1.16.2007

MICO

A partir dos 12 anos, atenção: é proibido pagar mico. Por exemplo, andar de mãos dadas com o pai e a mãe. Aqueles beijos e abraços apertados, só em casa. E olhe lá – porque o vizinho pode estar olhando e, se ele tiver 13 anos...

Do lado de cá, de quem carregava o filho ou a filha pela mão – depois de muito tempo no colo -, não se deixe emocionar em comédia romântica na companhia dela. Na dele, sequer proponha uma. Desandar de dar risada e gargalhada em desenho animado, esteja certo: vão chamar a ambulância.

Tio. Esse é o seu nome – a não ser que seu sexo seja o feminino; nesse caso, oi, Tia, muito prazer.

Prazer inclusive de ver sua sala abarrotada deles e delas, sentados no chão, encostados na parede, chão e parede recheados de bolo para todo o sempre. Antes fosse: esse paraíso acabará e você vai se tornar o maior religioso de todos os tempos. Seu colar – você usará um – trará um crucifixo entre a estrela de David e uma figa, assim que o passeio de quem você trocou as fraldas passar a ser com João ou Maria. Maria tem carteira de motorista; João rouba o carro do pai. Há os gêmeos, também: Rafael e Gabriel, cada qual com sua moto. Lucas não tem dinheiro, mas bicicleta, sim. Primeiro, ele tirou a camisa enquanto pedalava e a danada cismou de enrolar na roda dianteira e ele foi de cara no chão; depois, Matheus, que tem menos dinheiro ainda e casa não tem, mas revolver, sim, levou a bicicleta de Lucas – agora, com uma bicicleta e 3 dentes a menos. Onde anda Salomão?

Melhor parar o relógio e perguntar, sem ofender: quem inventou o mico terá sido alguém com inveja de quem anda de mãos dadas com a filha ou o filho?

Pode até ter sido. Mas isso não lhe dava o direito de ter gritado LINDÃOOOOOOO quando ele fez aquele gol de placa. Menos ainda de ter socado o juiz porque o gol de placa foi com a mão e, consequentemente, anulado. Está ouvindo, agora? A sirene é a mesma da ambulância; mudou foi a cor do carro.

Mico.

1.11.2007

O MAIS FORTE

Escondia-se. Exibia-se. Aparecia porque grande era sua cabeleira. Claro, era ela que lhe mantinha protegido; escondido. Veio um corte de cabelo indesejado e o que ele gostava de esconder ficou à mostra; aquilo que exibia fora embora. Veio uma mudança. Era da casa antiga o seu aconchego. Foi ficando triste. Vieram umas férias, uma viagem – ele gostou. Foi quando o mais forte sentiu-se incomodado e partiu pra cima dele e ele quase morreu. Poderia ter acontecido com qualquer um: o mais forte se incomoda e o mais fraco é que se muda – ou morre. Hoje ele anda jururu, mascando seus bigodes, impedido de coçar a mandíbula, temporariamente reforçada por uma prótese, por um anteparo. Espécie de noviço rebelde, assim ficou o poodle depois de atacado pelo pit-bull. Este, por sua vez, ninguém sabe como ficou. Apenas se sabe que continua sendo o mais forte.

1.09.2007

VIVAS E MANIFESTOS

A visita de um poeta é sempre bem vinda. O poeta Aldo Votto ainda nos visita; mais: manifesta-se - a nós. E a nós ultramarinos. Vivas a ele, que, como bom poeta, nos mantêm vivos, interessados, ativos. Em resposta nos manifestamos nós (plural e, portanto, covardemente):

Fui ator não vou ao teatro.
Escrevo poemas não leio poetas.
Que pretensão será esta
Egoísmo será este
Fazer e não querer saber
Do que fazem os outros – os de verdade?
Leio Equador
De autor português contemporâneo
A narrar fios e meadas de dom Carlos
Rei
Que viria a ser morto por revoltosos
Idos de 1905-8
São Tomé e Príncipe
Ilhas
Colônias portuguesas
Equatoriais.

Descubro-me navegador
Ansioso por aventura
Engenharia e poesia incapazes dela.
Novas e naufragadas Friburgos
Encharcados Rios geralmente praianos
Metralhados e incendiados inocentes
Respondei:
Há lugar
Longe do naufrágio
A salvo do incêndio
Perto da aventura?
Haverá lugar a inda
Para sonhadores
Que sonham tão somente transformar? Sem o saber?
Sigamos.
Vendas nos olhos
Vendavais nos ouvidos
Chuvas torrenciais
Sóis cegadores
Preconceitos e medos e seus desastrosos consertos
Sigamos.
A fazer e pouco ler poesia.
Mais a representar que assistir a intérpretes.
A nos alimentar de manifestos
Mais que nos manifestar.
Vivas a eles manifestos.
Vivamos.

1.05.2007

IRREGULAR

Eis aqui um lugar
Freqüentado por poucos
Todos de idoneidade assegurada
Ainda que freqüentadores
Deste lugar
Que,
De tão pouco freqüentado,
Mal dá o que falar.
Serve este espaço
Muito mais para organizar
Aquilo que não pode:
A obra errática, anti-sistemática
De seu ocupante-anfitrião.
Que não se exija dele portanto nada
Que não a mais completa irregularidade.
Tudo que sai na capa só foi verdade por indeterminado tempo:
Hoje é dia de crônica
Amanhã ou quem sabe quando,
Um capítulo.
Que dia é hoje?
Por aqui, não se sabe.
Se, ainda assim, você, de idoneidade assegurada ou não,
Quiser visitar este lugar,
Será um prazer.
Deixe sua queixa, por favor:
Será sempre bem-vinda.
Queixe-se do assunto e da sua falta; da forma; do des-conteúdo.
Mas venha sempre – até que uma multidão nos separe,
Uma frente fria,
Um crime hediondo,
Uma roubalheira infame
Nos separe.
Ou nos una.
Irregularmente.
Como deve ser.