I – A operação Lava Jato
Mito é o primo rico da mentira e
fato o primo pobre da verdade. Mito é fábula: a mentira criativa. Verdade cada
um pode ter a sua, e o fato é a constatação.
Nada do que se fala aqui serve de
consolo, nem de longe tem essa intenção, que é apenas mostrar como
frequentemente mitos se passam por fatos.
O fato de que existe corrupção no
Brasil há muitos anos criou uma série de mitos. Seria um traço cultural do
Brasil, decorrente da colonização portuguesa. Há pesquisas que evidenciam fatos
a desfazer esse mito. Em vez de lançar mão de algumas delas, vamos buscar o
caminho da arte, que, mito ou fato, ora imita a vida e ora é por ela imitada. Erêndira,
personagem de Gabriel Garcia Márquez, é obrigada por uma tia a se prostituir, e
Tereza Batista, de Jorge Amado, é vendida por uma tia para satisfazer os
ímpetos e crueldades sexuais de um homem. Dois exemplos a nos deixar, como em
vários outros, presos ao dilema de quem imita quem. Voltando ao mito do ha ha
hu hu, a corrupção é nossa, assista-se por exemplo à série e/ou ao filme SUBURRA,
para conhecer um pouco da corrupção italiana contada por meio da ficção, mas
com fatos de sobra, históricos e atuais, a embasá-la. Alguém será capaz de dizer,
ora, italianos são latinos como nós, e por isso são corruptos. Assista-se então
ao filme norte-americano A LAVANDERIA, com Meryl Streep, Gary Oldman e Antonio
Bandeiras, baseado em fatos reais, que conta a história feita de muitas outras
de corrupção, todas reais, fáticas, de empresas não só dos Estados Unidos da
América como de uma, sim, brasileira. Ah, então a corrupção é do Novo Mundo
e/ou latina. Uma das pedras que teimam em não sair desse sapato é o caso
Lockheed, nome de uma empresa, sim, norte-americana, que nos anos 70 do século
passado corrompeu poderosos alemães, holandeses e japoneses. A corrupção não
tem pátria nem etnia, não faz parte de uma cultura, embora seja ela mesma, a
corrupção, uma cultura.
Cuidado é preciso também quando
se diz “somos corruptos”, a não ser nos casos de confissão disfarçada de
justificativa.
A corrupção nunca tinha sido
sistêmica. Fato ou mito, como saber? Ficamos sabendo da sistemática da corrupção por meio da
combinação de alguns fatores, alguns deles recentes em nosso país. No mundo
inteiro, a investigação de práticas criminosas se torna a cada minuto mais
dotada de ciência e tecnologia; no Brasil, a liberdade de comunicação e o
jornalismo investigativo só foram ressuscitados entre 1985 e 1988, anos que
ficaram marcados pelo fim do regime militar e ditatorial iniciado em 1964 e
pela promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil; e foi
em 2013, há poucos sete anos, que entrou em vigor a Lei nº 12.850, que define organização criminosa,
e enuncia, em seu artigo 3º, que, em qualquer fase da persecução penal, serão
permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, determinados meios de
obtenção da prova - entre eles o da colaboração premiada (sim, colaboração e
não propriamente delação, que deve ser compreendida como uma das espécies da
primeira). Tecnologia, liberdade e método de investigação permitiram que
conhecêssemos tamanho, abrangência e profundidade da corrupção em nosso país. A
operação Lava Jato fez uso intensivo e extensivo dessa combinação.
O mérito da Lava Jato, uma
operação policial, foi desbaratar esquemas e permitir à Justiça investigar,
julgar e - finalmente, e com base na
Lei, algo próprio da democracia - punir corruptos. Infelizmente, esse mérito teve
a empaná-lo o sensacionalismo, a vaidade e a falta de limites de alguns, a
generalização conceitual em relação à política e a necessidade de muitos de
acreditar em mitos. Promotores, procuradores e juízes não se confundem com
heróis, e via de regra, heróis são mitos.
Agora, o gosto amargo da
desilusão e decepção com respeito à Lava Jato bate na boca dos que acreditaram
na mitologia que se criou em torno dela, que foi e é nada mais, nada menos que uma
operação policial de investigação de suspeitos de corrupção.
II – O “Mito”
A disputa entre razão e emoção
tem um dos seus momentos mais acirrados e perigosos nas eleições. A avaliação
de riscos e oportunidades se fragiliza diante de verdades daquelas que cada um
tem a sua, de raivas, medos e preconceitos, dos truques do marketing político e
do estresse de um noticiário que se vale disso tudo, desde o racionalismo da
avaliação até a exaustão da emoção, que também invade corações e mentes de quem
dá as notícias.
Um dos mitos fabricados para nos
diminuir como povo e enfraquecer nossa democracia é: o brasileiro não sabe
votar. Ora. O mundo não sabe votar e por isso todo mundo vota, essa é a lógica
da escolha, que se baseia como sempre na humana mistura de razão e emoção, a
mesma lógica da democracia e do voto. Assim não se deve julgar o voto de
ninguém. Nem por isso devemos deixar de analisá-lo, pelo menos para tentar
evitar repetições muito perigosas.
As eleições de 2018 no Brasil
foram mitológicas. A começar pelo “mito”. Mito é aquilo ou aquele que não
existe, mas que se materializa na mente de algumas e às vezes de muitas
pessoas. Há os que se identifiquem com o presidente eleito, mas mostram as
pesquisas que não são a maioria. A bem da verdade, a com V maiúsculo, a omissão
e mesmo a pusilanimidade de algumas lideranças políticas foram a causa mais
importante e revoltante do que aconteceu em outubro de 2018. Mas outra de
decisiva importância foi uma série de mitos capazes de iludir a maioria.
Meu partido é o Brasil, como se o
Brasil fosse um único ser, de pensamento uníssono. Quem pautou sua vida pelo
desrespeito seria o bastião da ética. Um expulso do Exército por indisciplina
seria um disciplinado. Um evangélico que prega matai-vos uns aos outros e ama o
torturador como a ti mesmo. Existiria uma nova política. Os militares seriam
mais capacitados que as outras classes –
sim, para a defesa, mas para governos, que se visite a história, daqui e do
mundo. Todo político é corrupto, todos os partidos são corruptos, habitados cem
por cento por corruptos. Um partido que tenha membros corruptos é e será um
partido corrupto. Houve aparelhamento do Estado – como se houvesse alguma
agremiação política que ao chegar ao poder não fizesse isso. Um outsider, com
sete mandatos de deputado. Um economista de quem nunca se tinha ouvido falar
seria um gênio, um superministro. Militares seriam partidários do liberalismo
econômico. O liberalismo e o Estado mínimo seriam a solução para o Brasil -
mito morto infelizmente junto com mais de uma centena de milhares de pessoas,
até o momento (e o presidente diz, E daí?). O defensor e enaltecedor de
ditaduras, ditadores, tortura e torturadores não traria nenhum risco à democracia
(e não diria “E daí?”), ou a ditadura seria melhor que a democracia, exceto a
cubana e a venezuelana – pois veja-se o que está acontecendo aqui e agora: há
suspeitas de cooptação de membros da justiça e do judiciário, exatamente como
aconteceu na Venezuela. A ditadura foi boa para o Brasil – logo ela, que, entre
outras sequelas, deixou uma colossal dívida externa e inflação sem controle, só
derrotadas, a duras penas, pela democracia. O patriotismo, liderado, desde a
campanha, por um fiel seguidor do presidente dos Estados Unidos.
Mito é o primo rico da mentira e
fato o primo pobre da verdade. Nas próximas eleições, optemos todos pelos
fatos, ainda que a fúria das nossas emoções se esforce a nos fazer perdê-los de
vista.