12.17.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E NOVE –

Os criadores das marcas e redes que substituíram a Internet - a 1012 e a Tera-portal Mundial (TPM) - já haviam percebido que sua estratégia em comum, de querer inspirar um certo saudosismo, um passo atrás da real potência e seu correspondente número de zeros em capacidade e velocidade de transmissão de dados, não havia sido percebida por uma quantidade considerável de usuários, ainda que minoritária. Exatamente essa minoria é que começava a se encantar com a marca concorrente das concorrentes, que nada oferecia a mais – apenas o marketing da realidade: o máximo de modernidade e potencial que se podia por à dispor da multidão e de cada usuário naquele ano, 2015.

Sabe-se hoje, em 2020, que a concorrente não conseguiu sobreviver à capacidade de reação e inovação implacável das duas grandes, que continuaram mantendo em comum a ultrapassada e supostamente emblemática e nostálgica potência 12 em suas marcas registradas. Mas, naquele ano, a ousadia da competidora das duas hiper-redes expuseram Ricardo IV a uma chateação: não a maior, mas fundamental cliente de seu escritório de advocacia era a TPM; pensar em buscar apoio – parceria! –, justo na concorrente Dez à Décima-segunda, era de arrepiar, ainda que parcerias entre concorrentes já não fossem havia muito tempo nenhuma novidade.

E daí? O que acontecia com ele é que, mais uma vez, havia uma mulher a lhe embaçar a realidade. Seu escritório, que cuidava, como cuida, muito bem de marcas e patentes, e de encontrar grandes possibilidades em imensas impossibilidades - como o faz, de maneira geral, a humanidade, desde que foi inventada -, saberia, como soube, enfrentar a crise, abraçar a parceria antes inimaginável com a Dez à Décima-segunda, até derrubar a concorrente das concorrentes e retornar ao mundo já conhecido, onde só havia uma concorrente a enfrentar e com ela dividir o mercado. Ele fazia parte da máquina vencedora, mas não era assim que se sentia. Uma melancolia lhe tomava a alma, sonhador demais, sofredor demais.

E que mulher era aquela? Amante? Não era. Mais que em qualquer tempo antes daquele, sentia-se apaixonado pela mulher, Sérgia. Desejo por desejo, ora, era homem vivido, experimentado; sabia que desejo é coisa de tão natural que animal.

O fato era que ela passara para a concorrente – não para a terceira, mas para a popular Dez-a-doze. O que, na verdade, funcionaria – ele sabia disso, antes mesmo que funcionasse – como facilitador da parceria com a tradicional concorrente, que já propusera à sua cliente, a TPM.

Mas, quem era aquela mulher? Sua irmã? Se assim a definisse, nada mais falso haveria no planeta da falsidade, ainda que não tivesse irmãs, pois achava que não precisava delas, suas filhas gêmeas lhes bastavam como companhia, senão fraternal, quase como se fosse, as duas com 42 anos, ele, 65.

Amiga? Ela não era mais, como não era menos, que sua amiga – mas assim não a conseguia ver.

Estaria apaixonado, sem o saber? Não! Não admitia essa hipótese. Teve interrompida sua angústia de encontrar melhor palavra que admiração, que descrevesse o que sentia por aquela mulher, por um de seus sócios minoritários, Renato Campos de Melo, que lhe perguntou:

- Que cara é essa?

- Não se descende de poetas impunemente.

Seu sócio estava preocupado demais para tentar decifrar a resposta de Ricardo IV:

- Toda história de “joint-ventures”, parcerias explícitas ou por debaixo do pano, como a que vamos fazer, fusões, aquisições, ainda que várias tenham sido bem sucedidas, todo casamento entre empresas, depois que se desfaz, como o da TPM com a Dez-a-doze será desfeito assim que engolirmos essa novidade perniciosa que surgiu, é como qualquer casamento: deixa uma seqüela, uma ferida, um estrago qualquer. Estávamos bem como estávamos, não sei se essa estratégia de aliança é uma boa idéia. Por que simplesmente não enfrentamos essa a mais e pronto; pra que casarmos escondidinhos com Dez-a-doze?

- Não há outra saída.

- E depois, como será?

- Será depois. Mais nada que isso.

- Você hoje está esquisito mesmo, hein?

- É que não sou poeta, como meu pai. Por não ser poeta, não encontro a palavra certa para o que não consigo definir. Fico nostálgico de meu pai e fico frustrado por mim.

- Não é melhor pensar no problemão que temos nas mãos, essa fusão falsa debaixo da mesa, que nem amantes em restaurante, na presença do marido de uma e da mulher do outro?

- São favas contadas, como diria meu pai. E logo se vê que você também não é poeta. Vamos lá?

E foram, ao encontro dela, no escritório da Dez-a-doze, levando com eles dois diretores da TPM. Daria tudo certo, como deu certo o descasamento, um ano depois, depois de devidamente falida a concorrente, assunto que sequer chegou ao hiper-noticiário, nem tanto porque este fica sob controle das duas hiper-redes, mais porque um ano depois foi o da Revolução de Mentalidade, matéria que dominou todo e qualquer noticiário durante seu acontecimento. Por causa dela, da revolução, esse tipo de fusão e disfusão, com o único propósito de destruir uma terceira concorrente, teria sido mais difícil; mas ainda assim ocorreria. Haverá sempre no mundo gente como aquela mulher, para a qual Ricardo IV não achou palavra capaz de descrever seu sentimento por ela. Filha da puta! – foi outra expressão que lhe ocorreu na mente, encerrada a reunião, que selou o acordo das duas hiper-concorrentes, tramado por aquela mulher.

Seria medo a palavra que não encontrava? Era isso que sentia por ela? Tinha medo daquela mulher?

Não! Isso ele não queria admitir.

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