1.30.2006

CRÍTICAS E CONTRARIEDADES

Quem gosta de ser criticado é sábio. É a crítica a antítese da auto-crítica; a imagem contra o relfexo. O problema é que quem gosta de ser criticado ainda está para ser inventado.

O mais preparado dos indivíduos não está preparado para ser criticado. Razões há para isso, a começar por não se ter com muita freqüência a certeza de se tratar de crítica e não ciúme, inveja, desdém ou simples impaciência. Outra presumível é que a auto-crítica se considera tão perfeita que não admite não ter sido capaz de criticar aquilo que a crítica criticou.

No dia seguinte, é outra coisa: quem foi criticado já assimilou a noite mal dormida, superou o maldito travesseiro que se fez quadrado e a vontade de fazer xixi às três da manhã, e já é capaz de dizer, É, pode ser bom negócio rever isso e aquilo, mudar um pouco aqui e ali, a crítica não foi tão infundada assim.

Mas a invenção do século XXI será mesmo a de quem gostar de ser contrariado. Desejar que o sinal feche para melhorar a posição do cinto de segurança, do sutiã ou da cueca e pegar uma raríssima seqüência de dezenove sinais abertos. Desejar que o sinal permaneça aberto, porque, da transversal, virão cinqüenta e seis caminhões, mais duzentos e sete automóveis, dois ônibus duplos e um trem, enquanto um flagelado malabarista vai engolir fogo e jogar bolinhas pro alto e pedir gorjeta e a vontade de fazer xixi está muito mais intensa que aquela das três da manhã e sua casa fica logo ali, a cinqüenta metros do sinal, e o sinal fechou. Propor cinema e ir ao teatro. Querer ir à praia e almoçar dobradinha na casa da tia da sogra. Pedir aumento. Seu guarda, eu não vi. Moça, a senhora furou a fila. Não passar de ano. Carne?: peixe. Peixe?: rúcula.

É claro, há os que se saem melhor na - e da - contrariedade. Gostar disso é que nem livro de auto-ajuda terá cara de pau o bastante para propor.

(Com toda franqueza, melhor não dizer que há um livro de auto-ajuda que propõe ser possível gostar da contrariedade.)

1.28.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- TRÊS: POR PARTE DA MÃE –

(1) O Jantar com o General

Foram no restaurante da preferência dos políticos. Pediram um carmenere chileno de preço mediano, para acompanhar carne. O General começou por fazer a seguinte provocação:

- O senhor sabe quem é o político? O político é Deus.

Ricardo V apenas olhou nos olhos do general como um lutador de boxe que ainda estuda o que pretende fazer o adversário. O General explicou sua dedução fazendo voz de padre:

- Ele está no meio de nós.

E continuou o General, agora sem falsear a voz, Ricardo V já de guarda baixa; o jantar não seria uma luta de boxe, convenceu-se disso. Disse o General:

- O político está no meio de nós, é um de nós e é eleito por nós. Se são respeitosos é porque vieram de um meio onde a tônica é o respeito. Se nos desrespeitam é porque percebem mais desrespeito que respeito onde vivem.

- E gostam – interrompeu Ricardo V.

- Claro – concordou o General. E gostam muito.

Ricardo V percebera em Minaçu mulheres fingindo de grávidas para furar filas.

- O ambiente sempre foi porco, General; mistura de força e pequenas corrupções. Ameaças de inferno, inclusive o inferno em vida - prisão sem motivo, tortura, fogueira. Na outra mão, a benção, o indulto, uma paga irrisória, um prato de comida, merenda e leite subsidiados...

O General, aparentemente impassível, enquanto cortava a carne em seu prato quase que cirurgicamente, respondeu:

- Sempre pensei que Marx e Engels acertaram no diagnóstico, mas erraram na receita.

Ricardo V gostou:

- Concordo.

O General mudou o tom, olhou à volta discreta e significativamente, convidando com os olhos que Ricardo V fizesse o mesmo, e perguntou a ele, como quem divide uma fofoca:

- Reparou a quantidade e intensidade dos abraços e tapas nas costas que eles dão uns nos outros? Como todos se tratam pelos seus postos eletivos, “Meu nobre Deputado”, “Como vai, Senador”... Principalmente os de lados opostos, os que passaram o dia a se agredir, situação e oposição? Na verdade, experimentam, medem as costas e diâmetros do outro, querem que o corpo do outro expresse a mente, o pensamento; seu próximo golpe, sua fragilidade ou for-ça.

- O senhor apoiou o golpe de 64?

O General riu, em uma gargalhada contida. Depois:

- Com seis anos de idade? Nasci em 1958, meu nobre escritor!

Ricardo V riu, desconcertado, pensou em insistir, “O senhor teria apoiado, se tivesse idade, aderiria ao golpe, à ‘revolução’?”, mas lembrou-se do assunto que motivara o jantar entre os dois e sentiu mais conforto mudando o assunto:

- O senhor me falou de um local estranho, uma comunidade que...

O General arregalou os olhos, empolgado:

- Isso mesmo! Vamos falar desse lugar, agora. Vamos escolher a sobremesa?

E continuaram a conversa um pouco mais, enquanto, no hotel, Rita assistia a um canal por assinatura sobre antropologia e Ricardo VI dormia, aguardando um pouco mais para conhecer a família da sua mãe, primeiro em sua genealogia, nas vozes de seus pais, depois pessoalmente, quando chegassem aos Estados Unidos.

1.24.2006

O QUE, AFINAL, LETRAS TÊM A VER COM LUTA DE BOXE?

Curioso ritual é uma luta de boxe. Os dois sobem ao ringue com seus calções fulgurantes, botas até quase os joelhos, luvas colossais, na boca, uma proteção que os deixa com ares mais ainda enfurecidos, concentrados, um juiz de gravata borboleta. Nos cantos, treinadores e assistentes, com seus conselhos, baldes d’água, curativos. No ringue, o boxeador toma na cara de punhos cerrados e vestidos de luvas; no canto, leva tapas de mãos abertas e desnudas, a título de reanimá-lo a tomar novos socos de luvas coloridas. A platéia urra, como urrava no tempo dos gladiadores e seus leões. Pela tv, o que mais chama a atenção são os esguichos de sangue que explodem dos supercílios, os olhos já inchados, uma certa imbecilidade no olhar, não mais a fúria concentrada. Há o “clinch”, abraço de arrego de um lado e de urso do outro, o se jogar nas cordas e o se quedar no chão, ouvindo a contagem regressiva do alívio e da derrota.

Nomes como Sugar Ray Robinson e Joe Louis são lendas; mas Cassius Clay, depois Mohamed Ali, é o real. Peso pesadíssimo, gingava como um dançarino. Houve uma luta que é um clássico, quando dançou de guarda baixa, aberta, para exaurir seu adversário apanhando, e apanhando mais, até que ele, o adversário, não agüentou mais e, então, foi a vez de Mohamed / Cassius bater e bater e bater, até nocautear o incrédulo. Mohamed, hoje em dia, sofre de mal de Parkinson, das trombadas que tomou na sua cabeça de campeão, de cérebro privilegiado, astuto, olhar de Glauber Rocha, dizendo não à guerra, uma guerra em que os americanos não salvaram mundo algum do comunismo, o qual, do mesmo modo, não dominou mundo nenhum, apenas matou-se e morreu-se e barbarizou-se de parte a parte inutilmente, covardemente, trogloditamente, não muito diferente do Iraque de hoje. Cassius / Mohamed sentado por trás das grades, protestando, com ares de quem fazia cocô.

Mike Tyson não lutava; derrubava e ia embora; era outra luta. E foi preso, também, por motivos menos nobres, mais violentos, mais ainda fora do ringue.

Chineses inventaram o Tai Shi Shuan para que o inimigo não percebesse tratar-se de uma luta, com seus golpes simulados em lento movimento, para ser rápidos somente de surpresa, durante uma luta de verdade. Já o boxe, não se sabe até hoje se é permitido chamá-lo de esporte, tal é sua violência. Entretanto, sua dança, seu gingado, seu avançar e recuar de corpo, braços e punhos, toda sua pungência e explicitude dão ao boxe um lugar específico, invisível, no vácuo entre a dança, o esporte e a barbárie. Esses foram os motivos que levaram esse poeta-escritor, que se esconde e se mostra, via, por enquanto, gavetas e internete, a treinar boxe, duas noites por semana, sem confronto direto, apenas a ginga, o avançar e recuar, o esquivar e ameaçar, o socar o ar e o saco de pancadas, o suar infinitamente, a percepção de que pular corda é o oposto de andar de bicicleta, parou, esqueceu, é preciso aprender de novo. Curiosa sensação, a de freqüentar e cumprimentar e compartilhar um grupo tão díspar, fortões de braços tatuados, jovens gordotes que parecem ter sido mandados pra lá pelo pai ou pela mãe, poloneses que parecem ter acabado de deixar a lavoura ou as prateleiras do supermercado, um cinqüentão. Assim, lá se foram da minha vida pelo ralo mais alguns preconceitos. Obrigado, Mohamed.

1.20.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- DOIS: POR PARTE DA AVÓ MATERNA –

A narrativa que Ricardo V fez sobre a árvore genealógica do filho continuou no automóvel, a caminho de Brasília, onde pegariam um vôo para os Estados Unidos, na presença de Rita. Para evitar discussões – ele estava certo de que sua mulher iría discordar de tudo o que ele dissesse a respeito da família dela, e Rita não demonstrou ânimo para falar de seus antepassados naqueles momentos -, Ricardo V optou por contar o que sabia da família de sua mãe, avó de Ricardo VI, Sérgia.

- Sua avó, aos vinte e um anos, resolveu entrar para o PCB, o Partido Comunista Brasileiro. Melhor você continuar gravando o que eu for dizendo e me fazer algumas das perguntas que você quiser daqui a um ou dois anos, se você não se importar. De toda forma, em 1975, ainda era tempo de ditadura, no Brasil. Em 64, João Goulart foi deposto por um movimento militar, esse regime durou até a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney, dois civis, e foi Sarney quem governou, porque Tancredo morreu antes de tomar posse. É complicado, eu sei. Comunismo é um regime onde se pretende que o Estado, isto é, o próprio país, através do governo, providencie tudo para a população – saúde, educação, moradia, emprego, lazer, comércio; nada é de ninguém, tudo é de todo mundo, ninguém é dono de nada. Sua avó entusiasmou-se com essa idéia, mas o que a motivou mesmo a entrar para o Partido Comunista – que era proibido de existir – foi lutar contra a ditadura. Já seu avô se queixa de que, nessa época, ele, por causa também da ditadura, era um alienado, não sabia de nada, apenas ouvia falar. Pessoas desapareciam de repente, um vizinho, um colega de faculdade ou de escola... às vezes, para participar da reação contra a ditadura, inclusive pegando em armas, outras por ter sido preso, muitas vezes torturado, isto é, submetido a sofrimentos terríveis, surras, choques, para dizer nomes de outras pessoas que fizessem parte da reação à ditadura, ou assassinado, desaparecido, exilado para outro país... Seu pai ouvia falar disso tudo, o pai dele, meu avô Ricardo III, teve que se esconder em Petrópolis, já te contei isso, também pesou isso, quer dizer, meu avô, seu bisavô, fez de tudo para que meu pai ficasse de fora daquilo tudo, não se envolvesse, para que não sofresse.

Depois de beber um gole de água mineral com uma das mãos, enquanto mantinha a outra no volante, Ricardo V continuou:

- Minha mãe, vovó Sérgia, ficou fazendo trabalhos de escritório, folhetos explicando o que a ditadura estava fazendo contra as pessoas – eram chamados de “panfletos” -, textos para jornais que estavam proibidos de ser vendidos nas bancas...

- Vovó foi presa?

- Não.

- Torturada?

- Não.

- Deu tudo certo?

- Um dia tudo acabou, depois de muito sofrimento, sua avó sofreu pela morte e pelo sofrimento de alguns amigos e amigos dela, mas ela mesma, conseguiu se safar, fazer o trabalho que se propusera a fazer e pronto. Depois ela desistiu do comunismo, desiludiu-se com a política de maneira geral.

Ricardo V fez uma pausa, por se ter lembrado de Maria Otávia (“a política tem que ser feita por amadores, por amadores, por amadores...”). ficou um pouco triste, depois passou:

- Vovó Sérgia descende de um casal de origem bem humilde, tudo o que ela sabe foi por conta própria que aprendeu, incluindo aquele jeitão educado, polido. Muito estudiosa, estudou de tudo por conta própria, muito precoce, assim como você. Há pouco o que dizer do pai e da mãe dela, eram pessoas muito simples, honestas, trabalhadoras. O grande orgulho dela era de um avô, que era da Polícia, e que vivia dizendo a ela que havia prendido um bandido assim ou assado, isto é, um bandido tal num dia, noutro dia, um outro bandido. Essa expressão, “assim ou assado”, é bem do tempo do avô dela, cuja mulher, mãe da mãe dela, era uma gracinha de velhinha, eu ainda a conheci, Dona Alzira, fazia uns bolos muito gostosos, esse tipo de mulher com cara de avó.

- Vovó Sérgia tem cara de avó?

- Nenhuma. Vovó Sérgia tem cara do que ela é, psicopedagoga, intelectual, cheia de razões, idéias, verdades e ordens. Mandona pra caramba.

- Mamãe não é mandona.

- Principalmente quando está dormindo, não é, filho? Já o pai dela... Da vovó Sérgia, quero dizer. O pai dela, da vovó Sérgia, foi criado em orfanato, abandonado pelos pais. Não há muito o que dizer da árvore genealógica da sua avó Sérgia; o sobrenome dela, Jacobina Neves, que é um sobrenome clássico, formado por dois sobrenomes tradicionais, se deu por acaso, porque a mãe dela tinha como primeiro nome Jacobina, e Neves era o sobrenome do “Seu” Antônio Sérgio das Neves, pintor de paredes, só isso. Aí ficou assim: Sérgia Jacobina Neves. Há muito mais a dizer da família da sua mãe, o que é melhor deixar pr’amanhã, quando sua mãe estiver de bom humor; hoje ela está um pouco enjoada. Engraçado, estamos há um tempão sendo seguidos por uma camionete cinza, já dei passagem pra ela algumas vezes, ela se aproxima muito devagar, depois acaba ficando pra trás, novamente. Olha, lá vem ela de novo, e está fazendo sinal para eu parar, quem será? Será um assalto? Um seqüestro? A camionete parou. Saiu um cara lá de dentro, êpa!, um cara fardado...

Ricardo V parou o carro no acostamento, mas com o pé no acelerador, pronto para uma arrancada. Foi quando um simpático Coronel do exército brasileiro, que mais tarde viria a ser General reformado, com importante papel na Revolução de 2017, lhe estendeu a mão, muito amistosamente (“Prazer, Fernando”). O então Coronel se explicou:

- Perdoe ter seguido seu carro e lhe ter pedido para parar; é que acabo de vir de um lugar muito estranho, onde ouvi falar do senhor. Ricardo Coração dos Outros V, não é?

- Sim. Mas...

- Procurei-lhe na cidade, a sua empregada me disse que o Senhor iría sair de viagem...

- Como foi que o senhor soube do meu endereço?

- Todo mundo sabe seu endereço em Minaçu, Doutor Ricardo; então, o senhor não é aquele escritor famoso, do livro da revolução que o senhor diz que vai acontecer em 2017?

Ricardo V riu amarelo.

- Não tive jeito senão sair atrás do senhor, sua empregada me falou da cor do seu carro, fez uma descrição dele, não quis me dar o número do seu telefone para que eu lhe pudesse telefonar de jeito nenhum, mas não se importou de me dizer como era o seu carro e com quem o senhor viajava.

Os dois sorriram. O Coronel era muito simpático, nada havia de ameaçador ou prepotente em seu rosto.

- Quando a gente viaja com criança e mulher, tem que dar umas paradas, não é? Sabia que iría acabar tendo a oportunidade de me aproximar do senhor, é que preciso muito falar com o senhor, porque li seu livro e vi um local muito estranho, uma comunidade que fica perto de Minaçu, o senhor sabe do que estou falando?

- Não.

- Podemos conversar um pouco quando chegarmos em Brasília?

- Sim. Vou dormir lá essa noite. Mas... o que esse tal lugar estranho tem a ver com meu livro?

- Aceita o meu convite para jantarmos juntos? Leve sua família. Eu vou só, quem está dirigindo o carro pra mim tem que se apresentar ainda essa noite no quartel. Vamos jantar essa noite juntos?

Jantaram. Rita e Ricardo VI ficaram no hotel.

1.16.2006

I HATE TO SEE THAT EVENIN’ SUN GO DOWN

(Por favor, com sotaque:)

Quando se chega a Salvador
Sua orla imensa nos atira nos arrecifes
Duros de se pisar
Melhor ficar na beira
Bebendo cerveja
Água de coco
Água-ardente
Pensando brisa e filosofia.

Quando se vai no Mercado Modelo
O cheiro de couro cru se lambuza de azeite
Confusão danada a influência
Dos turcos de Jorge Amado
Melhor ir pra varanda sacanear o mar
Fela da puta
(que tu é grande)
Mas de há muito não tem sossego
Esses barco de Caymi não vai lhe deixar dormir.

Quando se sobe de elevador
É muito rosto encrespado no escuro
Quem foi que tapou a visão do mar
Que cabra da molesta foi
Que só nos devolve ela
Quando se acaba a subida?

Mas se descer de a pé
Não vá desconfiado não
Nem vá deslumbrado com os ouro das igreja
É assalto certo
Baiano não seqüestra só molesta
Ele mesmo é quem diz.

Esquece esse negócio de ouro das igreja
Não faz comparação com outras não
Quem tem mais ouro pouco nada importa
Melhor ouvir lá dentro
No convento de São Francisco
A voz de uma deusa assim ainda indiscoberta
A não ser nos céus Maria Betânia
Melhor compreender que ser compreendido
Ela canta em Português

Pros gringo ouvir.

Eles que aprenda.
Ou se arrependa.

Passeie depois no carrinho elétrico
Se faça acompanhar de duas vigaristas fantasiadas
De baianas
Ouça as histórias do navegador terrestre
Dê a ele a gorjeta proibida
Batuque atrevido Olodum
Não tenha raiva
Se baiano insiste que favela na orla não é favela
É bairro

É o que ele diz

Porque favela que é favela é Alagados.

E quando estiver sacaneando o mar de perto
Reclamando dele dos arrecifes dele
Se lambuzando de acarajé sem saber direito
Que diabo de abará que é esse
Qu’essa mocinha bonita oferece vende
Tudo limpinho arrumadinho a família toda trabalha
A mãe a tia ela também
Agüente firme as gritaria da negada levando porrada
Lá no Pelourinho
Se console meu rei repita o verso
De Vinicius de Moraes para um preto americano
Que morreu de porrada
Lá nas mão dos Ku
Klux
Khan.

Olhe pra cima
O verso tá lá.
Nos céus.

1.14.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- ENTREATOS –

(3)

Quando o autor de “A Revolução Brasileira de 2017” aceitou o convite para comparecer ao fórum “2015 – Começo da Nova Era”, ainda que o General não se tivesse dado conta, já havia no ar o prenúncio da “coisa” que estaria por vir, e que ele, o General, viria a perceber dois anos depois - quando a revolução prevista em 2009 por Ricardo V afinal eclodiu, ainda que com contornos que o descendente do violonista Ricardo Coração dos Outros não enxergara.

Da janela de um dos últimos andares do hotel em que se hospedara, Ricardo V mirava o mar que banhava a orla do Rio de Janeiro, sua cidade natal. Lembrava-se das previsões feitas para aquele ano no início do século. Lembrou-se inclusive de que um certo ministro fizera, daquele 2015, o ano programado para o equilíbrio social no Brasil, tendo sido sarcasticamente ironizado por alguns dos bons humoristas e outros críticos da época, mais no sentido de “Só em 2015, ministro?”, do que propriamente duvidando de seus possíveis dons adivinhatórios, premonitórios ou mesmo de projeção macro-econômica com alguma base científica.

Fato é que a convulsão de 2010 uma vez mais demonstrara que a fama de passividade do brasileiro era – como não poderia deixar de ser – falsa. Não foi um levante, como se bem sabe, mas mostrou que o tão propalado e tão mal combatido fosso social era um permanente estopim. De quantos veículos depredados e queimados, de quantas vidraças quebradas eles vão precisar para perceber nossa desgraça e modificar nossa realidade? – perguntou, de público, um argelino, na periferia pobre da Paris de 2005 -, pergunta que perfeitamente caberia em diversos lugares e épocas do mundo, que dirá no Brasil, de 1800, 1900, 2000, 2005, 2010..., - assim perdia-se em divagações Ricardo V, olhando o mar por trás da vidraça da sua suíte de hotel.

Diferentemente de grande parte das previsões, especialmente daquela do ministro aqui citado e propositalmente não identificado, em 2015, a concentração da renda nacional permanecia pondo em risco um equilíbrio considerado como minimamente desejável por investidores e analistas da sócio-economia; mas não havia nenhum indício de uma nova reação de massas, a não ser um ou outro arrastão nas praias de Florianópolis.

Portanto, que prenúncio existiria, que não fora notado nem pelo General nem por ninguém, naquele ano?: um quase imperceptivelmente organizado silêncio geral. Era o que inquietava – sem que ele, de modo algum, soubesse – a Ricardo V.

Ele deixara Minaçu no vôo fretado pelos responsáveis pelo fórum, vôo aquele já vindo de Brasília, com alguns dos outros convidados a participar do evento, que pretendia reavaliar as previsões feitas na virada do século XX para o XXI, analisar os principais fatos sociais, políticos e econômicos ocorridos nos últimos anos, no globo e particularmente no Brasil, e planejar o futuro, de uma forma que se pudesse alcançar o equilíbrio considerado como minimamente desejável. Escritores, políticos, representantes da mídia, investidores, cientistas sociais, sociólogos, psiquiatras, psicólogos, antropólogos e economistas formavam o núcleo de debatedores. (A mãe de Ricardo V, Sérgia, fora convidada, mas recusara o convite, preferindo viajar com o pai dele para a Dinamarca. De férias.)

Nas vésperas de tomar o avião em Minaçu, Ricardo V conversara com algumas das muitas pessoas simples daquela cidade que ainda lhe parecia irreal, como irreal parecia ser sua própria permanência por lá. Tivera dificuldades em arrancar palavras que fizessem algum sentido lógico especialmente de habitantes da região rural, sentindo um indescritível desconforto, como mais tarde se recordaria e comentaria com Rita e o filho deles, Ricardo VI. Teriam todos se imbecilizado ou fui eu que imbecilizei?, perguntava-se.

No Rio, não quis ir de helicóptero até o hotel, preferindo arriscar-se nos muitos viadutos e ruas da cidade. Parecia-lhe que a modernidade, com todas suas descobertas científicas, era débil para modificar o que chamou de “rachaduras estruturais da sociedade brasileira”, especialmente nas cidades litorâneas, onde favelas ainda se mesclavam a toscos conjuntos habitacionais construídos pelo governo ou doados pela iniciativa privada e outras instituições, e esquinas eram ainda freqüentadas por menores, patéticos e esqueléticos malabaristas, vendedores de balas, lavadores de pára-brisas, pedintes. Em um dos muitos pontos de engarrafamento, um senhor, que lembrava Ghandi, esmolava. Ricardo V chegou a assustar-se com o ar de simpatia e alegria daquele velho, conjeturando, como seria aguardar pela morte pedindo esmolas todos os últimos dias da própria existência? E a cidade em volta continuava linda e ele lembrava da mãe teorizando tudo, quando ele era ainda um rapazola: “Dar esmolas é dar continuidade ao absurdo; não dar, também.”.

No dia seguinte, algumas horas após sua contemplação do mar oceânico da janela da sua suíte no hotel, Ricardo V assim iniciou sua fala, no fórum “2015 – Começo da Nova Era”:

- Parafraseando Picasso, “escrever é libertar-se”.

Depois, fez breve relato do que pretendera com seu livro “A Revolução Brasileira de 2017”, livro que, de tão famoso, muito mais que a tentativa de utilizá-lo como vedor de perspectivas de oportunidades e riscos no Brasil, conduzida por uma universidade americana por conta de um fanático, fazia-o percebê-lo como a impedir-lhe de fazer outros que pudessem torná-lo aquilo que pretendia para si: um escritor, nada mais que um juntador de pensamentos, idéias, ficções, versos, sílabas, palavras. Consolava-lhe, às vezes, seu solitário violão.

1.10.2006

FRAGMENTOS

Saímos de férias. Rio, Parati, Petrópolis, Buzios. Amanhã, Salvador. Chuvas em Parati são uma calamidade, não há preservação que justifique a inexistência de uma drenagem decente. No mais, bons restaurantes, muita alegria e música, o casario ainda é preservado e, que civilizado!, não se anda de carro no Centro Histórico. Em dia de mormaço, um passeio de barco alivia toda dor, que dirá ensolarado. Palocci estava em um dos restaurantes onde almoçamos tarde, quase noite. Dois puxa-sacos, dos mais nojentos, ficaram de pé às minhas costas, dizendo porcaria e mais porcaria ao ministro, suas bundas fétidas em ridículas bermudas de jeans à altura dos meus ouvidos - eu, sentado, olhando o porto lá fora, bebendo uma paradisíaca batida de pitanga com casquinha de carambola. Dei um safanão na cadeira e, aí, os dois vis, desprezíveis como o esgoto jogado imbecilmente na rede pluvial, tocaram-se, mexeram-se, deixaram-me na paz que todo ser vivo bem merece, bem mais que os mortos. Lembrei-me de um verso de uma canção que fiz faz tempo: "Ministros vistos, tão mal-quistos, desligo a televisão". Ali, não havia um botão, mas minha cadeira fez a vez dele.
***
No centro de Petrópolis, um casarão antigo é, agora, hotel e restaurante: Solar do Imperador. Belíssimo lugar, boa comida, paz de espírito. De resto, o cheiro de chuva, cigarras, pássaros, arzinho frio, toda minha infãncia permanece ali.
***
A sobrinha de minha mulher, Bia, me pergunta, Tio Mario, porque você não fica bêbado quando bebe? Não tive resposta pra ela, mas passei a tê-la aos chatos e chatas de plantão:

Não bebo muito
Apenas
Bebo bem.

À amada, direi:

Bebamos, bem.
***
Buzios é um buticão cercado de mar e beleza por todos os lados. Aos chatos e chatas de plantão, buticão é aumentativo de butique, não de botequim. Mas, se quiserem que seja, ora, assim seja. O que me lembra a frase de um amigo, Paulo Otoni: "Eu também não gosto de chope. É por isso que tento acabar com ele.".
***
Do Rio não falo, é que meu coração ficou lá.
***
Assisti a um dos vídeos do Chico, aquele sobre seu mundo feminino. Ele se diz um vouyeur, um vedor, que, na verdade, nada entende do mundo feminino, apenas tem por ele imensa curiosidade. Pois eu, modestamente, parei no tempo, vivo na mesma época de Álvares de Azevedo, sou um trágico. Assim, decreto: Às mulheres, a pobreza deveria ser proibida. Como é triste ver uma mulher pobre!
***
Nelson Rodrigues tinha razão: Deus só frequenta as igrejas vazias. As cheias vivem cheias de homens e mulheres vazios. Pode não ser o seu caso, mas é que...

Mercado que toca Renato Russo às nove e meia da manhã deveria ser interditado.
***
Não aguento mais me perder. Ando pelas ruas com o pensamento numa canção, numa peça que quero escrever, um solo que ainda farei ou, então, uma comédia em dois atos, eu e uma atriz, mais ninguém, nem cenário quero, o infantil que escrevi pra minha filha e que farei o possível para montar ainda neste ano. Pronto: passam praças, viadutos, tu nem te lembras de voltar e, eu, já estou fora do ar, fora do caminho, onde foi mesmo que larguei o carro, em que rua temos que entrar?, como sofre quem anda comigo!
***
Amanhã, Salvador.
Saravá!

1.07.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- ENTREATOS –

(1)

- Você fica dizendo “naquele tempo”, mas, hoje em dia, não morre gente do coração?

- Morre. Principalmente entre os pobres.

- Tem muito pobre no Brasil?

- Tem. Miseráveis, inclusive. Gente que não tem o que comer.

Depois da resposta do pai, Ricardo VI ficou por alguns instantes em silêncio. Então perguntou:

- Como foi que vovó Sérgia participou da revolução?

- Contra. Participou contra ao que os militares chamaram de “revolução” e a reação chamou de “golpe”. Golpe de Estado. Os militares tomaram o poder, depuseram Jango, João Goulart, que era o presidente da República. Tudo complicado demais pra sua idade, eu acho.

- Não importa. Eu estou gravando.

- Ah, você veio armado de um gravador pra nossa conversa, é?

- Vim.

Sim, era ainda a mesma tarde-noite de 2010, em Minaçu.

(2)

O General gostava de andar nu pela casa, o que irritava um pouco à empregada, uma senhora que trabalhava pra ele desde quando ela estava com quarenta e, ele, vinte e nove. Agora (em 2017), ela estava com setenta; ele, cinqüenta e nove. Essa mania de andar pelado era recente. Solteiro, jamais se soubera de um caso dele que fosse. Espartano – era o que, dele, diziam seus amigos.

Acessava a rede (a dez a doze) pelado, sentado sobre uma toalha. Sentiu uma súbita dor na lombar; deitou-se de costas no chão frio do apartamento da Avenida Atlântica, decadente, Copacabana, a vista para o mar era o que ainda resistia e dava forças. Deitar de costas no chão gelado, também. Fez exercícios para a lombar, esticou-se todo, virou-se de bruços, ficou assim por alguns instantes. Depois, em posição islâmica, não para Meca, apenas para alongar-se mais, um pouco mais, até aliviar-se da dor nas costas.

De pé, telefonou para Almir, seu melhor amigo.

- Almir? Fernando. ‘ce tá bom, meu amigo? (Uma pausa.) Não senhor, estou é muito do preocupado. Tem coisa no ar. (Pausa.) Camarada, onde é que já se viu esse silêncio todo, parece que o tempo parou. Que tecnologia que nada, não é de veículos que estou falando, nem da mídia – essa continua a mesma de sempre, dando a impressão que transmite notícias de outra galáxia, de um universo azul e plácido. Refiro-me ao povo, Almir, ao povo. Tá muito calado, Almir.Vem coisa aí, me escute, Seu General de Pijamas, aí vem coisa. E da grossa.

Despediu-se, desligou e disse - para ninguém, embora a empregada o tenha escutado:

- Esse Almir, coitado, é uma besta. Bom sujeito, mas não enxerga dois palmos na frente. Vem coisa aí, Seu Almir, acredite no Fernando velho de guerra.

Olhou finalmente para a empregada, que baixou os olhos, envergonhada:

- Aí vem coisa – ele disse a ela. E retirou-se para o quarto de dormir. Vestiu-se e saiu para a rua.

1.03.2006

ISMOS

Do bairrismo, é preciso explicar que o Rio de Janeiro é o lugar onde o Flamengo fica na Gávea, Botafogo, em Niterói, Fluminense é quem não nasceu na cidade e a loja oficial do clube que tem esse nome fica no Flamengo. É também onde a terceira idade conversa em voz alta na fila do pão e uma sexagenária, com um maço de cigarros na cintura, decreta e anuncia em voz alta: ESSE NEGÓCIO DE MORTE É PROS OUTROS. EU NÃO VOU MORRER E PRONTO!

Pois o feminismo começou com sufragistas inglesas, desembocou em passeatas americanas e instalou-se definitivo em Ipanema, de biquíni, na barriga da grávida Leila Diniz. Convido os amigos a deixarem de lado nosso machismo, fechando os olhos do desejo e abrindo os da admiração, para perceber que as mulheres são redondas nos olhos, nas testas, nos cílios, nas sardas, nos dedos dos pés, que nos enfrentam em nossas discussões sem sentido com a valentia e a elegância de cadelas prenhas nadando no mar de Copacabana e que mudam de assunto com a velocidade da luz. Elas é que vão superá-la, nós, homens, jamais o conseguiremos.

Do capitalismo e do socialismo, Sérgio Porto é que foi quase tão rápido quanto a luz: “No capitalismo, o homem explora o homem; no socialismo é o contrário.”.

Já o racismo é imensa, rasa e cruel burrice.