10.15.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005


- CAPÍTULO TRINTA –

O movimento orbital de um corpo celeste é uma revolução, como o de uma coisa qualquer em torno de um eixo. Por que será que meu pai imaginou uma revolução para o ano que vem? Em torno de que eixo? Que órbita será iniciada por esse movimento que ele imagina que será pacífico? E que tem que ser insurgente, pois, senão, não será uma revolução?

Contra o quê é fácil de se perceber.

Houve progressos consideráveis desde a última década do século passado. Toda e qualquer farsa, tenha vindo de que força que tenha sido - comunicações, poder público, tráfico, toda e qualquer farsa -, se assim não se revelou de imediato, assim foi logo desvendada, farsa como farsa que era e sempre foi desde a origem; fosse por outra das forças ou pela simples percepção que se consolidou do que seja e do que deixe de ser farsa.

Sublevação, rebelião, subversão, revolta, insurreição – nada disso é parecido com paz, movimento pacífico, sequer orbital. Engano meu: orbital, sim, pode ser – e deve, deve ser esta a fixação de meu pai. Orbital em torno de uma idéia. Meu pai jamais foi marxista, aliás, nunca consegui saber quem influencia meu pai, ou com quem ele se identifica. Tantos meu pai leu! Deve ser ele um misturador de idéias e ideais. Da minha parte, sempre me deu mais prazer escrever e escrever e escrever, pelo simples especular. Perguntar. Observar. Orbitar! Mas sem saber em torno de que eixo...

Minhas tias gêmeas e meu avô lá fora se perguntam, mas afinal, o que ele escreve, um diário? Mais curioso ainda: ainda não perceberam que encontrei escritos e discursos e pautas musicais da terceira geração dos Dos Outros, que nasceu de Maria Cristina e Ricardo II, morto na guerra de Hitler e Mussolini.

Mais interessante ainda – e espero que meu pai não perceba – é que, momentaneamente, enquanto passo esse tempo aqui no Rio, roubei dele curiosas anotações. Procurei por elas em seu livro famoso e não as encontrei – quando muito, alguma coisa parecida, alguma idéia que ele desenvolveu desses rascunhos. Mas não deixa de ser interessante que possam se tornar realidade. A revolução pacífica, que transforme o Brasil não em um país igualitário e totalitário, mas inclusivo, do socialismo surgido do próprio capitalismo. Ou vice-versa? Posso muito bem usufruir do início da minha adolescência. Posso, aliás, inventar palavras, como adulescência, a essência da adulação adolescente. Regina Célia é puxa-saco – puxa, que decepção! Adulando o professor Henrique, de Português – e pelo telefone! Pan-babaca!

Meu pai, Ricardo V, escreveu assim, já faz bastante tempo:

Muito me admira a capacidade de alguns desses agricultores dessa terra seca e poeirenta a maior parte do tempo e encharcada durante o resto não só de arrancar o que seja do chão, seja milho ou pasto ou vegetação a lhes curar a dor de barriga, mas de conseguir vender e escoar a produção deles nessa cultura secularmente isolacionista, individualista, que usa tapa-olhos laterais e só enxerga a tela da televisão. Mais vai me admirar – e há de acontecer – quando essa gente arrancar dos olhos desses cavalos de carga humanos seus tapa-olhos. Só que suavemente, muito suavemente.

Escrevo essas notas para jogá-las fora depois, revoltado de perceber que me falta a competência de difundir o óbvio: as organizações não-governamentais explodem em resposta à incapacidade das governamentais e no entanto com os mesmos vícios de origem, de origem, de origem.

Muito me admira essa gente que arranca planta e pasto e comida da própria merda da terra. Não tenho a menor dúvida de que será essa gente a fazer a Revolução, que será pacífica, pois camponês de verdade jamais quis saber de arma alguma, a não ser a de fazer comer, e quando percebem o gosto de fazer os outros comerem, vendendo o que produzem, ora, da única arma que querem é a que fizer que vendam mais para trabalhar mais e vender mais.

Investimento no social: eis uma expressão idiota. Idiota porque está sempre na boca de idiotas. No dia em que for percebido e desejado que o investimento no desenvolvimento social seja igual a qualquer investimento, isto é, dinheiro para se ganhar mais dinheiro, aí sim. A inclusão social trará consumidores, produtores, mão de obra, criadores, artistas; mas não é a política profissional que a fará, como não serão ONGs, nem ideologias. Será a mentalidade de quem empreende, principalmente dos sem dentes na boca. Vai lhes cair a ficha!

Eu preciso me cuidar para não enlouquecer, como aconteceu com Maria Otávia. Amanhã, acordarei e escreverei tudo isso de novo de novo de novo, mas com outras palavras. No computador.

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