12.24.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
- CAPÍTULO 40 -
O apelido "Macunaíma do Méier" foi, a um só tempo, ascenção e queda de Pedro Ramon Pereira. Foi o jeito simples, despojado e irreverente de Pedro, na sua primeira entrevista após e sobre o seu ato heróico, que o tornou imediata e mundialmente famoso, que inspirou o comentarista político Adalberto V.B. Martins a associá-lo ao "Herói sem nenhum carater", de Mário de Andrade. O fato de Pedro morar no Méier, bairro da Zona Norte carioca, o mesmo onde, muitos anos antes, Prestes e Olga foram encontrados e presos pela polícia de Filinto Müller, foi o assentar do cimento a juntar os tijolos do apelido irresistível, que ficou estampado na capa do principal veículo da mídia impressa de então e também no super-freqüentado site de Adalberto.
Usando uma camisa social com as mangas arregaçadas e parcialmente para fora da calça; ainda suado, das horas de cativeiro e negociação absurda com o sequestrador e sua cúmplice, tudo aquilo transmitido em rede, a princípio, local, depois, nacional e, em sua útlima hora e meia, mundial, ficou para sempre na memória de quem assistiu, com a aparência, ainda assim, tranqüila, Pedro, a declarar:
- Tive a impressão de que ele (o sequestrador) não queria sequestrar; aliás, ele não queria também resolver causa social nenhuma; pensando bem, deu pra perceber que ele não queria era resolver nada.
- Não, maluco ele não era; talvez um pouco entusiasmado demais; não sei.
- Não gosto de governos, governos deveriam trabalhar pra nós, são bem pagos pra isso, mas, ao invés disso, se disfarçam por trás de ideologias, supostas causas, programas, e nos traem, quase que invariavelmente. Nem que seja somente por megalomania, sede de poder, incompetência - mas sempre nos fazem mal.
- Não, não sou anarquista, porque sou incapaz de varrer a calçada em frente à casa onde moro.
- Tenho quarenta e sete anos, isso mesmo. É, sou casado. Em Deus? Claro que acredito nele, ué. Deve ter sido ele que me pôs nessa situação.
- Medo? Medo, não: pavor. Foi pavor, o que tive; o que senti. O camarada estava descontrolado, totalmente descontrolado, arrebanhou a turma toda na feira de susto, apontando a metralhadora, dando tiros para o ar. Todo mundo deve ter pensado: "É o tráfico.". Que nada! O cara queria era salvar o mundo, salvar a política, terminar com a pobreza. Depois, não sei, fico na dúvida, como já disse, sei lá, vai ver que ele só queria aparecer.
- Pois é, foi uma surpresa, ele ser racista. Foi aí que tive a oportunidade de virar o jogo: "Você não acha uma burrice, o racismo? Afastar em vez de aproximar, juntar, ter mais gente se dando bem, gerando oportunidade? Não é um tiro no pé, no pé dos poderosos, eles serem racistas? Não é ultrapassado, isso?" - eu perguntei. Aí ele abaixou a arma e a jogou no chão e ela matou ele e depois se matou, com o revólver.
- Descobri que quem estava com ele, encapuzado, era mulher, por causa do olhar. Mulher olha diferente de homem. E ela, às vezes, me olhava nos olhos, um olhar muito impressionante.
- Provavelmente dois malucos. É, eu sei, todo mundo viu, tava sendo filmado, né, pela fenda no telhado do depósito onde ele nos trancou, não é? Eu vi, deu pra perceber.
- Fui criado na religião católica, mas não vou à missa, não. Nem entendo nada de missas, padres, essas coisas. Prefiro as igrejas vazias, que nem o Nelson Rodrigues. O Nelson Rodrigues nasceu aqui no Méier, sabiam?
- Presidente da República? Eu? Só porque fui capaz de negociar com aqueles dois? Daonde você tirou essa idéia? Tá maluca?
- Que partido? Não tenho partido. Não acredito em política, já disse. Voto para que alguém cuide do que é público, só isso. O resto, deixa andar, porque anda por si, com ou sem governo, com ou sem ideologia.
Difícil de se imaginar que, três meses depois, Pedro Ramon Pereira, o Macunaíma do Méier, já estivesse em plena campanha pelo PAN - Partido Anarquista Nacional. O slogan da campanha foi: "Estado Mínimo, Responsabilidade Máxima". Disparou nas pesquisas de intenção de votos, quando havia uma total indiferença da população pela política em geral, uma generalizada sensação de frustração, de vontade de não votar em ninguém, sequer de comparecer às urnas para anular o voto.
Aí, começaram os que pareciam estar mortos, afastados, em absoluta condição de desprezo dos outros, em total ostracismo: "Lá vem de novo o neo-liberalismo!", "Quem é que quer anarquia no Brasil, quem é que quer uma bagunça generalizada?", "Fora, herói sem carater! Fora, mau carater!".
Venceu as eleições se sabe quem. Pedro Ramon Pereira, depois de, às vésperas do primeiro turno, estar disparado em primeiro lugar nas pesquisas, sequer ter chegado ao segundo, com a vitória de última hora, surpreendente para todos os analistas especializados, ainda em primeiro turno, se sabe de quem, desapereceu de cena. Dizem que se mudou para o interior do Paraná. Ou do Pará - ninguém sabe ao certo. O comentarista político Adalberto V.B. Martins se matou, jogando-se do vigésimo-quinto andar do prédio onde residia e trabalhava.
Assim que saíram os resultados das eleições, Ricardo V e o filho estavam sentados no sofá da sala. Olhando para a mangueira do quintal da frente pela abertura da janela - era uma tarde fresca; chovera de manhã, em Minaçu -, Ricardo VI propôs ao pai:
- Vamos desenhar nossa árvore genealógica?
Assim foi.

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