12.29.2006

VALORES - UMA CRÔNICA INACABADA

A bolsa ou a vida! - ameaçava o assaltante à senhora, que, sem hesitar, entregava a bolsa e ficava com a vida. Trocava seus valores pela manutenção da vida, por mais sem graça que ela fosse. Pouco importava se era uma desprezada e humilhada por se ter desquitado; ou se tinha ou não marido e era uma entre milhares de mal-amadas, salve-salve. Os valores eram aqueles: os da bolsa - que se ía, com os valores dentro. A vida ficava. Enquanto isso, uma outra, morro acima, carregava uma lata d'água na cabeça.
Não muito tempo depois, era engraçadinho dizer-se, Que pena, o Rio, uma cidade tão bonita e... tão violenta. O veneninho corria pelo canto da boca e o carioca se saía com uma resposta, ora irônica, às vezes ressentida.
Depois foi São Paulo, paralizada, atônita, em estado de guerra, nas mãos do crime, do terror sem bandeira nem credo, de dentro, mais que das cadeias, de não se sabe de onde, só se pode imaginar.
No final de 2006, o Rio, de novo: um homem vai dar queixa do vizinho e morre metralhado; uma vendedora ambulante salva a vida do filho de seis anos e morre do mesmo jeito, sem chance de nenhuma queixa; quem viajava de ônibus, adeus: mil queimaduras, morte ou morte em vida.
Cheiramos, nos injetamos, fumamos, ou não: e, em qualquer doas casos, estamos à mercê.
No tempo da bolsa ou a vida, sabíamos onde estavam nossos valores. O problema é que sempre foram poucos: os da bolsa e, para os mais afortunados, os guardados no banco.
Futebol, café, Pelé, samba, chorinho, bossa-nova, religião, exportações, volei, top-models - pense em algo que seja, verdadeiramente, um valor brasileiro: não fica um. E daí? - questionará você, argumentando que os americanos, por exemplo, cheios de moral e nacionalismo, são uma ilha cercada de guerras por todos os lados, e hipocrisias, além de pobrezas e misérias e racismos pornograficamente desnudados, ultimamente por furacões; os europeus, na sua maior parte, encontram-se imersos em um pote até aqui de mágoa de seus ex-colonizados, e tome bombas e incêndios e depredações, pouco importa se sua cultura, latu / strictu sensu, lhes seja um real valor; e que os ultra-religiosos matam-se entre eles, aos outros e a quem estiver por perto, cheios de seus valores históricos e além-túmulo.
Nós não temos valores; e daí? Talvez por isso vivamos placidamente, até que um tiro ou incêndio ou enforcamento num subterrâneo ou numa subida de morro nos alce a um outro tipo de inferno. Talvez daí nos seja natural a combinação explosiva da economia forte e vegetativa com uma das piores distribuições de renda do planeta e suas crias - crianças morrendo e nos matando nos sinais de tráfego, classe média desesperada, gente pobre e gente rica cheirando bosta branca, movimentos supostamente representativos apenas expondo as cáries e a gengivite de nossos campos férteis, a seca, a enriquecer boçais e a matar desgraçados, e, principalmente, a política, sim, verdadeiramente representativa da alma brasileira: eu quero o meu e o resto, ora, que se...
Talvez esteja aí nossa grande possibilidade: nós não temos valor algum.
E quem quiser que acabe a crônica.

12.18.2006

DE VOLTA PRA CASA

De volta ao padrão; à normalidade. Às Terças, um avulso, um texto desconexo do antes e do depois.

Havia uma canção que dizia: Paraíba não é Chicago não. Já uma repórter bem conhecida da TV uma vez disse que Miami parece o Rio, só que no Primeiro Mundo. Se a primeira afirmativa é correta, a segunda parece que não é - e não é mesmo. As praias de Miami começam por uma pista sólida, mal-coberta de areia. Depois, a areia é cheia de cascalho e há tanto cascalho debaixo d’água que é recomendável entrar no mar de sapatas holandesas. As praias do Rio também passaram por aterros, no seu caso, para privilegiar os automóveis, a andar em oitava marcha, característica dos cágados, nas pistas de asfalto duplicadas. No caso de Miami, era tudo pântano; aterro de pântano não pode mesmo dar certo, nem no Primeiro Mundo. Lugar, aliás, onde Miami não fica: seu comércio é legitimamente paraguaio. A repórter só acertou muito indiretamente em aspectos de indiscutível semelhança: o oceano continua sendo, lá e cá, o Atlântico; e a liberdade é atlântica. O comércio é paraguaio, a sandália é havaiana, a Giselle é Büntschen, e os casais se namoram escancaradamente, héteros, homos, bis.

De volta à Pátria, visitei o norte de Goiás rodeado de belgas por todos os lados. A comunicação é mais atlântica que o próprio oceano e nos entendemos em arremedos de Inglês, Francês, Portunhol, fome de comida e de viver, sede de beber o que fosse líquido. Mato pra que te quero, festa pra que te quero, trabalho. O Congo poderia ter sido aqui; e teríamos colonizado a Bélgica.

Deixei de morar com vista para o mar, em Florianópolis. Não ouço mais o vento nordeste implicando com toda razão contra minhas janelas, como não ouço mais os automóveis se espatifando uns contra os outros, na avenida Beira Mar. Minha janela agora é indiscreta e nem precisei quebrar a perna. Minhas mulher e filha foram para o Rio – vou na Sexta que vem, de férias – e o cachorro poodle muito mais delas que meu amigo mudou-se para a casa da nossa empregada de serviços domésticos, de férias – o cachorro, por ora. Grande Bolinha! Bom sujeito, às vezes parecendo Nietzche, mais recentemente grama – segundo sua mais querida, Maria Luiza, depois de uma tosa infeliz. Ela ainda não sabe, mas, na sua colônia de férias, Bolinha foi atacado por um Pit Bull. Patrícia, nossa nobre empregada, contou-me que saiu no jornal a notícia de crianças atacadas por Pit Bulls nas praias catarinenses, no último fim de semana. Bolinha terá que operar o maxilar. Não sei o que foi das crianças, não li o jornal. Impressionante como a técnica do transplante funciona magistralmente: cada vez mais fica provado que transplantar cérebros de Pit Bull para cabeças humanas transforma os possuidores dessas cabeças de cérebros transplantados em Pit Bulls, capazes de adquirir e deixar soltos semelhantes a eles, montados sobre quatro patas. Declarei à nossa empregada, voluntária e provisoriamente tutora do Bolinha, que vou processar o animal responsável pelo animal que agrediu nosso amigo poodle – sem ter a menor idéia de como processar alguém. Muito menos um portador de miolos transplantados de uma raça que se supõe canina.

De volta ao padrão; à normalidade.