11.26.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRINTA E SEIS –

As obras de construção da segunda hidrelétrica, nas mãos da iniciativa privada, seguiam aceleradas. As rodadas de negociação para indenização de proprietários e reassentamento de moradores e trabalhadores de terras que iriam ser alagadas não podiam seguir em ritmo diferente. A população não-proprietária atingida tinha que decidir para onde ser reassentada: reassentamento coletivo agrícola, uma casa na cidade ou um auto-reassentamento rural por carta de crédito? Dentro da casa, onde as salas serviam de escritório, assistentes sociais conversavam baixinho com as pessoas. Já o contratado para negociar a indenização de terras falava alto de se ouvir lá fora. Lá fora, a fila de quem esperava sua vez de ser atendido.

Luzia apoiou as mãos nas costas, muito cansada, mas sem cramá da vida. Na beira do rio, prantava o que desse, o marido fazia tudo que ela pedia. Na verdade, mandava. Mas ele fazia e de bom grado. A terra de Seu Ernesto já não estava dando era nada que prestasse. Para ela e a família, a idéia de se mudar para um lote de reassentamento que fosse seu era como um sonho que viria a se realizar de forma completamente diferente do sonhado todos os dias, todas as horas do dia e da noite.

10 hectar num é nada, num presta pra nada. 2 alqueire, o que é que se faz com 2 alqueire? Zininha de manhã tinha caído no buraco outra vez. Inferno de vida. Calor insuportável. Prantá se pranta em qualquer lugar, saiam dali e iam pra outro lugar, pra terra de outro, pra beira do rio, na beira do rio num tem seca, pranta e colhe e pronto, num tinha esse negócio de chegar uma empresa e tirar ela dali. Aquele buraco é que era um castigo, não sabia era do que, afinal, era castigada. Pecado todo mundo tem, o dela não era pior do que o de ninguém. Ninguém aparece, Deus do céu, pra me tirar daqui. Apareceu uma dessas moça da empresa, até que enfim, Moça, tira eu daqui, caí na disgrama desse buraco. Fica tranqüila, Zininha, me dê a mão, vá. Vamos pro escritório da firma, ocê precisa dizer praonde tu queres ir, Zininha, vamos, ajeita o cabelo, passa uma água no rosto, vai. O moço da camionete tá esperano.

O banco num vai emprestá dinheiro pra mim. Os fila da puta só qué sabê de papé. É só do queles querem: papé. Papé e mais papé. Essa hidrelétrica vai tirá muita gente das casa, o negócio é não sê idiota, tem que tirá vantage da situação. Se é pra mudá, se não tem jeito, mió que muda pra mió. Meu genro acho que tem os papé que o banco tá quereno, levanto o dinheiro no nome dele, pago pra ele, compro minhas cabeça de gado, umas vaquinha, vou tirano leite, vendo e pago a ele e pronto. Depois, compro outras vaca e vai se viveno. Já quebrei umas duas veiz, num vou quebrar de novo, nem fudeno. Seu Josefino aqui não é burro não, só de carga, êh êh.

Zequinha apareceu perambulando já totalmente bêbado, como era sua rotina. Queria cumprimentar os outros e ninguém lhe dava a mão, só o capanga do agiota que andava de chinelo de dedo, apertava a mão dele com uma nota de dez dentro e dizia, Vai-se embora daqui, Zequinha, vai pra casa da tua mãe. Vou me matá mais um pouco e depois eu vou, Zequinha respondia.

Essas negociação tinha que sê mais depressa, a fila tá grande demais. Dispois nós chega lá dentro e eles tem pressa, diz que o lago vai enchê, que a rente tem que escolhê depressa, senão as água vai cobri nossas terra. Mas o preço que eles tá pagano tá baixo, eu quero mais. Terra minha num tem ninguém que vai cobri de água se eu num quisé, num tem decreto nem revorve capaz de fazê isso não. Pelo preço que estão quereno pagá, num vendo não – dizia o agiota, proprietário de fazenda, pro capanga de chinelo de dedo. O revolver na cintura, tal e qual trazia o seu o segurança contratado, à porta das salas das assistentes sociais e do negociador de indenizações. Veio a moça com a garrafa térmica com café e copinhos de plástico, Dona Luzia lhe disse, Moça, quero café não, com esse calô, mió água. Traz água pra nós, moça do céu.

No Rio de Janeiro era um dia igualmente quente, apenas úmido, muito mais úmido que em Minaçu. Ricardo Coração dos Outros V visitava seu avô, muito doente. Enquanto esperava que a enfermeira saísse do quarto dele, olhava fascinado sua estante de poeta e compositor popular. Entre Vinicius de Moraes e Antônio Maria, Sheakspeare; ao lado de Paulo Francis, Caetano Veloso. Era um gozador. Não morre não, vovô, não morre não. Ricardo, seu avô faleceu, lhe disse a enfermeira, saindo do quarto do seu avô, mulata, forte, grande e doce. Era o ano 2000.

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