Caráter não anda a cavalo, nem de helicóptero, tanque, navio, motocicleta ou avião. Caráter não veste terno, vestido, toga, batina, farda. O caráter não se veste a caráter. O caráter anda nu.
O DIÁRIO DO MARIO contém crônicas e poemas de Mario Benevides, além do embrião do romance A REVOLUÇÃO DO SILÊNCIO, do mesmo autor, publicado em 2007 pela Design Editora, aqui no blog com o título A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS.
9.09.2021
8.18.2021
PEQUENO EXERCÍCIO DE LÍNGUA PORTUGUESA E ARITMÉTICA PARA QUEM ACHA QUE NÃO PRECISA
8.17.2021
O BARCO NAUFRAGANTE
Não é centrão nem milícia ou traficante
Nem cantor, polícia, tolo ou mal
amado salve, salve
Nem mesmo é o deus mercado,
Inodoro, insípido, incolor
Que só tem cor, sabor e cheiro para
quem o conhece de perto e o manipula
Que ainda mantém na superfície o barco naufragante.
É a constante ameaça de
consumação do golpe
Pelo braço forte,
Mão armada.
Antes se falava em poder
moderador (mas que cara de pau),
Em respaldo legal (mas que falta
de vergonha),
Agora e abertamente em ruptura
institucional.
(E os incautos insistem: isso não
vai acontecer.)
Que os militares honrados (incluindo
os que são nossos amigos) saibam
Que nenhum será visto como tal
Se os sem honra apontarem nossas
armas contra nós.
A não ser pela minoria,
De meliantes, tolos e mal amados
salve, salve,
Enquanto a maioria
Vai parar o país de vez.
8.14.2021
A VOCÊ QUE TEM SAUDADES DA DITADURA
Hoje me dirijo especialmente a você,
que é da minha geração e se diz saudoso da ditadura.
Talvez você saiba que Stuart
Angel foi morto arrastado sem roupa por um carro com a boca no cano de descarga,
e diga,
Quem está na chuva é pra se
molhar.
Talvez você saiba que a mãe dele,
Zuzu Angel, a maior estilista do Brasil daqueles tempos, escreveu uma carta
para o presidente-ditador que dizia
Eu só queria embalar meu filho,
E em vez de ter o corpo do filho
para embalar foi executada a tiros pela ditadura, e diga,
Quem mandou ter filho subversivo.
Talvez você saiba que a carta da
Zuzu para o presidente-ditador depois se tronou canção do Chico Buarque com o Miltinho
do MPB4, e diga,
Não ouço esse tipo de coisa.
Talvez você saiba que a Panair foi
fechada em 1965 por vingança dos militares a um dos donos da Panair, e diga,
Quem mandou ser amigo do João
Goulart.
Talvez você saiba que as asas da
Panair foram poetizadas e musicadas por Fernando Brandt e Milton Nascimento e
cantadas por Elis Regina, e diga,
Já disse que não ouço esse tipo
de coisa.
Talvez você nunca tenha sido
constrangido por policiais, fardados ou não, em uma calçada ou na escola ou na
universidade a troco de nada, e até saiba das estudantes levadas a um campo de
futebol onde foram humilhadas por policiais, que urinaram nelas, deitadas no
chão, e diga,
Quem passou por isso alguma fez.
Talvez você saiba que o Brasil saiu
da ditadura com a inflação nas alturas, arruinado, economicamente arrasado, endividado,
e diga,
Antes teve o milagre brasileiro (mesmo sabendo que o milagre foi um milogro).
Mas de uma coisa eu tenho certeza.
Você confunde aqueles tenebrosos
tempos com a sua juventude - e não foi capaz de viver depois da juventude por não
ser capaz de se emocionar com o belo nem de sonhar grande nem de se indignar
com a perversidade nem perceber e até admirar a opacidade intelectual de
ditadores nem exercita o cérebro que possui, e por isso você vive frustrado e
rancoroso e idolatra e mitifica um sociopata fora da lei que detesta a lei (como
você detesta) e quer todo o poder pra si e humilha as forças armadas sabendo que
parte delas nem liga pra isso e quer junto ou não com ele humilhar o povo.
Eu tenho certeza de que você é isso e sabe disso.
7.29.2021
MEMÓRIA EM CHAMAS
A beleza do surfe, skate, ginástica, judô, que não se esqueça flagrante injustiça.
7.27.2021
UM PAÍS DE ALUSÕES
Um encontro agendado com um representante do governo francês é desprezado e trocado por um corte de cabelo alusivo. Um secretário de governo discursa de modo alusivo. Um outro ajusta a lapela do paletó de maneira alusiva, no Senado Federal. O presidente da Res Pública, da Coisa Pública, recebe sem agenda a neta de um ministro nazista que alude ao nazismo, e fazem o mesmo a presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, outro secretário de governo, um ministro e um vereador, filho do presidente.
É duro ter que lembrar do que
tantos de nós dissemos em 2018.
Nele, não.
O que vivemos hoje é a crônica do
nazismo anunciado.
7.22.2021
COMUNICADO OFICIAL
Comunicado oficial.
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7.16.2021
SARAVÁ, BELCHIOR
Eram os dias de Tancredo Neves internado. Torcida e piada, tudo ao mesmo tempo, tudo tão brasileiro, humano, nada mais que humano. Tancredo morre, Sarney assume, feriado nacional. Já podíamos falar mal do governo, ver e ler a Playboy. Na praia, mulheres sem a parte de cima do biquíni eram ofendidas, se não agredidas, até presas. Muitos anos depois, o então candidato ferido por uma facada - facada sem partido - teve no episódio inegável fator eleitoral. Agora temos uma espécie de refacada e circula a pergunta: Se ele morrer de soluço, o nome disso seria solução? Meu irmão Luiz Benevides observa: Não, o nome disso seria Mourão. Deixemos de coisa, cuidemos da vida, se não chega a morte ou coisa parecida. Saravá, Belchior. Saravá.
7.10.2021
CARO SENHOR BRIGADEIRO
Caro senhor brigadeiro, cujo nome não sei:
TRÊS PODERES
Três engenheiros são suspeitos de corrupção. Alguém diz que os bons engenheiros devem estar com vergonha deles. O CREA então diz em nota: os engenheiros são ciosos de se estabelecerem fator essencial da estabilidade do país. Alguém levaria isso a sério? Por que não? Porque as armas dos engenheiros são sua competência ou incompetência; sua dignidade ou falta de.
6.03.2021
PARLAMENTARISMO! II - A PARTIR DE QUANDO E O CHEFE DE ESTADO
Pode parecer falta de senso falar em parlamentarismo no Brasil, mais ainda sugerir eleger por via direta um diplomata para Ministro das Relações Exteriores e Chefe de Estado, com poder de convocar eleições regulares ou extraordinárias para o Congresso Nacional.
No primeiro caso, é algo a ser
pensado como possível – por que não? - a partir de 2027, para sairmos da
armadilha dos salvadores da pátria, carismáticos, populistas, demagogos e assim
por diante. Votar em partidos seria votar em ideias, projetos e programas.
Quanto à escolha do Chefe de
Estado, na figura de um Chanceler de verdade, e não o que representou o
recém-saído, é algo ainda a pensar. Que fosse um diplomata de carreira parece
coerente, pois afinal seria um Chanceler, para representar o Estado Brasileiro
mundo afora, nomeando outros diplomatas para defender nossos interesses nos
demais países e com eles manter relações civilizadas. Mas, como escolher o Chanceler?
Talvez fosse melhor que uma lista tríplice fosse mesmo indicada pelo Itamaraty,
como sugerido no primeiro texto sobre o assunto, e a escolha pudesse ser do
Congresso - a cada quatro anos, dois antes ao da escolha regular do partido que
governaria o país a partir de então, também ordinariamente a cada quatro anos.
Eleições extraordinárias ocorreriam em caso de insatisfação popular com o
partido da vez, em um caso como no outro convocadas pelo Chanceler. Quando a
insatisfação fosse só com a/o Chefe de Governo, o partido elegeria outra
pessoa, com novo Ministério, e o Estado permaneceria funcionando, igualmente
nos dois casos.
Em caso de ausência ou
insatisfação com o Chanceler, caberia ao Congresso solicitar novas indicações
ao Itamaraty para completar o mandato do ausente ou reprovado.
Caso a ideia de minimamente
analisar a possibilidade de o parlamentarismo se iniciar em 2027 seja levada
adiante, por ação de quem compartilhe da ideia do parlamentarismo ser adotado
no Brasil, no ano anterior seria eleito o Partido que governaria o país. Tão
logo escolhido o Primeiro-Ministro, o primeiro Chefe de Estado,
excepcionalmente, teria um mandato de apenas dois anos; e, em 2028, um novo
seria eleito pelo Congresso para os quatro seguintes, mais uma vez com base em
uma lista tríplice do Itamaraty.
Reconduções poderiam ocorrer. Para
o Partido a chefiar o Governo, ordinariamente a cada quatro anos pelo voto
popular, sem limites, já que a dissolução do Ministério poderia acontecer a
qualquer momento, por decisão – leia-se manifestação, ou pressão – popular; mas
não para chefiar o Estado, a não ser, mais uma vez, excepcionalmente, do
primeiro escolhido pelo Congresso, sempre após consulta ao Itamaraty por uma
lista com três nomes, para os quatro anos seguintes. Assim, por hipótese, o
primeiro Chanceler poderia ficar até seis anos no cargo; e os demais, somente
até quatro anos. Assim nossa diplomacia estaria sempre em estado de renovação,
atendendo aos interesses do país, e não à mercê de fritadores de hamburguer
amigos dos outros países.
Quem sabe assim teríamos um país
mais civilizado, ativo politicamente e livre de tiranetes, golpistas e
demagogos. Quanto à corrupção, Ministério Público e Polícia Federal autônomos, ao
contrário de cooptados ou vilipendiados (como, pelo menos parcialmente, hoje se
mostram).
Proximamente, este Cidadão Mario
vai comentar como o parlamentarismo funciona em alguns países que o adotam; e
que reforma política poderia ser sugerida para nossos partidos políticos, de
modo a reduzi-los em número e torná-los mais programáticos de fato e de direito.
Uma reforma política seguida da
adoção do parlamentarismo, após consulta popular por meio de um novo
plebiscito, poderia até dar fim às bancadas temáticas, que só servem para
aglutinar políticos sem coragem de explicitar os interesses que defendem sob a
chancela de um partido. Se for assim, ou se assim é, claro que o que defendem
não é bom para a maioria ou mesmo sequer respeita a lei. Afinal, nosso Estatuto
era do Desarmamento; e o Estado Brasileiro é laico.
Precisa dizer mais?
6.01.2021
VOCÊ, O FATO, A MÍDIA
Por meio de
quem você sabe das coisas? Seus olhos veem, seus ouvidos ouvem, sua vizinha
conta, um zap vem, o telefone toca, um e-mail chega, a dentista ouviu dizer, as
redes espalham, o padre, o pastor, o porteiro, a professora, o diretor, o
motorista, o trocador, a mulher ao seu lado no ônibus, o homem na sala de
espera, muitos comentam e opinam, alguns se calam, fingem não ver nem ouvir,
não querem nem saber, as manchetes da mídia em papel e na internet, o rádio e a
TV noticiam... ou não. Tudo isso é meio, tudo isso é mídia, mas quem lê, vê,
ouve, reflete e sente é você. O que você acha melhor? Não ouvir, não ler, não
ver, não pensar nem sentir? Se calar? Ouvir, ler e ver só o que agrada a você?
Sabe o liquidificador? Quem faz a vitamina é você. Domingo passado, dois dos
maiores jornais do país ignoraram as manifestações de sábado. Mas você, se
apoiou e até participou da manifestação em sua cidade, ou não participou, ou
ainda, você apoia o presidente (que pena, ainda não percebeu que a pátria dele
é a família dele, ainda não entendeu que ele se apoia em quem detesta a lei, em
quem quer rasgar a lei, para assim iludir e enfurecer as massas com as armas
incentivadas por ele e dominar, enganar e iludir as massas com o exército
“dele”), em qualquer hipótese, você ficou sabendo que, mesmo com a pandemia,
dezenas de milhares de pessoas, usando máscaras, tentando o afastamento que
fosse possível, foram às ruas, exaustas de tanta irresponsabilidade, de tanta
maldade, de tanto desdém e deboche pela vida e morte alheias, exaustas,
sofridas de tantas mortes. Não venha dizer que aquilo foi coisa do PT, dos
comunistas, da esquerda. O PT não é comunista, os comunistas são muito poucos e
a essa altura mais do que pacíficos, e esquerda é algo surgido muito antes do
Marx nascer. Se você não sabe, a esquerda aposta no conjunto, na força
do Estado, e a direita no individual, na iniciativa privada. Esquerda quer
progresso social, quer o debate, e a direita, das duas uma: é liberal e aceita
o debate, ou é conservadora, que fique tudo como está e com quem está. Há
também uma direita que se diz liberal na economia e conservadora nos costumes,
assim como há o fanatismo, que impede nada mais, nada menos que o pensamento.
Parte da mídia publicou e deu destaque, no Brasil e fora também, parte preferiu
não dar importância ao que aconteceu no sábado, 29 de maio de 2021. Seus olhos
viram, seus ouvidos ouviram, querendo você ou não, querendo a mídia ou não.
5.29.2021
O CÃO
Cão
O diabo
É o cão.
O cão
É o diabo.
Interessante é o cão
Que não se reconhece no espelho
Que não vê no espelho quão belo e interessante e esquisito
é
Que se olha no espelho e estranha sua imagem
Vê a si mesmo como um estranho
Um estranho.
Interessante é o cão
Sua infância inconveniente
Sua velhice cansada.
Interessante é o cão
Que não percebe o colorido que é seu
Dele, cão,
Que não sabe ou quer saber quão belo é
Ele, cão,
No espelho.
Tão diferente do canalha
Que se olha no espelho
E assim se reconhece
E assim cumprimenta a si mesmo
Prazer minha imagem
Canalha sou
Muito prazer
Com muito prazer.
Interessante
É o cão.
5.27.2021
PARLAMENTARISMO!
Nossa história recente mostra que
o Congresso tem legislado ao bel-prazer de quem está na presidência, por meio
do vexaminoso toma-lá-dá-cá, e não raro em causa própria. Também tem funcionado
bastante para manter ou tirar do cargo quem estiver morando no Alvorada e
supostamente trabalhando no Planalto, um dos poucos momentos em que a
mobilização popular tem importância. Grande parte da sociedade idealiza um
líder capaz de melhorar o país, sendo que melhorar para uns pode piorar para
outros, e vivemos em permanente instabilidade, com a sensação de impotência. Neste
momento, ainda por cima ameaçados por uma família e seus seguidores de nos
tirarem a democracia, de um tranco ou aos poucos, nos jogando de novo na vala
das republiquetas de e dos bananas.
Assim tem sido o presidencialismo
do Brasil. Vale lembrar que, dos cinco presidentes eleitos pelo voto direto
após a ditadura de 1964 a 1985, dois saíram por impeachment, sempre a dividir a
sociedade, que de um lado se sente furtada dos seus votos nas urnas, e de
outro, incerta quanto ao apoio dado à medida, tanto quanto ao que ela traz de
riscos de fragilizar, mais uma vez, a nossa democracia.
Por que não tentarmos o
parlamentarismo? Parece incoerência, já que este texto começou por criticar a
atuação do Congresso Nacional. Mas a sensação de impotência referida vem da
distância entre povo e parlamentares, que aumenta na mesma medida do decurso de
tempo entre a eleição e o exercício do mandato de quem se elege.
O parlamentarismo não passou nos
plebiscitos de 1963 e 1993 por razões que podem ser atribuídas à conjuntura de
cada momento. Na primeira, porque a maioria era contra a evidente manobra para
ofuscar o presidente, eleito como vice, que alguns, de posse das armas da
República ou de poder e dinheiro, sequer desejavam que tomasse posse, e que depois
seria, como foi, derrubado à força. Na segunda, porque após 21 anos de
presidentes impostos, era de se esperar que a vontade predominante fosse a de
votar para presidente da República, que havia sido frustrada na campanha Diretas
Já, de 1983 e 84.
Os dois maiores riscos do parlamentarismo
parecem representar prejuízos menores do que os dessa busca incessante por
ídolos salvadores da Pátria: o da permanência excessiva de um partido no poder,
e o seu oposto: a alternância frequente por causa de instabilidades políticas e
econômicas – mas, nos dois casos, sempre exigindo a participação do povo, a
custos econômicos, morais e psicológicos muito menores do que os que temos
vivenciado ao longo da nossa história.
Como funcionaria? Votaríamos em
partidos. A cada quatro anos, o partido mais votado elegeria um
primeiro-ministro e os demais ministros, formadores do governo. Em uma crise, a
depender da sua intensidade, duas possibilidades: o mesmo partido elegeria um
novo ministério; ou novas eleições seriam convocadas.
E quem as convocaria? O chefe de
Estado, por real e manifesta vontade do povo. Assim, os três Poderes da
República estariam mantidos, e o poder democrático, mais do que nunca seria
exercido pelo povo, diretamente e por meio de seus representantes.
Mas, quem seria e quem elegeria o
chefe de Estado? A sugestão é que fosse um diplomata de carreira, escolhido
pelo voto popular entre três nomes propostos pelo Itamaraty, em anos alternados
aos das eleições federais, estaduais e distritais. Com que funções? Somente
duas: Ministro das Relações Exteriores; e convocar eleições populares, a cada
quatro anos ou quando o povo exigisse.
Para que o parlamentarismo possa
ser implantado, antes de tudo uma reforma política, reduzindo o número de
partidos, com nomes que necessariamente correspondam ao que de fato tenham como
propósito.
Mais adiante, vamos abordar como
poderia ser uma reforma política que proporcionasse ao eleitorado maior clareza
das propostas de cada partido e como o parlamentarismo tem funcionado em alguns
países que o adotam.
Que tal pensar sobre isso?
5.05.2021
A CONSTITUIÇÃO NA MESA DE CABECEIRA - 5 - MAU HUMOR
A CONSTITUIÇÃO NA MESA DE
CABECEIRA - 5 - MAU HUMOR
Dando sequência à série que tem
como único objetivo, de forma despretensiosa e, sempre que possível,
bem-humorada, dar conhecimento a quem não tem da Constituição Federal, este
capítulo trata do mau-humor de importante figura do cenário brasileiro atual
frente a decisões que não lhe competem, tal como previsto na Lei, inclusive e nada
menos do que na Lei Maior.
Dois artigos da Constituição têm
sido frequentemente lembrados e invocados, curiosamente em tom de ameaça, todos
sabem por quem. Um deles é o artigo 5º, incisos VI e XV:
Art. 5º Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias.
XV - é livre a locomoção no
território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da
lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.
A respeito do inciso VI, a instituição
que tem sido o alvo número um do mandatário do Executivo, seus seguidores e família
– o STF – já se pronunciou a respeito, esclarecendo que manter fechados
ambientes para missas e cultos para proteger a saúde de indivíduos e a
coletividade nada tem a ver com a violação da liberdade de consciência e de
crença. Além disso, a este modesto escriba, ora, diante de uma pandemia por um
vírus que se espalha e contagia rapidamente, com mais de 400 mil mortes no país
em decorrência dele, número que tende a crescer, fica bem claro que os locais
de culto e suas liturgias estão justamente - e adequadamente - sendo protegidos,
na forma da lei. O que confere. Decretos e leis municipais e estaduais para
ajudar a conter a pandemia estão na forma da lei: como divulgado pela mídia, em
decorrência de questionamentos presidenciais, o STF decidiu pela competência
concorrente da união, estados e municípios sobre a matéria. Sem entrar no
mérito da decisão, há lógica fundamentada suficientemente: o Brasil é uma
federação; há competências definidas entre os poderes da República; e moramos
em cidades, não na união.
Em relação ao argumento de que as
medidas restritivas são nocivas à economia, estamos certos de que o atual
habitante do Alvorada repetiria a frase “O que é bom para os Estados Unidos é
bom para o Brasil”. Qual economia vai retornar primeiro? A daqui ou a de lá? E
por quê? Joe Biden assumiu sua responsabilidade, orientou a população e
acelerou sua vacinação. Nada a ver com poder aquisitivo. O Brasil teve a seu
dispor oferta abrangente de vacinas. Alguém retardou.
Sobre o inciso XV do art. 5º,
veja-se matéria disponível no website migalhas.com.br, especializado em
temática jurídica, com o título Tempos de pandemia e o direito
constitucional de ir e vir, de André Ferreira e Camila Misko Moribe. O que
autor e autora mostram é o fundamental papel da hermenêutica – aquela
merecedora do Oscar de coadjuvante em todos os processos legais. Os dois citam:
leis criadas e promulgadas (com a assinatura do chefe do Executivo - como deve
ser -, diga-se de passagem) em decorrência da pandemia; e o art. 196 da
Constituição, que expressa:
A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Precisa dizer mais?
Mas o artigo preferido do
presidente é o 142. Na inesquecível mas não memorável reunião gravada e exibida
(com duplo sentido) de 22 de abril de 2020, ele chegou a dizer que, por causa daquele
artigo, é muito fácil implantar uma ditadura “nesse país”.
A esse respeito, um dos ministros
do STF diletos da família e seguidores, Luiz Roberto Barroso, deu uma aula de
hermenêutica em recente decisão. Vamos começar pelo artigo, que estipula em seu
caput:
Art. 142. As Forças Armadas,
constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na
disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se
à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem.
Antes de adentrar na decisão do
ministro do STF, é de bom tom perceber que uma das destinações das Forças
Armadas é a garantia dos poderes constitucionais. Nesse momento, a hermenêutica
nem participa da cena e deixa a atriz principal atuar só, pois, se os poderes
constitucionais são três, como usar as Forças Armadas para desautorizar os três
ao mesmo tempo? Pois não seria isso que aconteceria se essas forças, a mando da
sua autoridade suprema, se insurgissem contra decisões do STF, do Congresso e
de chefes do executivo de estados e municípios? Vamos então à aula de L.R.
Barroso, em resposta a um “advogado paulista que pedia a regulamentação do
artigo 142 da Constituição Federal para estabelecer os limites de atuação das
Forças Armadas em situações de ameaça à democracia”, nas palavras encontradas
no website do Supremo. Vale a pena ler o que lá se encontra reportado:
Em sua decisão, Barroso afirma que,
nos mais de 30 anos de democracia no Brasil sob a Constituição de 1988, as
Forças Armadas têm cumprido o seu papel constitucional de maneira exemplar. Por
isso, considera que presta um “desserviço ao país quem procura atirá-las no
varejo da política”. Segundo ele, nenhum método de interpretação – literal,
histórico, sistemático ou teleológico* – autoriza que se dê ao artigo 142 da
Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora
hegemônica. “A menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva
da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de
200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se
falar em poder moderador das Forças Armadas”, afirmou. Barroso lembrou que,
ainda que seu comandante em chefe seja o presidente da República, elas não são
órgãos de governo. “São instituições de Estado, neutras e imparciais, a serviço
da pátria, da democracia, da Constituição, de todos os Poderes e do povo
brasileiro”, concluiu.
*) Se você não sabe o que significa
“teleológico”, vamos ao pai dos burros, ou a um dos melhores deles, o Dicionário
Houaiss: o que relaciona um fato com sua causa final. O mesmo se acha no
Dicionário Filosófico de Jupiassú e Marcondes, que acrescenta a informação de
que Kant, em Crítica do juízo, se prova a existência de Deus pela existência
do universo: um propósito que só poderia ser dado a ele por Deus, seu criador.
Mas o que o que se chamou aqui de
mau humor é outra coisa.
Bruno Paes Manso, em República
das milícias (São Paulo: todavia, 2020, p. 269), conta que, em 1999, o
então deputado em terceiro mandato, em depoimento a um programa da TV
Bandeirantes do Rio, ao ser perguntado se fecharia o Congresso se fosse
presidente do Brasil, respondeu:
“Não há a menor dúvida. Daria o
golpe no mesmo dia”.
Há quem atribua esse tipo de
arroubo a uma suposta insanidade do presidente. Das duas uma. Ou ele, que há décadas
defende atos antidemocráticos, violentos e atentatórios contra a vida e o
princípio constitucional de resolução pacífica de conflitos, sempre foi insano,
e seus pares e seguidores nunca perceberam; ou há inocência, tentativa de escape
ou ironia de quem supõe sua insanidade.
Quanto a não admitir ser
criticado pela imprensa, frase esclarecedora de Millôr Fernandes está em Mau
humor, de Ruy Castro (São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 142):
Imprensa é oposição. O resto é
armazém de secos e molhados.
Bom humor pra você.
E, principalmente, saúde.
4.29.2021
A CONSTITUIÇÃO NA MESA DE CABECEIRA - 4 – O PAI DOS BURROS
A crase não foi feita para humilhar ninguém (Ferreira Gullar).
Hermenêutica e Propedêutica se
encontravam na farmácia de Hermético para acabar com a peste da Epistemologia. Mas
foi no Palácio de Vernáculo que Vocabulário disse à terceira:
- Tu és a pior de todas – isso na
frente de Etimologia, amante da ofendida e princesa, rival da rainha Erudição.
Esta, percebendo na contenda uma oportunidade, potente em postura e volume, ordenou à sua premirère
femme de chambre:
- Cultura! Mata o povaréu a
paulada!
De Rubem Braga a LF Veríssimo,
brincar com o sentido das palavras não é nenhuma exclusividade. Na fábula
metafórica acima, Cultura, mesmo sendo humilde dama de quarto da sua ama e senhora
Erudição, tem o poder de funcionar como madeira de dar no povo. Afinal, no
Brasil, se não for a cultura em sentido amplo, das tradições e dos costumes do
povo, fica restrita a poucos, deixando a maioria entregue a manipulações de
variadas ordens, ainda mais agora, relegada a uma caixinha esquecida em um
organograma que ninguém conhece, muito mais para destruí-la do que
fortificá-la. Já a poderosa Erudição é o que a Cultura é em nosso país, só que perfumada
de enfado e arrogância. Pelo mesmo motivo, a farmácia da fábula pertence a
Hermético, do deus grego Hermes, entre outras coisas senhor de conhecimentos
nunca dantes revelados. Nem depois.
Mesmo assim, e mesmo tendo acesso
à cultura, à educação e à informação, ninguém que não faça uso corriqueiro das
palavras empregadas com significados diferentes dos seus verdadeiros na metáfora
tem obrigação de conhecê-los. O que isso tem a ver com a Constituição logo se
verá.
É claro que epistemologia não é
palavra usual, tampouco uma peste. É preciso recorrer a um bom dicionário (há
alguns confiáveis inclusive na internet) para saber ou mesmo lembrar que
episteme significa ciência, e logos, teoria, em grego, língua do deus Hermes e
seus pares. Trata-se portanto da teoria da ciência, do conhecimento, da
cognição. Por sua vez, a que assistiu Vocabulário ofender Epistemologia e
responde por Etimologia é a ciência que permite encontrar o significado
original dos vocábulos, ou das palavras. Já o Palácio de Vernáculo, ora, é o do
vernáculo, do escravo nascido na terra do amo, por isso significa aquilo que é
próprio de um país - por exemplo, a língua. Quem nos ensina isso é o Dicionário
Houaiss. Antigamente se dizia que dicionário era o pai dos burros, e burro é
teimoso por não querer obedecer ao amo, ao senhor humano; só que, em matéria
humana, burrice é teimar em não recorrer aos dicionários.
Só faltou falar das duas que têm
nomes de remédio, que também vêm do grego, o que não é o caso de vocabulário e
vernáculo, que se originam no latim. Como não falamos grego (nem latim), vamos
aos dicionários novamente.
Tanto no Houaiss como no
Dicionário Filosófico de Japiassú e Marcondes, veremos que propedêutica
corresponde ao estudo introdutório para conhecer uma ciência. E é a
hermenêutica – técnica ou ciência para interpretação de textos, originalmente
religiosos, bíblicos – que, em matéria jurídica, consiste em um conjunto de
regras ou princípios para interpretar as leis.
E aí chegamos à Constituição.
Juízes e ministros do STF que
põem em liberdade alguém que muitos gostariam que fosse mantido preso se
baseiam na lei, porém sem às vezes levar em conta outros instrumentos legais –
outras leis e a jurisprudência, que nos tribunais anglo-saxões se chama de
precedentes (precedents), ou julgados precedentes, – e a doutrina: o
ensinamento de juristas. Nesses casos de soltura estranha para a maioria, a
hermenêutica pode se basear na letra da lei, que determina com critério e
precisão quando, e por quanto tempo, se pode privar uma pessoa da sua
liberdade.
Recentemente, um ministro do STF,
conhecido por frequentemente devolver a liberdade a alguém que acabou de
perdê-la, defendeu renovar os mandatos dos então presidentes do Senado e da
Câmara por achar que uma leitura sistêmica da Constituição seria capaz de
demonstrar que o constituinte não queria dizer o que disse, justamente no
artigo em que a palavra usada é “vedado”. Quem veda proíbe alguma coisa a
alguém, ensinou a sua professora, assim como uma colega do referido ministro
ensinou a ele. Só para lembrar, hermenêutica é a ciência ou a técnica da
interpretação de textos. Se há ou deveria haver limites para uso da
hermenêutica em matéria do direito, como ou quais seriam e quem os determinaria,
foge muito à nossa despretensão.
Mas, se para a justiça brasileira
criássemos outra fábula e a levássemos para o cinema, sem dúvida a celebridade
seria a Prisão Em Segunda Instância. Já estrelou
vários episódios como vilã e vários outros como mocinha, a depender de quem
assistiu ao episódio da vez e quem com ela o estrelava, principalmente no lado
réu, e réu, bom também lembrar, é quem se defende. O motivo está no uso da
hermenêutica, remédio para uns, purgante para outros, é só saber de que lado
estão uns e outros no momento da interpretação do texto legal, que sempre
estará associada a argumentos da defesa e da acusação. Mas quem decide é quem
julga.
Nossa celebridade, como não
poderia deixar de ser, teve e sempre terá como coadjuvante, diga-se, candidata
ao Oscar, ela de novo, a hermenêutica, principalmente na interpretação de três
incisos do art. 5º da Constituição Federal - a depender de quem julga, sem a
eles se limitar:
Art. 5º. Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
LIV
- ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal;
LV
- aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes;
[...]
LVII
- ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória;
[...
– o artigo 5º possui 78 incisos].
As palavras-chave são Princípios
Constitucionais: Devido Processo Legal; Contraditório; e Ampla Defesa. O
Trânsito em Julgado se dá quando a última instância provocada pela defesa ou
acusação dá seu veredicto. É de se ter a curiosidade de ler voto a voto os
julgados que fizeram a prisão em segunda instância ora ter sido constitucional,
ora inconstitucional. Mas por ora ficamos por aqui, propedêutica, hermenêutica
e quem sabe hermeticamente, embora a intenção fosse a oposta. Fato é que, se
ninguém tem o direito de alegar o desconhecimento da lei, ninguém tem o direito
de tirar conhecimento de ninguém nem negar a cultura a ninguém. É vedado deixar
quem quer que seja na escuridão da ignorância.