E não sem culpa, porque gostava perdidamente de Sérgia e a ela sentia-se no dever de ser fiel – palavra que não lhe agradava, mas não encontrava outra melhor para definir a monogamia à qual se sentia obrigado. Por que não falavam sobre isso? Se ela era tão liberal, capaz de rever seus pontos de vista com naturalidade? Se ambos eram bem-nascidos e criados no Rio de Janeiro, ainda que com todas as suas mazelas, ainda assim, a terra de Leila Diniz, Vinicius de Moraes e tantos outros libertários, salgados do mar à volta e à beira do caos urbano? Por que não conversava com Sérgia, que era tão inconformista e libertária e irreverente como os ícones da cidade do Corcovado, capaz de desnudar talvez como nenhuma outra toda e qualquer hipocrisia, desde antes do Redentor, desde Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto, Machado de Assis – desde sempre? Ou Sérgia e ele seriam somente meros teóricos da liberdade e da naturalidade? Entristecia-se ainda um ano depois com o fim do seu caso amoroso com a médica, quando se deu conta de que bebia saborosa cerveja debaixo de uma árvore frondosa, no restaurante Samina, ao meio-dia, em Minaçu, naquele finzinho de 2006. Ele e Sérgia, daquela vez, hospedaram-se no Executivo, na esquina da Rua 2 com a Avenida Maranhão, porque Sarah Shaw Almanendez Chermont, mãe de Rita, ficara na casa de Rita e Ricardo V. Sarah, Sérgia e Rita caminhavam pela Avenida Maranhão, espiando o comércio interiorano.

Depois de deixar a família em frente ao Samina (exceto Ricardo VI, que ficara com as empregadas, em casa), Ricardo V foi ao encontro do Tenente da Polícia Militar, a convite deste. O Tenente lhe disse:

- Encontrei esse caderno no banheiro do La Ventana (bar nas proximidades da praia artificial). Acho que está em Inglês e Espanhol, mas percebi que seu nome e o de Dona Rita estão nele.

Ricardo V pediu para ver o caderno. Disse ao Tenente:

- Está em Inglês e Italiano. Posso ficar com ele?

Depois de hesitar um pouco, o Tenente lhe respondeu:

- Pode. Mas o Senhor vai me prometer que vai me devolver ele. E mais uma coisa: quero que o Senhor traduza ele pra mim, pode ser?

Ricardo disse “Claro que sim”, assinou um termo de responsabilidade e levou o caderno consigo. Entrou no carro, abriu as janelas e começou a ler as anotações. Percebeu ser um relato minucioso dos seus passos logo quando da sua chegada a Minaçu. Ao término do que parecia ser a primeira parte das anotações, estava escrito, em Inglês, “Lugar totalmente inadequado para a finalidade pretendida.” A segunda parte era escrita em péssima caligrafia, que misturava Inglês rudimentar a um Italiano chulo. Mas o principal objeto era, novamente, ele, Ricardo V (Rita era somente citada como sua mulher). Não conseguiu fazer nenhuma outra conexão com aquele interesse de absurdos espiões seguindo seus passos na longínqua Minaçu que não seus escritos. Estava convencido de que fora a universidade americana que resolvera vigiá-lo. Sentiu-se enganado, um idiota, nas mãos de seus patrocinadores. “Finalidade pretendida”: seria ela a revolução de mentalidade, por ele imaginada e proposta em seus escritos?

Quando juntou-se à família, a sogra perguntou-lhe, em um misto de Inglês, Espanhol e Português:

- “Óculos solar”; li isso num loja. Shouldn’t it be “óculos solares”?

- Sim. Um óculo, dois óculos – respondeu-lhe o genro.

- Por isso, “lentes de contatos” – a sogra deduziu.

- Não, explicou-lhe o genro. O certo é “Lentes de contato”.

Ricardo IV, então, tomou a palavra do filho e iniciou dificílima explicação gramatical para os óculos “solares” e as lentes “de contato” para Sarah, que fez ares de contida desaprovação e ficou em silêncio. Almoçaram “peixe na telha” – um “filhote”, espécie então em extinção dos rios brasileiros, de pesca proibida, que às vezes chegava a pesar mais de cem quilos. A comida estava bem gostosa e, apesar do sol torturante, havia uma brisa e a sombra da árvore era uma benção. Sarah e Sérgia entreolharam-se, meio que perdoando os filhos por morarem naquele fim de mundo. (Mas não muito.) “Lugar totalmente inadequado para a finalidade pretendida.” A frase e o insólito diário não deixavam Ricardo V em paz. Cruzou seus talheres e disse:

- Vamos ver quem engana quem.

E então ouviu “What?”, “O quê?”, “Como?”. Desculpou-se por ter pensado em voz alta. Ricardo IV pediu e pagou a conta e foram embora, cada qual com seus pensamentos.

8.22.2005

O FIO

Ninguém diz o que quer porque todo mundo ouve o que quer. Só seria possível se dizer aquilo que se queria se alguém estivesse disposto a ouvir o que se disse. Mas não é assim que funciona. Pelo antiquado telefone convencional, o fio é o culpado; pelo celular ou pessoalmente, provavelmente, sua ausência é que é – e tudo fica por um fio.

Ela chegou em casa muito contente e ele também não ficou triste, ao vê-la de biquíni fio dental, os cabelos, molhados e salgados da praia. Ela estava de férias, ele, não. Beijaram-se e abraçaram-se e ele gostou muito de pensar que seu terno seria lavado mais de sal que da poeira das ruas; mais do suor dela do que dele próprio. Ela sentiu o corpo tocado pelo tecido do terno e teve arrepios agradáveis, mais ainda no rosto, pela barba que já despontava no rosto dele, pelo cheiro do perfume dele, agora esmaecido no rosto ensaboado várias vezes durante o dia, o sal da pele dele misturado com o do mar, que permanecia em seu corpo, no corpo dela.

Ela procurou um lugar na praia onde não fosse obrigada a conviver com nenhuma das tribos: dos adolescentes que haviam chegado das aulas, dos intelectuais de plantão, das peruas, das turbinadas, dos gringos, dos fortões, dos pivetes. A solução foi caminhar, caminhar, caminhar; só parava para mergulhar, entrar na água devagar, sentindo um friozinho, dobrando os joelhos, fazendo xixi discretamente, até que mergulhava de cabeça, levantava-se, sacudia os cabelos, dava três braçadas de costas, pegava uma onda e saia do mar, para caminhar novamente.

Durante o dia, ele só tinha ficado chateado quando o chefe o chamou para lhe passar uma tarefa, nada demais, um tanto banal, e desandou a falar mal do médico que vinha-lhe tratando da rinite, vivia de nariz entupido, cadê meu lenço?, um horror. Seu aumento ainda não vai sair dessa vez, tenha calma, e muito cuidado com suas propostas, você ainda está longe do poder da empresa, não se meta a besta, fique na sua, que eu sou seu aliado; mas lembre-se: bom cabrito não berra. Ele sossegou-se e pensou, não vou perder meu tempo com babaca. Em casa, ele disse a ela, te amo, você está linda, um tesão.

Depois do abraço e do beijo, ela fungou, disse que devia ser da água do mar, que o sal seca as mucosas e é muito bom contra rinite, mas devia estar acontecendo uma adaptação, uma espécie de choque, afinal, era seu primeiro dia de férias, ainda estava impregnada de escritório, de cheiro de tailleur, não era o do terno dele, não. Ela contou a ele que havia se chateado um pouco ao entardecer, quando já se preparava para voltar pra casa e ouviu de um grupo de caras metidos a fortes, de um gênero que ela detesta, o comentário, essa aí vale a pena, eu até que trabalhava, por ela, eu até vestia um terno. Bom cabrito não berra, foi o que eu pensei, ela, em casa, disse a ele, e completou: não vou perder meu tempo com babaca. Você está um charme, te amo, te adoro, ela disse a ele.

Ele disse a ela, vá logo tomar um banho, você está suja, oleosa, mal-cheirosa do mar. Ela respondeu, quem está sujo, mal-cheiroso e oleoso é você, com essa catinga insuportável de escritório. Daí pra frente, o que se ouviu foi barulho de porta batendo. Depois, um celular tocou. Alguém comentou que um cachorro latiu. Mas havia a sirene, como saber?

8.19.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E DOIS–

“Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1922.
Senhores Meus Pais:
Com vosso devido perdão, não entendo como tivestes a coragem de deixar a capital para viverdes como viveis, no meio do nada e sem recursos. (Mesmo sabedor do vosso desgosto com o triste fim de Policarpo Quaresma, padrinho da Senhora Minha Mãe, além de amigo e aluno de violão do Senhor Meu Pai.) Inda que bem me lembre da história que me contastes, isto é, da vontade de Minha Mãe de viver uma aventura, e que compreenda vosso desgosto por terdes, Meu Pai, servido ao exército de Floriano contra vossa vontade, mesmo que inda agora a situação na capital do país esteja tão conturbada, que cidade linda e fervorosa é a vossa! Acabo de assistir às comemorações do centenário da independência, que contaram, inclusive, com a presença do Presidente de Portugal, o Dr. Antônio José de Almeida, dentre outros mui ilustres estrangeiros. Pois que o Conde D´Eu, que vinha da França especialmente para os festejos, reconciliado, desde que, em setembro de 1920, o Sr. Epitácio Pessoa revogou o decreto de banimento da família imperial brasileira, morreu a bordo do navio que o trazia!
Já Dona Chiquinha Gonzaga conta agora com setenta e três anos. Seus chorinhos ainda se ouvem pela cidade e me dão muita alegria; vos agradeço pelos versos que me escrevestes, Meu Pai, aludindo aos choros dessa admirável Senhora. Soube que, em 1903 (eu com meus três anos), Dona Chiquinha Gonzaga viu, em Berlim, composições suas gravadas e editadas por um tal de Fred Figner, sem a devida autorização. Pois o citado Sr. Figner foi processado e, depois de profundas mudanças na legislação brasileira, aos 27 de setembro de 1917, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, foi criada a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, com Dona Chiquinha fazendo parte da Diretoria. Senhor meu pai, mandai-me vossos cadernos musicais, que vou registrá-los na S.B.A.T., para que vossos direitos de compositor sejam preservados para sempre.
Por falar em “direitos”: como me valeram vossas aulas em nossa casa! Ingressei na Universidade do Rio de Janeiro, criada há dois anos por decreto do Presidente da República; formar-me-ei Bacharel em Direito!
Já vos contei? Assisti (estupefato!) à derrubada do Morro do Castelo! Vós acreditais nisso, em tal tresloucada decisão? É o progresso!
Narro-vos agora acerca do “Levante do Forte de Copacabana” - do que li e do que vi.
Creio que mesmo aí em Cavalcante o Senhor Meu Pai e a Senhora Minha Mãe terão acompanhado pelo menos em parte as notícias a respeito. Se assim não for, vos faço sabedores de que, antes, o Marechal Hermes da Fonseca tomara o partido de militares de Pernambuco que haviam hostilizado parentes do Senhor Epitácio Pessoa. Pois que tal fato causou o fechamento do Clube Militar e a prisão do seu Presidente, que vem a ser o próprio Marechal Hermes - simplesmente o ex-Presidente da República! Tudo por causa das "Cartas Falsas", nas quais o Marechal foi chamado de "sargentão sem compostura". (Dizem por aí que tais cartas teriam sido escritas pelo Senhor Artur Bernardes.) Pois que veio o “levante” – o qual foi derrotado. A senha para o início da revolução seria um tiro de pólvora seca - que deveria ser disparado do Forte de Copacabana. Uma contra-senha, então, seria dada por tiros vindos das demais fortificações participantes. O tiro de Copacabana de fato houve, mas sem ouvir resposta que fosse. Assim, às onze da manhã, o Tenente Siqueira Campos comunicou aos seus aliados que haviam perdido a revolução. Em meio ao suspense e antes da marcha para o Palácio do Catete, em dado instante, no Forte, um soldado subiu num mastro para retirar a própria bandeira brasileira, que foi recortada em 28 pedaços! Acreditai, Senhor Meu Pai, Senhora Minha Mãe: a bandeira nacional foi recortada em 28 pedaços!
Despeço-me de vós, meus amados Pai e Mãe, pois agora vou noivar. Meu coração não é mais “dos outros”: já pertence, como sabeis, a Maria Cristina, que conhecereis quando aqui vierdes. Volto a vos escrever em breve; prometo-vos.
Do vosso filho,
Ricardo Coração dos Outros II.”
98 anos após a carta de Ricardo II aos seus pais, permanece a dúvida: seriam 28 os “18 do Forte”? Eduardo Gomes, que participou da revolta quando era um daqueles tenentes, quando já Brigadeiro, declarou que eram apenas 12 – e há registros de que teriam sido 11. Mais recentemente, a história ficou mais fácil e exata, ainda que menos heróica. Com tudo gravado, por exemplo, sabe-se exatamente quantos políticos receberam propina a título de tráfego de votos e outros artigos no chamado “mensalão” de 2005. O que, aliás, não faz como não fez a menor diferença. Pois que a diferença só veio a acontecer de fato depois da Revolução de 2017.

8.15.2005

A

Amoral: o que não tem moral. Muitas vezes o amoral é tido como espécie de marginal, - mas dos bandidos, não somente por ficar à margem, mas daqueles que ficam à nossa volta, roubando porcos, pérolas e lap-tops, mesmo que não faça nada disso, que não agrida nem avilte a nada ou ninguém.

“Atire a primeira pedra” meio que já diz tudo. É como se os puros fossem aqueles que não o são – pelo menos aqueles que não se dizem puros e que não nos exigem que o sejamos.

“Eis que é chegada a hora dos verdadeiros puros” – foi algo assim que disse Vinicius de Moraes, em livro desaparecido na bagunça de quem vem aqui desafiar as leis e especialmente os dicionários, igualmente distantes, neste momento.

Os verdadeiros puros provavelmente são amorais, por não gostarem da moral; a desprezam, por a saberem dedo a acusar outrem para esconder a própria mão que o traz, que costuma cometer delitos geralmente maiores que os supostamente cometidos pelo acusado.

A partir daqui é que se pretende introduzir um outro grupo, que poderá ser tido como amoral, ou, quem sabe, impuro: o dos afiéis.

Muito interessante observar que, dos gregos, dentre outras analogias, herdamos o αβ-to, que começa por uma negação; o contrário: A - de atemporal, anacrônico, anônimo, antônimo... Amoral.

Afiel.

Não precisamos ir ao dicionário para descobrir que os afiéis não se encontram lá, ao contrário dos fiéis e seu contrário, os infiéis. Mas urge que os afiéis passem a fazer parte das definições catalogadas.

Afiel é quem permanece único na vida de alguém e assim se mantém não por não perceber outras possibilidades e não por assim não se perceber. Tão somente se deixa único na vida de alguém por instinto: amorosamente, apaixonadamente, amoralmente; afielmente.

O resto é contrato, fidelidade, adultério, moral. E não a beleza do seu contrário; a do começo.

Pura, helênica e simplesmente “A”.

8.13.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E UM–


No começo, Rita já entendia quase todos os hábitos da cidade e com eles convivia – menos o “salão” (que ela pronunciava – como até hoje pronuncia – sem o til). Tivesse chegado antes da construção da segunda hidrelétrica – ou mesmo durante -, já estaria acostumada, ou ficaria ainda mais espantada com o hábito.

Antes da segunda hidrelétrica, Minaçu era ainda mais provinciana. Durante as obras, eram comuns os bailes organizados em diferentes locais da cidade, especialmente nas noites de sábado. Peões dançavam com engenheiras, engenheiros com sociólogas ou manicures, a população quase que em peso comparecia. Dançavam um ritmo que misturava música regional sertaneja - ou “Brazilian country music” - com alguma coisa parecida com rumba: era assim que parecia aos ouvidos de Rita e de seu conterrâneo Robert Preston Jr., ambos chegados depois da obra pronta e que jamais foram àqueles bailes; mas o ritmo ainda se ouvia em alguns bares e residências, em 2002 – quando Mr. Preston e Rita chegaram, sem nunca se conhecerem - e depois. (Um ano depois, nasceria Ricardo Coração dos Outros VI e Mr. Preston iría de carro até Brasília, fazendo o mesmo percurso de Ricardo V quando, em 2006, foi buscar mulher e filho chegados de Orlando e foi fotografado por Giulio Vincenzo, o falso Dr. Scarpini.) Porém, mesmo quando não havia um único mísero baile para se ir, o encontro vespertino das mulheres era no “salão” – o tradicional “salão de beleza”, tão comum em todas as cidades brasileiras, onde é igualmente comum a conversa entre mulheres, geralmente sobre a vida alheia.

Na Minaçu de depois da segunda hidrelétrica até hoje o hábito se mantém, mas não com a duração e intensidade dos tempos a ela anteriores. As tardes eram imensas – dificilmente havia o que se fazer, a não ser ir ao “salão”, onde duas cabeleireiras-manicures revezavam-se, penteando e “fazendo o pé” ou “fazendo a mão” de – quiçá – todas as mulheres minaçuanas do mundo – mas de uma forma organizada, pois nunca se soube de uma fila. Enquanto duas mulheres eram atendidas, outras esperavam abanando-se e servindo-se de café; e todas falavam ao mesmo tempo. O mesmo Brasil de “Memórias de um sargento de milícias” se repetia naquela vizinhança, onde casos de adultério terminados ou não em morte serviam de assunto por bom tempo.

Rita estava curiosa por conhecer o tal “salão”, ainda pouco compreendendo o sotaque do cerrado. Foi lá acompanhada da assistente social, residente em Minaçu por conta da segunda hidrelétrica e seus reassentamentos, que a levara com o marido, Ricardo V, a uma das comunidades rurais vizinhas. Que era uma tarde muito quente, não era novidade – mas Rita percebeu haver grande excitamento no lugar. Custou a entender: era a mesma história de um estrangeiro que se dissera “turista” por aquelas bandas e acompanhara a assistente social à mesma comunidade e depois fora denunciado por uma jornalista como “falso turista”. Aquela história era repetida em toda parte, inclusive na casa de Rita, tendo sido motivo de brigas do casal, pois Ricardo V desconfiava de planos de dominação da região por comunidades ou instituições norte-americanas – sendo que, às vezes, desconfiava de que o plano fosse do próprio estado americano, do país, os Estados Unidos da América. Ricardo VI já com dois, três anos, em 2005, 2006, e a mesma história ainda amolava a paz do casal – que só viria a conhecer a verdadeira história do falso turista por meio de Giulio Vincenzo, em 2006 – que não deixa de ser relacionada à revolução de 2017, como se verá.

Já em 1920, Ricardo II desembarcava de trem no Rio de Janeiro, capital da República e berço de seus pais, Ricardo Coração dos Outros e Olga, habitantes de Cavalcante, Goiás, onde ele nascera. Era o governo de Epitácio Pessoa. Naquele mesmo ano, foi realizado o recenseamento da população no Brasil, tendo sido contados trinta milhões, seiscentos e trinta e cinco mil, seiscentos e oitenta e cinco habitantes, dos quais um milhão, cento e cinqüenta e sete mil, oitocentos e setenta e três no Rio de Janeiro. Gente pra burro! – Ricardo II, com seus vinte anos, espantou-se. Mais ainda com as tropas na Avenida Rio Branco, perfiladas para receber os reis Alberto I e Elizabeth, da Bélgica. Dois anos depois, testemunharia o levante do Forte de Copacabana. Era demais para um pobre coração dos outros nascido em Cavalcante.

8.08.2005

LAMENTAMOS INFORMAR, MAS O SÉCULO QUE CHEGOU FOI O XIX

Na capa está escrito que a crise sobe a rampa, mas o que chama a atenção é uma alemã, chamada Judith Mair, que descobriu a fórmula da liberdade: a prisão. (A revista é “Época”, edição de 8 de agosto de 2005.)

Pegue lá um conto ou romance do século dezenove – pode ser inglês ou russo, tanto faz. Perceba o ambiente severo de escritórios e repartições: ar sombrio, atmosfera carregada de silêncio e temor, ninguém fala com ninguém, só despacha, defere, indefere, carimba, molha a pena, assina, levanta, vai ao banheiro, volta, senta-se novamente, olhando de soslaio para o chefe, um sisudo, para ver se ele recriminou o tempo em que seu carimbo deixou de carimbar e sua pena ficou seca. Não é de você que falamos - afinal seu século é outro, o do Monge e o Executivo, do líder no lugar do chefe, o que é amado e respeitado e não temido e obedecido.

Pois Dona Judith, 33 anos, autora do best-seller “chega de Oba-Oba!”, descobriu que as empresas ditas modernas escravizam os indivíduos, exatamente por os encherem de liberdade. A liberdade de conversar com o colega, de deixar ligado o celular, segundo ela, escraviza. Ela faz questão de lembrar também que Sábado é dia de churrasco. É claro: com o pessoal da empresa e o chefe – opa! Chefe não: líder. O que ela propõe e pratica em sua empresa? Celular desligado, conversas, só as essenciais, no lugar de nomes, sobrenomes. Em contrapartida, acabou o expediente? Até amanhã. Nada de “confraternização de fim de semana”; ninguém do trabalho vai ligar convidando você para uma partida de tênis ou uma rapidinha, isto é, reuniãozinha, na tarde de domingo. Ou, como conversam os humildes: “A que horas você pega no serviço?”. “Pego às 8 e largo às 18 e folgo no fim de semana.”.

Acompanhados de Judith, saímos do século XX e chegamos não ao XXI, mas ao XIX; e começamos a achar que fizemos bom negócio: as guerras tão cedo serão atômicas; morreremos de tédio e tuberculose e não de atropelamento e stress. O chato é que o mesmo triste espetáculo se repete: a crise sobe ou desce a rampa, discursos enfadonhos e vazios nos penetram a intimidade e os ouvidos, sofistas e dialéticos se revezam a discutir se precisamos ou não de líderes, se liderar é chefiar, nata qualidade ou aristotélica ou maquiavélica invenção. Se você trabalha, dá graças a Deus e, se está sem trabalho, é a Ele que você pede emprego - logo você, que não crê; logo você, que tanto crê e não compreende.

Voltamos ao XXI? Anime-se: há novas perspectivas para o sexo e o rock’n roll – mesmo porque, com a música e os discursos que andam por aí, melhor reinventar o roque e fazer sexo com bossa nova.

Assim viajamos no tempo, sem precisar de tecnologia. Amanhã é dia de trabalho e, quer apostar? Essa noite você sonhará com Judith.

A não ser que seu subconsciente lhe pregue uma peça e lhe dê de presente uma rampa.

8.06.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE –

Giulio Vincenzo não gostava de que seu sobrenome fosse um segundo nome próprio, principalmente por tê-lo herdado do pai que jamais conheceu, por mórbida paixão da mãe, Sophia, que desprezou o próprio sobrenome, Lorenzi, para não caracterizar o que era de todo óbvio: Giulio era filho de mãe solteira.

Chegara à profissão de antropólogo por tortuosas vias. Tentara medicina, sem conseguir ingressar na faculdade; depois, veterinária, mas, ao perder o primeiro período por insuficiência, desistiu; conseguiu, com grande dificuldade, uma vaga em sociologia – que abandonou, porque perdia o sono às noites, já que este lhe tomava os dias, nas aulas, quando sua concentração era uma corrente de vento que entrava pela janela, cheia de elos desatados. Ingressou no exército e seguiu em missão de paz para Serra Leoa. Viu tanta desgraça ao lado do renomado antropólogo Dr. Vincenzo (coincidência que, a princípio, tomara como maldita), de sobrenome Scarpini, que, quando este, ainda moço, desabou de febre e de frio e de morte ao lado dele, Giulio, encarregado de zelar pela vida do doutor, numa tarde de calor e poeira insuportáveis, decidiu enterrar-lhe por ali, só que sem a carteira de notas e documentos – que passaram a lhe acompanhar, com a devida troca de retratos e constante renovação das notas, desde a fuga e deserção daquele inferno humano até aqueles momentos, em que se encontrava no cerrado brasileiro, escondendo-se atrás de uma árvore, após ter sido flagrado pelo sujeito pago pela universidade para desenvolver uma tese maluca, a mesma universidade que contratara Giulio para fazer o que eles haviam chamado de “pesquisas paralelas”.

O eterno retorno. Da África, fugira para o Brasil, mais precisamente Rio de Janeiro, que atraía como atraiu e até hoje atrai estrangeiros de toda parte, nas mais diversas fases da sua história. Alguns a procuram quando sua fama é de tranqüilidade; outros, quando, mesmo ou porque, suas notícias são de risco e violência – como naquele 2006. Giulio fora em busca de mar, mulheres e oportunidades de exercer a profissão que conquistara pela morte do homem cuja vida dependera da sua proteção, contra a qual não cometera qualquer violência, morte que se deu ao seu lado, na ausência de outras testemunhas e que entendeu como dádiva divina. Conseguira ler poucas páginas de alguns dos livros do Doutor Scarpini, que agora era ele e, portanto, a ele, Giulio, pertenciam, ora com espanto, ora com a mesma sonolência dos bancos universitários que chegou a freqüentar. Mas o que lhe dava prazer de verdade eram as anotações de Vincenzo Scarpini em um caderno que trazia consigo dentro da mochila pendurada nos ombros e apoiada nas costas quando caiu sem vida. Não pelas desgraças humanas narradas pelo cientista que agora personificava, mas pela riqueza de detalhes, de expressões em latim, além de exclamações de alguém verdadeiramente apaixonado pelo que fazia. Essas exclamações é que entusiasmaram Giulio e que foram por ele incorporadas para compor sua personagem, o tipo que resolveu adotar para si, na pele do Doutor em antropologia, Signore Vincenzo Scarpini.

No Rio não conseguia parar de, às manhãs e tardes, zanzar pelos calçadões de Copacabana, Ipanema e Leblon; de, às noites, deixar-se preso a tulipas de chopes nos bares de Copacabana, abordado por prostitutas que lhe aquietavam os instintos e, às vezes, a alma; de, quando de dia novamente, voltar a caminhar em bermudas e tênis nos calçadões à beira da praia, quando pensava despertar a atenção de mulheres de variadas idades e se engraçava para algumas delas, sem, no entanto, lograr êxito - a não ser uma única vez, que veio a levar-lhe do Rio à Flórida. Namorou Fernanda por uma semana, quando passaram a maior parte do tempo trancados no quarto lateral do hotel de Copacabana, fazendo sexo a mais não poder, a conversar num ritmo de descombinação latina, com poucas e profundas pausas entremeadas por grandes atropelos de caudalosas e desconexas frases, até que ela lhe convidou:

- Vamos para Miami; lá se ganha em dólar.

Pararam mesmo foi em Orlando, onde se desentenderam, pois, lá, conseguiu realizar seu sonho de ser tomado por antropólogo, o renomado Doutor Vincenzo Scarpini, dado como desaparecido em Serra Leoa. Foi contratado, com a instrução de realizar pesquisas paralelas e secretas às de Ricardo Coração dos Outros V, com o mesmo tema, com o seguinte recado, explícito, firme, sem margens para dúvidas:

- Acompanhe os passos de Ricardo. Is that clear?

- Absolutely – Giulio respondeu, como aprendera com Fernanda, que passou a exercer outra profissão em Orlando e por lá permaneceu.

Assim foi o retorno de Giulio Vincenzo, filho de Sophia Lorenzi, vulgo Doutor Vincenzo Scarpini, ao Brasil, agora para a região do cerrado goiano, com escala na capital, Brasília – mesmo percurso que um certo Mr. Robert Preston Jr. fizera, à mando da mesma universidade, três anos antes, quando Ricardo V e Rita eram recém-chegados em Minaçu. Como era o período seco, a poeira estava de matar. “De volta ao pó” – pensou Giulio - ou “aquele merda”, como a ele Ricardo V se referira, sem que Giulio soubesse, ainda que assim se sentisse.

8.03.2005

LINOLOGIA

Os dicionários dirão que a palavra certa é “Limnologia” - ciência que estuda a qualidade das águas doces -, mas o assunto aqui é outro: a Linologia; a lógica do Lino.

Lino tem 104 anos – você não leu errado: cento e quatro anos -, é natural de Florianópolis, não fuma e só bebe quando quer, toca pandeiro e vai, de vez em quando, a São Paulo.

Não vê, não lê e não ouve noticiários sobre crimes; casou uma só vez e enviuvou; é namorador e galanteador.

Lino é uma mistura de bugre com alemão. Bugre: indivíduo dos bugres, tribo indígena do sul do Brasil. Alemão: nascido na Alemanha. De certo descenderá de um inconformado e visionário, que fugiu para um paraíso que aqui se escondia e ainda se esconde, onde nenhum outro branco jamais chegou nem chegará, e casou-se com uma, duas ou três índias - uma das quais deu origem à raça Lino, que veio parar na Ilha de Santa Catarina.

Seu neto dirige um táxi, tem a mesma cor do avô e por volta de quarenta e cinco anos. Vai ao médico e faz os exames recomendados regularmente: de cinco em cinco anos.

Lino planta no quintal da casa onde mora, vai a pé comprar pão, tomate e, uma vez ou outra, cachaça - que bebe aos goles lentos e filosofais, balançando-se em uma cadeira que lhe ensina o movimento da terra em torno do sol com uma precisão que a ciência jamais conhecerá.

Aulas de Linologia deveriam ser ministradas de Florianópolis para o mundo, quem sabe afastando o tráfico e trazendo o mundo de volta, que anda longe e triste, pra lá de Bagdá.


Revisão do original de 26 de julho de 2003. E a guerra continua. Que infantilidade! Ela nunca parou, não é?