5.30.2005

O HOMEM QUE FEZ NIETZCHE

Pode ser que você ache o Nietzche um chato, mas, creia: ele nunca existiu. Ninguém anterior ao vídeo-cassete existiu. Quem conheceu o super-oito sabe que isso é verdade. Baudelaire foi uma invenção, como Dostoievski e Tolstoi. E Machado de Assis também. Suas obras, não: são de verdade. Mas Shakespeare? Como Nietzche, nunca existiu.

Nietzche sequer foi inventado: foi feito. Um ator atreveu-se a fazer Nietzche – mais: Nietzche nu. Nietzche nu a dançar como foi encontrado, como ficou registrado, como a situação foi contada e recontada. Nada foi inventado - a não ser Nietzche. Inventado, não: feito.

O nome do ator é Fernando Eiras. Este existe: você o viu, em algum filme ou novela. Se você assistiu a Dias de Nietzche em Turim, cuidado: pode ser que você pense que Nietzche tenha existido; que tenha sido alguém de verdade e não uma ficção de suas obras; mas é o que ele foi - e nada mais.

Pode ser que você ache o filme Dias de Nietzche em Turim chato. Insista, por favor, insista, porque não é. Seja lá como for, tenha a certeza: Nietzche só existe a partir dele; porque um ator o fez. De verdade.

***

Semana passada, o blog deformou um soneto, de versos, muito mais que alexandrinos, quilométricos. Aí ele vai de novo, repartido em barras, para quem o queira reconhecer como soneto. Como soneto é coisa anterior ao vídeo-cassete, acredite: as barras são de chocolate.

Que de tudo eu sei, que o mundo continua girando em torno do sol,/ Que jornais e revistas e estações de rádio e tv publicaram aquilo tudo,/ Que gente se abraça e se mata por aí,/ Que há automóveis e cientistas que insistem que retas são curvas de raio infinito, o// Que faz o universo capotar de vez em quando,/ Que há corruptos e ditadores, alguns, inclusive, soltos, alguns, exclusive, presos,/ Que amanhã será dia e depois será noite,/ Que se chover vamos usar nossos guarda-chuvas de manhã e perdê-los à tarde,// Que se fizer sol e tivermos emprego trabalharemos e/ Que sem emprego assaltaremos um banco ou deitaremos em outro ou sentaremos naquele/ Que nos deixará esperando por uma entrevista,// Que de tudo isso eu sei, mas, hoje, só queria dar parabéns aos meus amigos/ Que vão completando cinqüenta anos, parabéns, Murilo, Dr. Murilo Drummond,/ Que eu tenha a mesma sorte de novembro próximo descobrir por e para quê tantos quês.

5.27.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZ –

Prudente de Morais – o Biriba - afastara-se do governo por motivos de saúde. Era novembro de 1896. Enquanto Ricardo Coração dos Outros avançava com Olga de São Paulo a Minas (depois, Goiás), recuava a terceira expedição contra Antônio Conselheiro. De Campinas, nos trilhos da Companhia Mogyana de Estradas de Ferro e Navegação, Ricardo e Olga adentravam o país. Ao jeito do seu tempo, fincavam suas bandeiras. Permaneceram em São Paulo mais tempo que planejaram, não se sabe se por medo da turbulência em tantos cantos do país, se por descuido ou deslumbramento. Ao que consta, viveram por lá, em boa parte, das modinhas de Ricardo. Naquele período, cartas de Armando eram remetidas a um falso endereço e desconexamente respondidas por Olga, a qual, por sua vez, do endereço verdadeiro, trocava notícias com o pai (ainda vivo, ainda cúmplice).

Por falta de qualquer planejamento, Ricardo V e Rita iam permanecendo em Minaçu. Receberam a visita dos pais dele, Ricardo IV e Sérgia, quando Ricardo VI estava com dois anos. As gêmeas, irmãs mais velhas de Ricardo V, Ricardina e Olga, não foram. Depois de comentários ora pedantes ora infelizes de Sérgia sobre a cidade; de embriagado desabafo de Ricardo IV (que trouxera de presente seis garrafas de uisque doze anos, tendo sido a primeira liquidada por ele, Sérgia e Rita naquela noite – Ricardo V pouco ou nada bebe), queixando-se da dificuldade em convencer clientes seus europeus a investir mais no Brasil e a si mesmo de que existiria um caminho para a prosperidade da maioria via capitalismo; do contraponto de Sérgia – “O socialismo é a farsa com outra roupagem”; dos desapontamentos de Rita com sua estada com os avá-canoeiros – “Não consiga acrescentar nada ao meu tese”; de complementos treslouqüentes de Ricardo IV – “O mundo já foi governado por Hitler, Stalin e Mussolini, ao mesmo tempo!”; de Rita provocar o marido, sem resposta - “Ricardo sonha com discos voadores americanos invadindo Brasil”; de Ricardo VI finalmente pegar no sono e de todos se retirarem para dormir, Ricardo V foi até a rua deserta, olhou o céu, teve um sobressalto, voltou às pressas para casa e escreveu um título, em seu computador portátil: “A Revolução Brasileira de 2017 pela influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da sua plebe e a involuntária conspiração de Newton e Gauss”. (Era ainda 2005.)

Na manhã seguinte, confessou a Rita:

- Dormi deprimido. Rita respondeu-lhe:

- Estou de ressaca.

Movimentos sociais ocupavam terras produtivas e improdutivas, usinas hidrelétricas, estradas. Seu discurso era por uma reforma agrária, por respeito ao meio ambiente, pelo modelo de sociedade do Estado, para o Estado, pelo Estado. Revistas de grande circulação os acusavam de má fé e retratavam um governo Lula aos tropeços de uma conciliação entre investidores e movimentos, encurralado nos cantos do fisiologismo e acuado pelos escândalos das propinas. Descrença. Alguns jornais (de extrema-esquerda?) insinuavam sintonias entre setores militares e descontentes defensores do Estado, para o Estado, pelo Estado, cujo ícone de então era Hugo Chavez, presidente da Venezuela (que era ridicularizado pelas revistas de grande circulação).

Quando seu pai acordou, Ricardo V comentou, talvez, infantilmente:

- Papai, a América Latina continua a mesma dos tempos do Bolívar. Lembra da biografia dele, escrita pelo Moacir Werneck de Castro? “O melhor a fazer em relação à América é se afastar dela”. Lembra dos sonhos dele, Bolívar, de fundar a Grã-Colômbia?

Ricardo IV respondeu:

- Filho, estou de ressaca.

Ricardo V retirou-se, foi a folhear desordenadamente outra biografia, a de Policarpo Quaresma, na qual seus trisavós são tantas vezes citados. Descrença. Depois de tanto idealismo. Passou no corredor pela mãe (“Filho, estou de ressaca”), foi até o quarto do filho, que ainda dormia, sentou-se na cama dele e deu-lhe apaixonados beijos no rosto. O garoto afastou o pai com os braços; Ricardo voltou à sala, onde encontrou a família ainda sorvendo fumegantes cafés, cada qual olhando para pontos improváveis no espaço dentro da sala, o ar, refrigerado. Perguntou a eles:

- O uisque do meu pai é ruim? Sérgia foi quem respondeu:

- Naquela quantidade...

Ricardo IV levantou-se, aproximou-se do filho, deu-lhe um beijo desajeitado na bochecha e propôs:

- Vamos pescar? Não há um barco que possamos alugar? O que mais há para fazer aqui?

“A Revolução. Que não será nem de direita nem de esquerda, nem popular nem elitista. Nem mesmo anarquista e, para que não seja perigosamente anárquica, faremos a revolução amadora: a da política por amadores.” – Foi o que Ricardo V pensou mas não disse, naquele momento, quando Ricardo VI chegou à sala e disse:

- Mãe, tô com fome.

- E a vovó, de ressaca - Sérgia emendou.

5.23.2005

SONETO DE VINTE E QUATRO DE MAIO DE DOIS MIL E CINCO

Que de tudo eu sei, que o mundo continua girando em torno do sol,
Que jornais e revistas e estações de rádio e tv publicaram aquilo tudo,
Que gente se abraça e se mata por aí,
Que há automóveis e cientistas que insistem que retas são curvas de raio infinito, o

Que faz o universo capotar de vez em quando,
Que há corruptos e ditadores, alguns, inclusive, soltos, alguns, exclusive, presos,
Que amanhã será dia e depois será noite,
Que se chover vamos usar nossos guarda-chuvas de manhã e perdê-los à tarde,

Que se fizer sol e tivermos emprego trabalharemos e
Que sem emprego assaltaremos um banco ou deitaremos em outro ou sentaremos naquele
Que nos deixará esperando por uma entrevista,

Que de tudo isso eu sei, mas, hoje, só queria dar parabéns aos meus amigos
Que vão completando cinqüenta anos, parabéns, Murilo, Dr. Murilo Drummond,
Que eu tenha a mesma sorte de novembro próximo descobrir por e para quê tantos quês.

5.21.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO NOVE –

Ainda que tardio, telegrama da sede da FUNAI, em Brasília, endereçado ao responsável do posto de Minaçu, finalmente permitiu que Rita partisse para a terra dos avá-canoeiros, já gestando em seu ventre Ricardo Coração dos Outros VI, ao mesmo tempo em que deixava em casa – compraram uma, de madeira, com ar condicionado e bem conservada, numa vila formada anos antes pela estatal que iniciara e era sócia da primeira hidrelétrica -, o pai dele e já marido dela, Ricardo V, mergulhado menos em livros que em confusos pensamentos.

Haviam discutido com alguma agressividade sobre sociedades formadoras de sociedades. Ali, na região, quantas sociedades formavam aquela? Em Cavalcante, município com dimensões de estado e população 15 vezes menor que a da favela da Rocinha (no Rio – então com 150 mil habitantes), no centro, uma fila indicava uma das maiores fontes de renda da cidade: a do Instituto da Previdência oficial; nas proximidades, outro significativo centro de renda: a prefeitura. Carrões de donos de terra ou herdeiros de extintas minas de ouro circulavam em meio à população majoritariamente negra. Juizes, promotores, comerciantes e comerciários; trabalhadores e trabalhadores rurais completavam, muito a grosso modo, aquela sociedade, que contava ainda com mercado e pousadas, uma delas de duas mineiras, “cozinheiras de mão cheia, com um estoque de cachaças de fazer inveja a qualquer destilaria da Escócia” – como Ricardo V escreveu, brincando, ao pai, por “e-mail”. Na região rural, os Kalungas, quilombolas, periodicamente redescobertos por culpas herdadas de violências herdadas de gerações passadas; nômades habitando casebres de adobe, como outros, nativos, descendentes de sobreviventes indígenas - distantes vizinhos, separados por fazendas e estradas rurais. Paisagem exuberante. Próxima, Alto Paraíso, cidade da região mais associada à Chapada dos Veadeiros, naquele tempo, em permanente e vigilante culto a discos voadores, que diziam ser freqüentes por lá. Minaçu, com uma população de cerca de três vezes a de Cavalcante, sem o apelo de cidade histórica, também concentrava uma enorme quantidade de empregos em sua prefeitura, e possuía uma elite de pensamento formada por um padre (teólogo e filósofo, com passagens em Roma, Rio, São Paulo e Goiânia), muitos pastores, juíza, juiz, tenente, promotor, políticos e representantes das empresas ali constituídas: as duas hidrelétricas, a mineradora de amianto, o comércio. Engenheiros, sociólogos, assistentes sociais – todos e todas de sólida formação e experiência, alguns itinerantes, outros, residentes. Reassentados pelas hidrelétricas; vaqueiros, fazendeiros, adolescentes de brava, consistente e inquietante formação e postura; pistoleiros; agiotas. E em toda a região, como em qualquer lugar do mundo, prostitutas. E em toda a região, como em muitas outras do Brasil de então, diferentes formas de pobreza, de pobreza extrema, de miséria.

Um pouco mais distante, Abadiânia, pólo turístico de americanos interessados em “Intuitive Astrology” e “Healing Journeys to Brazil” (para quem não está usando a pastilha multilingüe, “to heal” quer dizer “curar”).

- Esses grupos são é projetos de ocupação territorial endêmica por seus conterrâneos – Ricardo V insinuava, provocando Rita.

- Querem ocupar o Brasil de dentro pra fora, das vísceras para a derme e a epiderme! – insistia.

- Como se explica, por exemplo, o falso e sumido turista flagrado por uma jornalista? Ora, quem, do “primeiro mundo”, estaria, de verdade, interessado em se meter nesses cantos, senão para ocupá-los? Para, quem sabe, montar uma Disney de montanhas russas na Chapada? – debochava, talvez, complexado, ou, quem sabe, só para ferir a mulher amada, fosse por saudades inconfessáveis de Maria Otávia ou porque amava seu país a ponto de não o conseguir explicar e exigir dela possíveis culposas explicações.

Rita partiu em silêncio, deixando-o só, com seus remorsos.

Quanto aos trisavós dele, Ricardo Coração dos Outros e Olga, acabaram por realizar seu devaneio inicial, de reviver as entradas e bandeiras dos tempos coloniais. Não foram pelo mar para, depois, retornar à terra; ainda que simbolicamente, arrancaram mato do chão foi refazendo roteiros daqueles tempos: do sudeste ao centro-oeste, mas sem matar um único índio. Só choraram duas mortes, no percurso: a de Armando, mais pelos sonhos que ela não viveu que pela realidade que compartilhou com ele; e a do pai dela - esta, sim, muito chorada. Ambas chegaram ao conhecimento deles por telegramas, semelhantes ao da licença para que Rita, mais de cem anos depois, pudesse conhecer de perto os avá-canoeiros.

Já da morte de Policarpo Quaresma, ninguém desta morte jamais soube. Talvez ele viva em Abadiânia – de novo idealista; eterno; e terreno.

5.17.2005

ATRASO E VANGUARDA

Se bem prestei atenção à aula que não assisti, depois da invenção do micro-ondas, uma pipoca que dispensasse óleo para estourar na panela seria a vanguarda do atraso.

Já o atraso da vanguarda são alguns blogues, como este: mídia supostamente alternativa (aliás, antes, mídia supostamente mídia) que, vira e mexe, fala de notícia velha.

Semana passada, a Veja trouxe na capa um par de pés, com uma etiqueta dizendo “volto já” pendurada num dos dedões, aludindo à vida depois da morte.

Pés simbolizam morte e vida, Severina (seu perdão e sua benção, João Cabral). A geração que chegou na Terra dez anos antes da minha, que tirou da bicicleta e do bambolê meus companheiros de berçário, Rock’n Roll e Bossa-nova, e os reinventou, nos tais anos sessenta, usava a mesma imagem da capa da Veja da semana passada (sem a etiqueta do “volto já”), só que para representar o Amor Livre – que nasceu e quase morreu pisoteado em uma poeirenta Woodstock. Pés entrelaçados ou alternados ou lado a lado ou sobrepostos embalavam Amor Livre em seu berço, de onde ele mostrava amorosos e pacifistas indicadores e dedos médios das mãos em vê, supostamente alienados de outros vês, que eram vistos a arrotar sangrentas e enganosas vitórias.

Pés de bebês são sempre gordinhos, fofinhos, parecem pãezinhos onde gostaríamos de passar uma manteiguinha sem colesterol e comê-los. Acabamos por deixar nosso canibalismo a pé e preferimos agasalhá-los, com botinhas que só as avós conseguem fazer.

Pés que sempre nos assustarão – expostos, agora, são os dorsos, não suas bases - são os pregados nos pés de uma cruz. Quantos outros pés pregados nos pés de outras cruzes, antes, ao mesmo tempo e depois daqueles, há? Quantos se encontram impedidos de andar e amar por aí ?

Pés às vezes rurais, outras, urbanos, são às vezes conexos e outras, não, à pergunta acima.

Pés sujos, infantis e adultos, desnudos, debaixo de viadutos. Por quê? Por quem? Medrosos, corremos com os nossos a buscar pelos de nossos amores, para que a eles se misturem, entrelaçados ou alternados ou lado a lado ou sobrepostos.

Pés são nossa contra-capa; nosso verso; nossa poesia. Somos bípedes: a vanguarda - mas metemos os pés pelas mãos.

As cócegas nos salvarão. Mas, se não houver quem as faça... Façamos graça.

5.13.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO OITO –

Hoje, em 2020, o Português é tão compreendido quanto o Inglês e o Chinês não porque tenha havido a equiparação econômica dos países que falam essas línguas, ou a dos principais países cujas línguas de origem sejam essas – todo mundo sabe disso. A micro-eletrônica é que superou a micro-inteligência – e hoje temos a pastilha multilingüe que implantamos em nós mesmos e em nossos bebês e estes se fazem poliglotas desde suas primeiras palavras - desde que as línguas dos diferentes países não sejam desprezadas por seus líderes ou diplomatas, claro: como seria traduzir línguas desconhecidas por opção? Como estabelecer uma linguagem comum se as originais fossem desprezadas – por opção? Pois já houve tempo em que a opção era desprezar a língua dos outros, como já houve tempo em que a opção era desprezar a língua própria.

Nem sempre a maioria se dá conta de que em Cavalcante e Minaçu, hoje em dia, também seja possível expressar-se e ser compreendido em, praticamente, qualquer idioma, porque a maioria sequer ouviu falar dessas cidades. Hoje, a pastilha multilingüe já incorpora a LUZ – Língua Universal da raZão – que não existia no tempo em que Rita desenvolvia sua pesquisa dos avá-canoeiros. Falar disso há quinze anos era fazer questão de ser chamado de tolo – para dizer o mínimo.

Em 2005, Ricardo Coração dos Outros VI estava com dois anos. Seus pais permaneciam em Minaçu, apesar dos protestos de seus avós, Sérgia e Ricardo IV e a viúva Sarah Shaw Almanendez Chermont, mãe de sua mãe, Rita - que levou seis meses e meio para conseguir uma autorização de visita aos avá-canoeiros, em parte por zelo da FUNAI, em parte por causa do sotaque (não existiam as pastilhas multilingües em nenhum lugar do mundo; e houvera um turista suspeito, recentemente, por lá – até por ser estrangeiro e turista “por lá”).

Índices que mediam o desenvolvimento humano colocavam Minaçu um pouco acima e Cavalcante um pouco abaixo da divisória entre o bem estar comum e o mal estar generalizado. Quando se media o quanto o país produzia em relação ao resto do mundo, o Brasil ficava entre os quinze primeiros de um total de cento e vinte; quando a medida era do quanto do produto da produção ficava com quantos de um mesmo país, o Brasil ficava entre os três dos mesmos cento e vinte, só que em escala inversa – com enorme quantidade de pobres e miseráveis: o país era um dos campeões da produção e simultaneamente da “burra maldade” – expressão cunhada por Ricardo V, que acabou por desenvolver sua tese “A influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da plebe brasileira” com nítidos vieses da que gostaria de ter escrito (“A sociedade brasileira e a perversa e involuntária conspiração de Newton e Gauss”). Ricardo V, aliás, livrou-se da dependência dos pais quando Rita propôs à instituição que patrocinava sua pesquisa aos avá-canoeiros que também patrocinasse a tese dele; mas com a exigência de que ele e ela se mantivessem na desconhecida Minaçu. O prazo para conclusão das pesquisas foi se renovando à medida em que seus respectivos conteúdos foram se tornando cada vez mais distantes dos objetivos contratados – porque muito mais interessantes.

Já quando Ricardo Coração dos Outros e Olga hospedaram-se como falsos marido e mulher no Hotel Bandeirantes do Arouche, tiveram muita timidez e recato um do outro, até que um calor insuportável fez com que ela, já no quarto, arrancasse de si cada pedaço de sua complexa e empoeirada e suada vestimenta, deixando à mostra peitos colossais e pontiagudos e pelos pubianos mais colossais ainda, a ponto de deixar Ricardo proporcionalmente pontiagudo, peninsular ao seu Coração dos Outros, também a arrancar seu terno amarfanhado de seu corpo mal lavado na casa de cômodos onde se hospedara até que ela chegasse a São Paulo. Não foi ali que iniciaram sua dinastia; mas o que ficou registrado daquele desequilíbrio climático e sua simbiótica apoteose bioquímica, numa empolgada caligrafia (em quartetos musicalmente pautados) de Coração dos Outros, por muitos anos, em acervo de família paulistana das mais tradicionais, hoje é acessado por quem quer que seja no idioma que for, tanto na 1012 como na TPM©:

Dos mapas não sabemos,
Como chegar às Minas,
Menos,
E já nos conhecemos

Intimamente.
Calorosamente,
Pubicamente.
Publicamente,

Que ninguém nos ouça
Essa modinha moça
Que te faço
Perdidamente.

Apaixonadamente
Teu,
O teu,
Dos Outros.

5.09.2005

A EDUCAÇÃO

Para começo de conversa, façamos a seguinte abstração: a demagogia não existe.

Muita gente, de esquerda ou direita, há muito tempo fala da importância da educação. Dão-se como exemplos a Europa, os Estados Unidos e os tigres asiáticos, para demonstrar que a educação é que faz a diferença. No Brasil, as discussões giram entre privatizar ou não a Universidade; e garantir ou não as cotas para os negros.

A primeira grande questão é: educação é custo ou investimento? Ora, se todos concordam que é investimento, porque custear o ensino básico através da privatização da Universidade? Por outro lado, porque manter a Universidade pública a custos altíssimos – custos no lugar de investimentos, porque a grande queixa é de que o Brasil está décadas atrasado, porque a Universidade – pública - é ineficiente?

As cotas são defendidas como a única forma de promover a inclusão social dos negros, marginalizados desde o tempo de seus antepassados escravos. Os que contra-atacam a idéia dizem que ela tão somente reafirmará o racismo e que a solução seria melhorar o ensino básico. Este contra-ataque, ainda que embasado por nobres intenções (qualquer intenção de inclusão é nobre – e, mais que isto, inteligente, tanto para o Capital como para o Social), reforça, querendo ou não seus defensores, a tese de que custear o ensino básico via privatização da Universidade é a solução. Mas educação é custo? Ou investimento? Por que não tornar a Universidade – pública - eficiente? Será que não interessa? A quem?

A carga tributária é alta porque a concentração de renda é alta e, como a concentração de renda é alta, a carga tributária será cada vez mais alta. E a Universidade e o ensino básico irão para as profundezas dos infernos que as religiões garantem existir, porque não haverá impostos suficientes para custear o que não é custo; é investimento, e quem investe quer retorno, e retorno só se tem quando se olha para o investimento como quem vigia seus porcos quando eles são sua subsistência; sua sobrevivência; permanecer ou não no jogo da vida – ou dele sair; dançar.

E, ao invés de imitar o modelo americano das cotas (americanos são modelo para tratar do racismo?), porque não investir de imediato em cursos de nivelamento para aqueles que vêm do ensino público, negros ou não, sem distinção de cor, a real morte do cafajeste e imbecil racismo - a ponto de os deixarem prontos para competir com os que vêm do ensino pago e de qualidade? E, a médio prazo, ensino gratuito básico competitivo, preparando gente para a Universidade pública ou privada eficiente para a empresa pública ou privada eficiente para a ciência eficiente para o País eficiente, inteligente, justo? Ou não é isso que se quer?

Nenhuma pretensão de ter razão ou ganhar qualquer discussão, mas sabe qual é o real problema? A premissa é falsa: a demagogia existe e é muito amiga da safardagem. Minha amiga, meu chapa, lamento informar:

Saímos; dançamos.

Ou, que tal vigiar nossos porcos?

5.06.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO SETE –

Faltou bom senso. Como é que Ricardo e Olga imaginaram ir para Minas ou o que dela se estendesse, pois mal sabiam da existência de Goiás (e pelo mar!), depois de Olga, com suas ditas meias verdades, dizer ao pai e ao marido que iría para São Paulo? O que fazer? O inevitável: Ricardo tomou o trem para lá. Na semana seguinte, foi a vez de Olga, que, acompanhada de um ausente Armando, compareceu à Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil para fazer o mesmo percurso. Ricardo despediu-se em definitivo de seus vizinhos e senhorio; Olga, supostamente, temporariamente, do pai – com sinceros remorsos - e do marido – com falsíssimos remorsos.

Antes de encontrar um hotel descente para quando ela chegasse, Ricardo morou como estava habituado: alugou um cômodo em uma casa no centro, com janela para a rua, e teve mais sorte ainda – pois a casa era uma raridade no local e à época: nela, todos os dias, ele podia se lavar e, uma ou duas vezes naquela semana, até banho tomou. Juntou-se a estudantes, boêmios do jeito como ele se encontrava, ali, com seu violão e apaixonado coração, que – às vezes, chegava a acreditar – era dos outros na mesma medida que seu.

Já em 2002, Ricardo V e Rita finalmente desembarcaram em Minaçu. Era um dia de sol de rachar, como costuma ser por lá. Hospedaram-se em um hotel no centro, asseado, com apartamentos de quarto e banheiro conjugados, piso de cerâmica e chuveiro elétrico. (Fosse 1980 e não encontrariam propriamente um hotel; procurassem uma casa, teriam sorte se encontrassem uma com banheiro interno.) Saíram pelas ruas. Apesar do sol, tiveram a sensação de estar em um local escuro e, após o almoço, um grande mal estar, não da comida, mas porque era o período seco. Ficaram tontos, cansados, de nada estranharam ver homens largados em bancos, mulheres com sombrinhas. Uma cidade parada – era esta a sensação, ainda que passassem por lojas, mercados, óticas. Cerca de 33 mil habitantes, Ricardo lembrava do número que vira na Internet, a rede de então. Algumas árvores; ruas com nomes de estados (Maranhão, Bahia...); casas de alvenaria e de madeira; casebres pobres, na periferia; de vez em quando, bicicletas, mulheres pilotando pequenas motos, poucos automóveis, um caminhão. Um bar com homens em volta de mesas na calçada, muitos sem nada beber ou comer. Depois saberiam: ali, realizavam-se diversas transações: gado, agiotagem, vendetas. Uma praia na beira do reservatório da segunda hidrelétrica que havia sido recentemente inaugurada, no rio Tocantins. Um trapiche, onde pobres pescavam com linhas, amarradas em esferográficas baratas. No fim da tarde, visitaram uma feira livre. Ficaram bem impressionados com os vegetais, seus preços baixos, e chocaram-se com a exposição de carne bovina rodeada de moscas.

Na manhã seguinte, Rita não conseguiu contato com o encarregado da FUNAI – Fundação Nacional do Índio – para agendar a visita aos avá-canoeiros. No refeitório do hotel, interessaram-se pela conversa de um sociólogo sulista com uma sua colega e uma assistente social da região que foram tomar café com ele. Falavam de uma comunidade onde desenvolviam um programa de geração de renda, por conta da recente hidrelétrica. Rita e Ricardo apresentaram-se, disseram do propósito de cada um, naquela visita a Minaçu. Perguntaram se podiam acompanhá-los à tal comunidade. Não fazia muito, uma jornalista dissera àquela equipe de um falso turista estrangeiro, cujo objetivo real ela não conseguira descobrir. Apesar disso, os três acharam que, por parte daquele casal, havia sinceridade e concordaram. Rita e Ricardo V conseguiram alugar uma camionete e seguiram a da equipe, em viagem de hora e meia, boa parte em estrada de terra. Lá, um morador de uns sessenta anos indagou a um despreparado Ricardo:

- É verdade que no computador tem uma tal de intramete, e que por ela a gente consegue falar até com o Japão?

De novo no hotel, confusos com tantos contrastes, tantos cafuzos, mesmo para um nativo do Rio, com suas favelas e Ipanema, descendente de um mulato do século XIX; mesmo para uma americana da Flórida, descendente de franceses por parte de pai e espanhóis por parte de mãe, aportados havia tempo na Louisiana, Minaçu já não lhes parecia feia nem parada. Ricardo tomou banho, voltou ao quarto e, enquanto esperava pelo banho de Rita, dedilhou seu violão. Depois, namoraram e geraram Ricardo Coração dos Outros VI.

5.02.2005

MODESTA HOMENAGEM À MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

(DE UM MEMBRO DA TRIBO DOS TRASEIROS SENTADOS)


Mario Benevides, Florianópolis, Primeiro de Maio de 2005.


Eu nem li o jornal. Nem toda brasileira é bunda. Assim inicia-se este espetáculo musical, de um membro da tribo dos traseiros sentados - a dos imóveis, incapazes de ir à feira barganhar, na hora da xepa, por juros mais baixos. Nós somos as cantoras do rádio; aumenta que isso aí é rock’n roll.

O que será que será que os papas da crônica atual disseram a respeito do desrespeito presidencial? (Aliás, se você morreu na mesma semana que o Papa, melhor não comentar, mas ninguém ficou sabendo.)

Eu, você, você e eu. Fomos ofendidos, não por ter o presidente se referido aos nossos traseiros – afinal, são parte da nossa anatomia e nos servem de inspiração: homens e mulheres, especialmente do Brasil, não ficariam nada aborrecidos se nascessem com discretos retrovisores, a lhes evitar o movimento para trás com a cabeça, olhando um traseiro que vem e que passa, no doce balanço a caminho do mar.

Agora, falando sério: o Governo é o mais desgovernado endividado da nação. Os juros são altos porque alto é o déficit do Governo, eu e você, você e eu sabemos disso. Como vivemos ameaçados por uma volta da ditadura (você pensava que falaríamos da inflação?), os políticos se dão ao direito da politicagem no lugar da política. Eu, você, nós dois, sozinhos nesse bar à meia luz, sabemos muito bem que quem governa o Brasil não são os teóricos da social-democracia, tampouco idealistas marxistas, trotskistas ou seguidores de Keynes. Quem nos governa são os que pensam nos fazer pensar que se alugam para, de fato, nos alugar, tomar conta, comprar e vender.

Nosso presidente, vendido em clorofila e botox como operário vencedor, não é nada diferente do anterior, o super-acadêmico: já se esqueceram faz tempo do guarda-pó e da beca. Talvez por isso não consigam distinguir o que é derrotado pelas contas do que delas faz pouco.

E a gente ainda paga por isso. Por exemplo, por embates e interesses de chefes de tribo. É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte - e “isso” custa muito caro.

Ponha uma pouco de amor numa cadência e verá que ninguém no mundo vence a beleza que tem num samba não. Se você vier pro que der e vier, lembrar-se que quem espera nunca alcança e que quem sabe faz a hora, aí... A gente faz um país.

Que país é esse?

Por exemplo: hoje vai ter festa no apê e vai rolar bunda-lelê.

Ou não.