4.30.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO SEIS –

Ricardo Coração dos Outros mirava a enseada de Botafogo, numa tarde de sol estupendo. Trazia o violão numa das mãos como se o instrumento fosse um traste e o largava em pé, no chão, para passar um lenço já suado na testa. Esperava por Olga. Martelava-lhe a cabeça seu arroubo de suposta coragem (“Vamos por aí, desfraldar bandeiras, arrancar mato do chão...”) e perguntava-se: “Arrancar mato de que chão? Para onde ir com aquela insana, que quer dar as costas ao marido e ao mundo?”

Foi quando Olga lhe tocou o braço (como ele contou muito depois a seu filho, e este, a uma filha, e assim foi, de geração em geração, até que tudo se pudesse contar agora, em 2020). Ricardo sentiu o coração a lhe dar socos no peito e a ele dirigiu-se em pensamento: “Que pena que não és dos outros de verdade!” .

- Falou com teu pai? Que foi que disseste a ele? – perguntou.

- A verdade – ela disse. E completou: - Uma parte da verdade.

- Uma parte? Como é que se conta só uma parte da verdade?

- Disse a meu pai que preciso ir a São Paulo, só, por uns dias, para não morrer de tédio.

- É para São Paulo que vamos? – perguntou-lhe Ricardo, provocando nela um desapontamento:

- Pensei que tinhas uma sugestão.

- Não tenho a menor idéia! – disparou Coração dos Outros. Aliviou-se quando Olga, docemente, disse assim:

- Nem eu. Resolveremos isso depois.

Ricardo pegou do violão e o dedilhou, com suas longas e asseadas unhas. Um belo dedilhado, ainda que rápido. Nervoso, depositou outra vez o instrumento no chão, usou do lenço outra vez numa tentativa inútil de enxugar o suor das mãos e, enquanto procurava por uma inexistente e indesejada testemunha que os pudesse (e quisesse) ouvir, quis saber, quase sussurrando:

- E teu marido? Já falaste com ele? O que disseste a ele? Também só uma parte da verdade?

- Disse que precisava ir de encontro a familiares de meu pai, que acabaram de chegar a São Paulo.

- Eles existem? Estão mesmo por lá?

- Não, combinei esse enredo com meu pai; meu cúmplice, ainda que só conhecendo parte da verdade. Armando me perguntou, “Teu pai vai contigo?”; eu disse que não, que meu pai anda muito cansado. E isso, infelizmente, é verdade: a saúde de meu pai me preocupa.

- Queres desistir? – perguntou Ricardo.

- Não. Com muito remorso é que vou, mas preciso ir, para longe de Armando e desta vida insossa. Não pretendo ser mais uma a ir morrendo, minguando, magra e infeliz.

Ricardo teve que tomar coragem e inspirar fundo:

- Olga, de que viveremos? Do meu violão? Tenho parcas economias... Podíamos ir para o Sul, para perto...

- Não é momento de ir para o Sul. Quanto ao dinheiro... Meu pai me deu algum.

- Seu pai? E por que não São Paulo?

- Quero ir mais longe.

- Aonde???

- Em busca do ouro! Gostei tanto quando me disseste que iríamos arrancar mato do chão!

- Minas, então? Haverá ouro ainda por lá? Ricardo inspirou o ar da Baía profundamente, o violão a lhe pertencer novamente, e arriscou: - Quem sabe não seria melhor o litoral, Salvador, Recife, ares marinhos a nos benzer diariamente?

- Vamos em busca do ouro pelo litoral! – ela sonhou e falou e redundou, com a voz e os braços e as mãos: - Depois de aportarmos, entraremos terra adentro, cidades adentro, até encontrarmos mato para arrancar do chão. Pode ser em busca do ouro ou da própria terra. Mas que seja da vida. Em busca da vida.

Ricardo tomou do violão e, desta vez, emprestou versos ao seu dedilhado:

Adorável insana,
Apaixonei-me por ti.
Terás saudades
De quem nasceste;
De mim já sei
Por quem foi que nasci.

4.25.2005

MACHO E FÊMEA

Rosa é danada (e não me refiro à governadora do Rio): sempre aparenta dez anos menos dos que tem e, portanto, pelo menos quinze menos que eu. Pois que Rosa me veio com um desafio: - Fale de homem e de mulher.

A primeira definição que me ocorre é a bíblica: “Macho e Fêmea Deus os criou.”. Somos macho e fêmea da mesma raça: a desgraçada; a divina; a humana. Acho pouco provável que sejamos tão diferentes como andam dizendo. Mas, se o somos, os franceses já acertaram a conta faz tempo: - Viva a diferença.

Fiz um destes testes que, recentemente, foram publicados na imprensa sobre as descobertas – ditas científicas - das tais diferenças. Pois é: ao invés de cavalo, deu zebra. Meu cérebro é, se ele não me falha na sua porção de memória, cerca de 80% feminino. Ih, rapá! Olha o Mario se entregando! Pois me entrego sem susto: não troco lâmpada nem pneu; gosto de poesia; só não sei dizer “chiq-quérrrrrrrrrrrrrrrri-ma”.

Homens são protocolares. “E aí, meu irmão? Tudo bem?” – um pergunta. O outro responde: “Tudo bem. E aí?”. Já um diálogo entre duas mulheres e você não será capaz de captar quem pergunta e quem responde: “E aí, tudo bem?, tudo bem, e você, bem, querida, saudades de você, eu também, lin-da essa sua blusa!, meu Deus, você está chiq-quérrrrrrrrrrrrrrrri-ma!, viu a cotação da bolsa, menina, o que é isso??? (Cuidado: “isso” pode ser a referida cotação, o Brad Pit ou uma bunda desproporcional.)

Talvez porque meu teste deu zebra, o fato é que, aqui em casa, o único defeito inadmissível recai sobre ela (que come rúcula): o bom senso. Por mim, moraríamos numa praia, iríamos trabalhar de bicicleta, à noite, beberíamos uns muitos e bons chopes, comeríamos bifes, batatas fritas, ostras, pipoca, peixadas e, principalmente, moscas: ainda não sei o nome do novo Papa.

E daí? E você com isso? Pois é: gente como eu se mete a falar daquilo que não interessa. Fazer o quê? Por exemplo, este negócio de casamento entre homossexuais. Você é a favor ou contra? Quer saber minha opinião? Não? Então tá: sou a favor. Os dez mandamentos, se não me falha a memória de novo e como não sofro de bom senso, são dois: Não matarás; não roubarás. (Não venha você me dizer que se a mulher do próximo for a Luma ou a Gisele ou a Pitanga que a não desejará, tá bom?) Senão, preste atenção. Se homossexualismo é questão moral – vergonha! -, você só não é porque tem... vergonha!

Não perca seu tempo conjeturando, comparando, sofrendo por causa da diferença.

E perceba: a arte vem primeiro; a ciência, depois - e tão somente a confirmá-la.

Você pensa diferente?

Viva a diferença.

4.23.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO CINCO –

Havia vôos “a jato” de uma hora do Rio a Brasília e, de lá, pegava-se um outro, de mesma duração, em um monomotor “Caravan”.

A vida, às vezes, é um cotovelo. Foi o que disse a Ricardo V o funcionário da INFRAERO, estatal de infra-estrutura aeroportuária, no aeroporto de Brasília, quando Rita atendeu seu celular e gritou “This is not true!”.

Ao telefone, sua mãe, lá de Orlando, disse a ela:

- Seu pai morreu. Levantou-se de madrugada dizendo ter sonhado que remava fugindo de dragões e por isso tinha dores insuportáveis no ombro. Os dragões, minha filha, foram mais fortes.

Foi assim que a viagem Rio-Minaçu ganhou inesperada e longa escala, em Orlando.

Isto o aborrecia, mas Ricardo V dependia dos pais. Não houvera nem monografia nem violão capaz de lhe dar um sopro de capital para empreender a viagem até Minaçu, que diria com aquela escala. Mas seu visto – como era exigido, na época - estava em plena validade: por conta de um de seus trabalhos acadêmicos, estivera havia pouco nos Estados Unidos.

Sérgia gostou da idéia e Ricardo IV concordou: Ricardo V acompanhou a namorada a Orlando para os funerais do pai dela, católico, descendente de franceses que, muito tempo antes, haviam desembarcado na Lousiana. Em 1982 mudaram-se de Nova Orleans, porque a empresa onde ele trabalhava abrira um centro de controle de termelétricas em Orlando.

Do funeral e da tristeza alheia não se falará – e sim de uma visita que Ricardo fez, sozinho, a alguns dos parques da Disney e da Universal. Rita garante que foi dali que surgiram várias das aflições que se tornaram teses de Ricardo V e foram à discussão no cenário político brasileiro. Até hoje, em 2020, parece leviandade, bobagem ou coisa pior a mais tênue sugestão de que parques temáticos norte-americanos tenham influenciado a política brasileira. Mas são detalhes assim, a esse ponto constrangedores, que nenhuma projeção macro-sócio-econômica poderia jamais captar.

A psicopedagoga Sérgia Jacobina Neves, casada com o advogado Ricardo Coração dos Outros IV, freqüentemente, entre uma garfada e outra de abacaxi, na sobremesa dos jantares em família, com o olhar sempre embevecido pelas primogênitas e gêmeas Ricardina e Olga, provocava sua família com a seguinte pergunta:

- Por que todos são bem educados no metrô? Por que a mesma pessoa que pega o trem da Central e faz surfe no teto do trem ou quebra o que resta da janela do trem, ao chegar à plataforma do metrô vira bem-educada, civilizada, polida, incapaz de jogar ponta de cigarro no chão – alíás, sequer de acender um cigarro? Ficava orgulhosa quando uma das gêmeas ou seu costumeiramente calado filho Ricardo V respondia:

- Porque é bem tratado.

Nas filas dos estacionamentos e brinquedos dos parques temáticos de Orlando, Ricardo ficou estupefato: bastava que o guia dissesse “ O primeiro deve se deslocar até ocupar o último lugar vago”, que todos – e eram uma multidão! – obedeciam. E de bom grado. E lembrou-se da gravação das estações do metrô do Rio: “Não fume. Não jogue lixo no chão. Não ultrapasse a faixa amarela.” Lembrou-se do “ORDEM E PROGRESSO” da bandeira brasileira e da fama do brasileiro de mal educado, desrespeitador, metido a esperto - o da “Lei do Gerson”: que, como seu pai lhe contou, foi craque de futebol dos anos sessenta (do século XX) que teve a infelicidade (ou felicidade?) de gravar um comercial de televisão, onde dizia “Leve vantagem você também; leve Vila Rica.” Publicitários são muito, muito espertos. Foi aí que Ricardo deu um salto no barco que simulava uma viagem por entre tubarões e a guia chegou a pensar que ele pensasse que os tubarões fossem de verdade. Ricardo falou, em alto e bom som, tendo sido exclusivamente compreendido (não entendido) por outros brasileiros que estavam no barco:

- Se a política se preocupasse com a psicologia mais do que com a sociologia, a população, que é feita de indivíduos, seria muito mais feliz.

E completou:

- Ah, se a política não fosse feita por marqueteiros e políticos de plantão!

Aí sim: foi compreendido, entendido e aplaudido, por todos os presentes.

4.16.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO QUATRO –

Os que viveram na virada do século XIX para o XX e mesmo os que passaram pela outra, a do último para o XXI, só com muita insensatez apostariam que o Brasil, neste 2020, fosse o país que é. Mas, alguns da última virada de século (XX-XXI) acertaram que, em 2020, o Português seria – como é – tão compreendido globalmente como o Chinês e o Inglês.

Já Policarpo Quaresma foi um visionário: se não é o tupi-guarani que hoje se fala no país, afinal fez-se a LUZ – a Língua Universal da raZão -, estabelecendo real comunicação entre dois mundos: o dos descendentes dos silvícolas que aqui habitavam quando chegaram os europeus e o dos que destes e dos negros escravos descendem.

Observar os passos da dinastia de Coração dos Outros será de alguma utilidade para compreender porque algumas das macro-previsões científicas para 2020, realizadas de 2000 a 2005, falharam em alguns sutis aspectos.

Coração dos Outros e Olga e Ricardo V e Rita partiram para Goiás por sentimentos semelhantes. Olga deixou a então capital da República voltando as costas para a insensibilidade de Floriano e do marido; Ricardo, porque, ali, era-lhe impossível retornar aos tempos do violão no lugar da farda. Preferiram o desconhecido.

Rita foi para Goiás pelo desconhecido: uma tribo indígena cujos seis remanescentes habitavam, em 2002, 38.000 hectares daquele Estado brasileiro.

Ricardo V precisava se afastar das lembranças de Maria Otávia e das muitas formas de violência com que convivia na cidade que, se já não mais capital do Brasil, era o mesmo velho Rio de Janeiro, com toda sua graça exuberante e sensual submetida a interesses, ora explícitos, ora disfarçados, imensamente mesquinhos.

Goiás fora a escolha de seu trisavô, de quem herdara nome e sobrenome e, assim mesmo, para ele, Ricardo Coração dos Outros V, totalmente desconhecido. Seus pais, Ricardo IV e Sérgia, questionaram: mal saído de seu caso de amor com Maria Otávia, tão tragicamente terminado; recém-formado e sem emprego e carregando consigo não mais que a perigosa herança do trisavô, um (plebeu?) violão, - porque despachar-se, em companhia de uma ruiva, natural de Orlando, Flórida, Estados Unidos, para uma terra desconhecida, literalmente, pela totalidade do seu círculo familiar de amizades?

Sérgia fez questão de lembrar que o filho de Coração dos Outros e Olga, Ricardo II, optara (“com sábia sensatez” – Sérgia opinava) por voltar ao Rio de Janeiro – como registrado em modinha pautada por Ricardo Coração dos Outros, encontrada em farrapos de papel e tinta no cartório de Cavalcante:

Vai, vai, vai, meu filhinho,
Vai, vai, vai...
Vai lembrar das canções de Chiquinha,
Vai ao encontro do berço do pai.

Pai, pai, pai, meu paizinho,
Pai, pai, pai...
Vou chorar as canções de Chiquinha
Com saudades da mãe e do pai.

Mais de 200 anos e menos de 200 quilômetros separam tempo e locais onde, primeiro, Ricardo Coração dos Outros e Olga e, depois, Ricardo V e Rita, vieram a viver fases importantes de suas vidas.

Para Ricardo V e Rita, em 2002, não foi muito difícil chegar a Minaçu. Já para que seus trisavós chegassem à região da vizinha Cavalcante, sim, foi muito difícil.

Minaçu, com esse nome, que mistura origens latina e tupi-guarani e significa mina grande, só passou a constituir-se oficialmente município goiano (e brasileiro) em 14 de maio de 1976. Cavalcante, com esse nome, já no século XVIII era conhecida - naqueles primórdios coloniais - como um “arraial”: povoado temporário para, naquele caso e tempo, extração de ouro. Mais se falará a respeito, mas, para curiosidades mais apressadas, como todo mundo sabe, as mais diversas versões dos mais variados assuntos podem ser obtidas na hiper-rede Tera-portal Mundial (TPM©). Ou na concorrente, a 1012.

Ricardo IV e Sérgia tinham poupado para os primeiros anos de profissão do seu caçula; acabaram por aceitar os argumentos de Ricardo V de que a região de Minaçu serviria para aprofundar o tema da monografia com que fora aprovado na faculdade (“A influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da plebe brasileira”).

Talvez, assim, ele se afastasse do violão; esta era a esperança de Sérgia.

4.11.2005

SEXTETOS DE OURO PRETO; SÉCULO XXI

Tuas ladeiras eu vi
Pela primeira vez
Faz tempo -
Menos tempo, é claro,
Que da tua história,
Que de teu sofrimento.

Não vi tantos automóveis
Quanto os que vi agora,
Mas, outrora,
No tempo em que os não percebi,
Ainda que em boa companhia,
Não tive tanta sorte quanto agora.

Agora,
Já no século vinte e um,
Tive a sorte
De comigo virem violões;
Sabe-se lá de onde chegaram
Tantos e tão sábios violões -

E de que geração.
Tocam Vinicius e seus parceiros,
Tocam Tom e seus parceiros,
Tocam mais: Paulinho Nogueira,
Milton Nascimento e seus parceiros,
Adoniran.

Tocam meu coração,
Minha lembrança,
Existência e precisão.
Minas não há mais;
Há Minas Gerais,
Um bispo, um curso

De especialização.
Há um encantamento,
Há o exato momento
Da decisão:
É preciso morar em Minas Gerais;
É fundamental tocar violão.

Mario Benevides, MBA da Fundação Dom Cabral, Minas Gerais, abril de 2005.

4.09.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRÊS –

Maria Otávia, embora despontasse pela originalidade de seus trabalhos, por causa do hábito (jamais diagnosticado a contento) de repetir expressões que se contrapunham às que ouvia na tv, foi apelidada de “opinião pública”, por colegas da faculdade. De repente, passou a ficar em permanente silêncio – até mesmo quando em companhia de Ricardo. A brincadeira, então, passou a ser: “calou-se a opinião pública”. Mais uma vez, seus pais, agora acompanhados de Ricardo Coração dos Outros V, a levaram a um psiquiatra. Maria Otávia foi internada. Um mês depois, o silêncio era ainda mais incômodo, porque acompanhado de uma expressão muito pior que a da tristeza: de resignação. Não sem remorso nem amargura foi escrito, no pano que envolveu o caixão com o corpo de Maria Otávia: “Saudades da Opinião Pública”.

Já era o ano da formatura e Ricardo defendeu sua monografia, que trazia o título “A sociedade brasileira e a perversa e involuntária conspiração de Newton e Gauss”. Seu trabalho trazia o seguinte resumo introdutório:

“Serve a curva de Gauss para representar uma grande parcela das configurações estatísticas humanas. Nela, também se enquadram as preferências políticas da sociedade brasileira. De um lado, minoritário, a extrema direita; no que a ele se opõe, outra minoria: a extrema esquerda. No morro característico da curva, lá está a maioria da população, a qual, sem se dar conta de ser maioria, fica à mercê das suas extremidades minoritárias, ora a tombar-se ridícula para um lado, ora a curvar-se amedrontada para o outro. E é aí que se forma o perverso e involuntário encontro de Newton e Gauss: a cada ação de qualquer das extremas, a outra a ela se contrapõe, em igual intensidade, a fazer, da maioria, massa que se move por inércia, tão somente a acompanhar o movimento, ora para um extremo, ora para o outro, até a estúpida, falsa, inclinada estabilização. O que aqui se propõe é que a sociedade se organize através de abnegados, cedidos pelas organizações que os empregarem ou àquelas que representarem ou às que pertencerem, por elas licenciados e pagos durante o mandato, como simples, impessoais, aplicados e eficazes administradores da coisa pública - sem pseudo-ideologias e, principalmente, sem fisiologismos e sem a demagógica e mórbida e contínua caça a votos e/ou cargos públicos.”

Uma das questões levantadas pela Banca Examinadora foi:

- Sr. Ricardo, e o que seria dos desempregados?

- Um organismo governamental permanente seria criado, para congregar essas pessoas e ajudá-los a retornar ao mercado de trabalho ou aos meios de produção. E, politicamente, estariam necessariamente representados por um ou mais de seus membros.

- O Senhor está propondo o voto indireto? Por instituições? Acabaria o voto direto?

Ricardo foi reprovado, não se sabe se por falta ou excesso de argumentos ou se houve desconfiança de que ele estivesse a defender idéias de Maria Otávia – o que não era de todo inverdade: Ricardo e Maria Otávia compartilhavam de muitas idéias. (Há um trecho da monografia de Ricardo V em que se lê: “insensatez, insensatez, insensatez”).

Ricardo viveu um ano tocando violão e cantando em bares do Rio de Janeiro, enquanto preparava e até que apresentou nova monografia à banca, dessa vez com o título “A influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da plebe brasileira”. Foi aprovado. Em um programa de intercâmbio entre Universidades, conheceu no Rio uma ruiva, chamada Rita, de quem foi-se tornando amigo, até que, um dia, ela lhe perguntou, com sotaque estrangeiro:

- Você conhece Minaçu? Você sabe, meu tese é sobre índios brasileiros; quero conhecer os avá-canoeiros, soube que eles vivem no regiau.

Meses depois, casaram-se. Em Minaçu, norte goiano. Era o começo do século XXI. Já na virada do século XIX para o XX, seus antepassados, Ricardo Coração dos Outros e Olga, haviam optado pelo, praticamente, mesmo destino, por motivos que logo serão explicados.

Na lápide de Maria Otávia, sem que Rita jamais o tenha sabido, está escrito:

Saudades. Saudades. Saudades. Ricardo.

4.05.2005

O PAPA, A MÍDIA E O PRECONCEITO

Morreu o Papa. Só se fala na morte do Papa. Não há como ficar indiferente. Qualquer Papa tivesse morrido, seria assim: a notícia seria a morte do Papa. Qualquer outra morte perto da morte de um Papa deixa de ser notícia, porque, notícia, é a morte do Papa. Ocorre que não foi qualquer um, e todo mundo também comenta isso: este foi especial. Este foi o Papa do Papamóvel - o automóvel do Papa. Era o Papa que voava de um continente ao outro no Papamóvel, muito mais poderoso que o Batmóvel, muito mais poderoso que a Inquisição. Um Papa nascido na Polônia, país que, ao invés de Papas, estava acostumado a botinas, ora nazistas, ora na forma do mais terrível tzarismo de que se tem notícia.

Haverá a eleição de um outro Papa - e o que diz um Cardeal brasileiro é que deverá ser alguém que se dê bem com a mídia. O mesmo Cardeal brasileiro diz que tem simpatia por alguns dos candidatos e que votará no seu preferido independentemente da sua cor, de seu país ou língua. Como se percebe, o Cardeal brasileiro citado jamais conheceu o Papa do Papamóvel – pois o Papa do Papamóvel jamais diria frases tão imensamente preconceituosas como as que disse o Cardeal.

O Papa era um político, porque todos os Papas o são – mas nenhum foi hábil como hábil foi o Papa do Papamóvel. Conhecia a mídia como ninguém e a transformou; tinha pelo sexo a mesma incompreensão que a Igreja sempre fez questão de expressar; e a expressou, como se conhecesse o assunto.

Em resumo: até quando era comum, o Papa do Papamóvel era especial.

Já o Cardeal de que se falou e cujo nome jamais ninguém saberá – e não é Dom Eugênio Sales, conservador dos conservadores, impedido, pela idade, de votar -, o que esperar dele e de seu preconceito? Que não vote; que se cale; para sempre.

Irão ao enterro do Papa: Fernando Henrique, Lula, Bill Clinton, Sarney e turistas privilegiados. Não, nenhuma tentativa de diminuir a importância dos nomeados nem de sua presença, nenhuma tola alusão.

Nem ilusão.

4.02.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005


- CAPÍTULO DOIS –



Quando Olga percebeu que deveriam ir além da amizade, comunicou a Ricardo:

- Teu nome é tão incomum que fundaremos uma dinastia.

- Estás louca, mulher? Sou homem do povo, cidadão comum, plebeu! Veja meu nome: até meu coração é dos outros!

Mas não houve como demovê-la: já o primogênito foi batizado de Ricardo Coração dos Outros II – o qual, ao longo de sua convivência com os pais, foi devidamente orientado – para não dizer doutrinado – para que, se e quando se tornasse pai, o primeiro filho homem se chamasse Ricardo Coração dos Outros III; e assim sucessivamente, através dos tempos. Calhou que, em todas as gerações, até agora, sempre tenha havido um varão, além de várias Ricardinas e Olgas. Por mais ridículo e despropositado que pudessem achar aquela tradição, os descendentes de Olga e Ricardo a têm respeitado rigorosamente, geração após geração, até esses nossos dias de 2020.

Depois se falará sobre o quão difícil foi, para Ricardo e Olga, chegar até a Província de Goiás e iniciar e criar a prole, nos tempos de Floriano Peixoto e, depois, de Prudente de Moraes. Neste momento, faz-se necessário viajar de novo no tempo e sintonizar a mesma estação de rádio que Ricardo Coração dos Outros V ouvia em seu carro, numa tarde de tráfego pesado, na Linha Vermelha, via expressa do Rio de Janeiro, em agosto de 2000 - que transmitia campanha radiofônica de candidato a cargo eletivo da política vigente naquele fim de século, da qual só conseguimos captar uma única frase:

- Política é para profissionais.

Ricardo desligou o rádio. Sua namorada, colega e melhor aluna da turma da faculdade, Maria Otávia, que estava ao seu lado, ficou pensando obsessivamente no que acabara de ouvir: “política é para profissionais”.

Pensar obsessivamente em algo ligado à política era uma característica da personalidade de Maria Otávia, como ela mesma já havia contado a Ricardo V, que se manifestou a primeira vez quando estava apenas com dez anos e passou algumas tardes a repetir em casa e no colégio a palavra “impeachment” - a tal ponto que seus pais a levaram, primeiro, a um neurologista e, depois, a um psiquiatra. Na ausência de um diagnóstico que os satisfizesse, os pais de Maria Otávia tentaram proibi-la de ouvir e assistir a programas sobre política, mas em vão: esta sempre foi sua obsessão.

A de Ricardo – o violão - foi herdada do avô (Ricardo III) e do trisavô – o próprio: Ricardo Coração dos Outros, amigo de Policarpo, e que se casou com Olga assim que chegaram na Província de Goiás – o que depois será narrado em detalhes -, pois lhes foi possível tomar a decisão no exato instante em que souberam do falecimento de Armando, deixando Olga livre e desimpedida para o matrimônio, às claras e na lei, com seu verdadeiro amor.

Voltando ao último ano do século XX e ao automóvel de Ricardo Coração dos Outros V: o exímio violonista reagiu de pronto ao que acabara de ouvir e disse, empolgado e em voz alta, à namorada:

- Política tem que ser coisa de amador! É exatamente por não ser que está tudo errado!

Maria Otávia permaneceu em silêncio – o que causou estranheza ao seu namorado; Ricardo, afinal, conformou-se e aquietou-se, parado no tráfego.

Mas ela, não:

- Esses profissionais vão acabar de acabar com o Rio, vão acabar de acabar com o Rio, vão acabar de acabar... Maria Otávia ficou repetindo aquilo várias vezes, alegrando-o, afinal. Ricardo estava apaixonado por ela, não só pela sua beleza, mas pela forte identificação de idéias que ambos sempre tiveram - tanto assim que foi naquele momento, na Linha Vermelha, que Ricardo e a namorada conceberam o projeto da política por amadores. É injustiça, portanto, atribuir seu sucesso somente a Ricardo V e a seu filho, Ricardo Coração dos Outros VI: ninguém deve esquecer de Maria Otávia.

Já do político que inspirou o casal, só se pode lembrar da frase dele, antítese do projeto ali concebido e que viria a causar profundas transformações no Brasil:

- Política é para pro-fis-sio-nais!