12.10.2020

DUAS CARTAS NUMA SÓ

 Caro Papai Noel,

Caro Papai do Céu,

Que vocês caprichem no Natal, a começar pela véspera da véspera da véspera. Estamos exaustos do vírus e da maldade dos malas. Pode ser que um dia até eles percebam que não há nada mais divino do que a ciência, o respeito e a paz. Mas não dá para esperar muito por esse dia não, tá? Vocês bem que podiam dar uma forcinha.

Com essa cartinha, nós, do Cidadão Mario, nos despedimos de 2020. Voltaremos em 25 de janeiro de 2021. Deixamos aqui abraços largos e apertados a todas as pessoas que sabem da nossa existência e nos prestigiam, e também a todas as demais que se importem com a vida.

Acima de tudo,

A vida.

Ah. Aproveitamos para endereçar outra carta.

 

Caro 2021,

Convenhamos que seus antecessores não foram lá essas coisas. Seu avô 2019 começou com Brumadinho destroçado, dirigindo-se em súplicas à irmã e vizinha Mariana. Já seu pai 2020 escancarou de vez a fragilidade humana, a começar pelos descaminhos que a própria humanidade traçou para si, muito mais destruindo que construindo. Aqui no Brasil, convivemos com a agravante do desdém absoluto pela vida, seja ela qual for, vegetal, animal ou humana, perdoe as repetições e rimas incidentais. Mas o que nos mantém como espécie, e como povo, acima de tudo, é nossa capacidade de indignação. Ao nos indignarmos com o que nos enfraquece, questionamos, até decidirmos enfrentar quem nos subjuga, seja nossa ignorância, nossa preguiça mais mental do que física, ou ainda a canalhice de uns poucos a afrontar a maioria. Mas é preciso, 2021, que você nos traga ventos de poeira solar e chuvas benfazejas de outras galáxias, a nos afastar o desânimo, a nos ressuscitar a esperança, a nos brindar a alegria de viver em sociedade, a nos aplacar a raiva, para que possamos outra vez nos indignar e reagir, com toda a elegância que seus ventos e chuvas nos puderem trazer. Que no mundo se repense nosso modo de viver, que no Brasil se repense o modo de fazer política. Que o povo daqui e de qualquer lugar perceba que a história está nas suas mãos. Que não se aceitem mais a acomodação e infundadas certezas a cederem espaço à vileza, à apatia e à idiotia. Que a certeza dê lugar à dúvida e à inquietude, a nos fazer partir para a descoberta e à reinvenção da humanidade.

Se isso for pedir demais, 2021, que pelo menos uma brisa e uma orvalhada você nos ofereça, a nos abençoar e esperançar.

Esperar, caro 2021, é que já não pode ser, e sim, sabemos que isso não depende de você.

Um abraço e até breve,

Cidadão Mario.   

11.25.2020

BEM VINDO, MARADONA

 Da próxima, que me convidem para o nascimento do Maradona, não para o velório. Que me arrastem a brindar um gol dele, não a acompanhar seu velório. Que a vida seja sempre festejada e a morte adiada. Mais que o sofrimento, a fraqueza, a queda, muito mais dói o velório. Da próxima vez, me convidem para o nascimento, o gol, a glória. Que o velório fique para quem propague e idolatre a morte, a quem a ela dê de ombros. Fico do lado de quem nasce, do lado de quem sobrevive. De quem vai, a saudade é tanta que é como se não tivesse ido. Bem vindo, Maradona. Bem vindo.

O SERMÃO DO ASFALTO

 

Em verdade vos digo, em economia, Deus não há.

Naquele tempo, Smith, Marx, Mises, Keynes, Hayek criaram teorias baseadas em determinados contextos, e as discutiram, às vezes entre si, outras com outros teóricos, e, mais frequentemente, sós.

Irmãs e irmãos, não deis ouvidos nem tempo àquele que oferece teorias como roupas a vestir territórios de regiões e tamanhos distintos, a agasalhar povos de origens, histórias e culturas diferentes.

Em verdade vos digo, prêt-à-porter, prontas para usar, em qualquer tempo e lugar, somente roupas de estação e moda feitas em série, a um preço para quem possa pagar.

Viremos agora a página.

Naquele tempo, Conrado Gini criou um coeficiente, um índice para medir a concentração de renda. Gini então disse: quanto mais vizinho de zero for esse índice, menor a concentração; quanto mais perto de um, ou de cem ou de mil se por cem ou mil for multiplicado, maior ela é.

E a que explicava explicou: quando e onde o coeficiente de Gini é baixo e a renda média por cidadão é alta; quando e onde a concentração de renda é baixa e o PIB per capita é alto, e há educação para compreender o que são essas coisas, se está perto da civilização.

E o que citava e dava exemplos exemplificou e citou: por exemplo, Holanda; para citar, Noruega.

E a que explicava explicou: quando e onde o coeficiente de Gini é alto e a renda média por cidadão é baixa; quando e onde a concentração de renda é alta e o PIB per capita é baixo, e não há educação para compreender o que são essas coisas, se está perto da barbárie.

E o que citava e dava exemplos exemplificou e citou: o Brasil.

Em verdade vos digo, a discussão entre Estado Mínimo e Estado Máximo é um barco afundado no oceano da realidade. Holanda e Noruega têm participações do Estado na economia totalmente desproporcionais entre si, e assim o é nas duas maiores economias do mundo.

Em verdade vos digo, cada povo, mais do que deve, tem que encontrar soluções próprias para suas próprias e únicas realidades.

Viremos a página mais uma vez.

Naquele tempo, a Constituição da República Federativa do Brasil era do Estado do Bem Estar Social. O Estado, por meio de Governos, garantiria direitos, como à vida, à educação e à saúde, e teria como três dos seus cinco fundamentos a cidadania; a dignidade; e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Em verdade vos digo, em vez de se discutir em Bizâncio teorias que geralmente sequer são conhecidas por quem as professa; ao invés de proferi-las no deserto para seres soterrados pelo egoísmo dos imbecis,

Praticar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa bem poderia pôr o Brasil no Mundo.

Palavra da reflexão.

 

11.17.2020

RELIGIÃO

 

A começar que sou herege, porque sou grego. Politeísta. Acho muita responsabilidade deixar tudo nas costas de um só. Ou de uma só. Nascemos de mulheres, deus é deusa. Zeus é Afrodite, acredite se quiser.

A continuar que sou hebreu expurgado sem nunca ter sido. Panteísta. Como Baruch Spinoza. Deus está, em toda parte, não propriamente é. Vá dizer isso em inglês ou francês e depois fale mal da nossa língua.

A permanecer que sou africano. Há espíritos do bem e do mal. Incorporam na gente sem que a gente perceba.

A enlouquecer todos os dias que sou católico luterano. Peço desculpas e que Jesus leve consigo minha culpa. E que Maomé só expresse o que for amor e paz.

A ficar que sou budista, desapegado de quase tudo, menos das gentes.

A ilustrar que sem ter nenhuma tenho infinitas religiões indianas que sequer conheço.

A confundir que sou kardecista, com a diferença de que reencarno todos os dias em outro planeta, cheio de sol, de lua, de mar e montanha, de canções, de vinhos e de mulheres-deusas interessantes e inteligentes, todas minhas amigas. Uma será minha amante, que dará luz à nossa filha. Haverá homens, somente aqueles que me são amigos.

A terminar que não haverá um final.

11.06.2020

HOMEM E MULHER

O texto a seguir foi postado em 9 de setembro de 2017. O atual título era subtítulo de "Cortinas de fumaça". À exceção de ter sido retirada a última frase - Ou não tem nada a ver? (que não tem nada a ver) -, tudo permanece igual, pois parece que foi hoje.

Dizem que religião é um dos assuntos proibidos, mas, se não nos falarmos, aí mesmo é que não vamos nos entender, e dar de bandeja para quem ganha com isso.

Há bons religiosos, que desempenham seu papel com a intenção de fazer o bem, de trazer conforto, esperança, consolo, remédio e comida. Uma coisa é o religioso; outra, o manipulador.
Se tivermos sorte e determinação; se conseguirmos protestar e discordar civilizadamente, mantendo as amizades acima das nossas paixões e supostas verdades em matéria política, teremos eleições em 2018. (Que ninguém se iluda, isso depende de nós.) É bastante provável que alguns candidatos de 2014 o sejam novamente. Lembro-me de mais de um que falava sobre qualquer coisa e depois concluía: “Para mim, casamento é entre homem e mulher”. Pouco importava se a questão era o panorama político, beirando à ruína; o andar para trás da economia; a cruel e burra distribuição de renda – a 76a entre 136 países; a violência a passos largos para a barbárie; ou as hordas de desgraçados vendendo ou se entupindo de drogas, principalmente a mais barata e vil, por absoluta desesperança e falta de oportunidades, a grande maioria desde o nascimento. Nada disso importava, o que realmente importava para aqueles candidatos era o bordão que os conectava: “Para mim, casamento é entre homem e mulher”. Não se elegeram, nem se esperava por isso, mas alcançaram o que queriam: abocanhar mais poder. Seus eleitores não pensam sobre si - suas péssimas condições de vida, seus filhos fora da escola ou a frequentando sem condições de aprendizagem, podendo ser mortos dentro da escola, enquanto os nossos filhos, tomara – Deus queira - que voltem para casa, sãos e salvos.
Os eleitores dos que levam livros religiosos para o lugar errado, apenas para abocanhar mais e mais poder, mera, covardemente fisiológico, convivem conosco, em nossas casas, em nossos trabalhos, nas lojas, nas ruas. Mas não os vemos, somos de mundos diferentes. Eles nos veem. E nos escutam. Como falar com eles? 

10.20.2020

A ONU E OS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

 

A ONU e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

 

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade. Estes são os objetivos para os quais as Nações Unidas estão contribuindo a fim de que possamos atingir a Agenda 2030 no Brasil.

Do website da ONU.

 

A Organização das Nações Unidas foi fundada em 1945, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Atualmente é composta por 193 Estados Membros. O preâmbulo da Carta da sua criação, disponível em seu website[1], afirma:

Nós, os povos das nações unidas, determinamos salvar as gerações seguintes do flagelo da guerra, que duas vezes em nossas vidas trouxe tristeza incalculável para a humanidade, e reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos de homens e mulheres e de nações grandes e pequenas, estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito pelas obrigações decorrentes dos tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e promover o progresso social e melhores padrões de vida em maior liberdade.

 

Foi com esse espírito que em 2015 foram lançados pela ONU os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Também conhecidos como Agenda 2030, sucederam os Objetivos do Milênio (ODM), que tiveram como prazo o ano de 2015.

Enquanto os ODM eram oito, os ODS são 17. Mais específicos que os seus antecessores, cada um possui metas, com respectivos indicadores para que possam ser alcançadas em todo o mundo. Vale a pena listá-los aqui: ODS 1 - Erradicação da Pobreza; 2 - Fome Zero e Agricultura Sustentável; 3 - Saúde e Bem Estar; 4 - Educação de Qualidade; 5 - Igualdade de Gênero; 6 - Água Potável e Saneamento; 7 - Energia Limpa e Acessível; 8 - Trabalho Descente e Crescimento Econômico; 9 - Indústria, Inovação e Infraestrutura; 10 - Redução das Desigualdades; 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis; 12 – Consumo e Produção Responsáveis; 13 – Ação contra a Mudança Global do Clima; 14 - Vida na Água; 15 – Vida Terrestre; 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes; e 17 – Parcerias e Meios de Implantação.

Embora a prioridade seja a ação de governos, os ODS também têm servido para pautar uma agenda de desenvolvimento sustentável para o mundo empresarial. Como divulgado no website da Bolsa de Valores – a B3 -, o “Raio X” da carteira de ações componentes do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) de 2020 da Bolsa aponta que 98% das companhias, segundo suas próprias declarações, usam a Agenda 2030 e os ODS como referências para a sustentabilidade em seus negócios; e 93% declaram ter realizado uma análise de materialidade para identificar os ODS prioritários para suas atividades[2].

O conceito de desenvolvimento sustentável foi lançado oficialmente em 1987, no relatório da ONU chamado “Nosso futuro comum”, após muitos anos de discussões entre desenvolvimentistas e ecologistas, que, como se sabe, ainda perduram: desenvolvimento sustentável é o capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de suprir as necessidades das futuras gerações. Logo, o desenvolvimento sustentável é o que não esgota os recursos para o futuro, aquele em que se busca harmonizar o desenvolvimento econômico com a conservação ambiental, como se lê no website da WWF[3].

Infelizmente, em que pesem esforços de líderes de nações e compromissos firmados nas Conferências das Partes, como a de 2015 em Paris – a COP 21 -, há quem não os respeite e até desdenhe deles.

Aqui no Brasil, neste ano de 2020, em meio a uma pandemia que tem como sua mais comum e grave consequência problemas respiratórios, houve recorde de queimadas. Não deixa de ser curioso que a preocupação mais repetida seja a de que países estrangeiros poderão diminuir ou mesmo evitar investimentos em nosso país por causa do descaso com o Meio Ambiente. Muito mais do que isso, esse descaso, mentirosamente negado, vai na contramão do desenvolvimento sustentável, justamente comprometendo a disponibilidade de recursos já no presente. Basta ver o que diz a Embrapa[4]:

Sabe-se que a queimada altera, direta ou indiretamente, as características físicas, químicas, morfológicas e biológicas dos solos, como o pH, teor de nutrientes e carbono, biodiversidade da micro, meso e macrofauna, temperatura, porosidade e densidade. Sem falar no aumento do efeito estufa, na redução da qualidade do ar e da água, e da saúde.

 

Ainda segundo a Embrapa, “as queimadas podem ser abolidas pelo uso de tecnologias como práticas conservacionistas de solo e água e sistemas de produção sustentada”.

Sejamos otimistas. É de se esperar que em breve voltemos à civilização adequada ao século XXI. Voltando aos ODS, em sua opinião, qual ou quais deveriam ser priorizados no Brasil?

 

Sua opinião é muito importante. Sempre.

 

Um abraço,

 

Cidadão Mario.



[1]https://www.un.org/en/about-un/index.html.

[2][2][2] Fonte: http://www.b3.com.br/pt_br/noticias/b3-divulga-a-15-carteira-do.htm.

[3]https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/questoes_ambientais/desenvolvimento_sustentavel/..

[4]Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Publicação de 2012, em https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/956695/impactos-das-queimadas-na-qualidade-do-solo---degradacao-ambiental-e-manejo-e-conservacao-do-solo-e-agua.

Todos os websites acessados em 19.10.2020.

 

9.11.2020

O MITO

 I – A operação Lava Jato

Mito é o primo rico da mentira e fato o primo pobre da verdade. Mito é fábula: a mentira criativa. Verdade cada um pode ter a sua, e o fato é a constatação.

Nada do que se fala aqui serve de consolo, nem de longe tem essa intenção, que é apenas mostrar como frequentemente mitos se passam por fatos.

O fato de que existe corrupção no Brasil há muitos anos criou uma série de mitos. Seria um traço cultural do Brasil, decorrente da colonização portuguesa. Há pesquisas que evidenciam fatos a desfazer esse mito. Em vez de lançar mão de algumas delas, vamos buscar o caminho da arte, que, mito ou fato, ora imita a vida e ora é por ela imitada. Erêndira, personagem de Gabriel Garcia Márquez, é obrigada por uma tia a se prostituir, e Tereza Batista, de Jorge Amado, é vendida por uma tia para satisfazer os ímpetos e crueldades sexuais de um homem. Dois exemplos a nos deixar, como em vários outros, presos ao dilema de quem imita quem. Voltando ao mito do ha ha hu hu, a corrupção é nossa, assista-se por exemplo à série e/ou ao filme SUBURRA, para conhecer um pouco da corrupção italiana contada por meio da ficção, mas com fatos de sobra, históricos e atuais, a embasá-la. Alguém será capaz de dizer, ora, italianos são latinos como nós, e por isso são corruptos. Assista-se então ao filme norte-americano A LAVANDERIA, com Meryl Streep, Gary Oldman e Antonio Bandeiras, baseado em fatos reais, que conta a história feita de muitas outras de corrupção, todas reais, fáticas, de empresas não só dos Estados Unidos da América como de uma, sim, brasileira. Ah, então a corrupção é do Novo Mundo e/ou latina. Uma das pedras que teimam em não sair desse sapato é o caso Lockheed, nome de uma empresa, sim, norte-americana, que nos anos 70 do século passado corrompeu poderosos alemães, holandeses e japoneses. A corrupção não tem pátria nem etnia, não faz parte de uma cultura, embora seja ela mesma, a corrupção, uma cultura.

Cuidado é preciso também quando se diz “somos corruptos”, a não ser nos casos de confissão disfarçada de justificativa.

A corrupção nunca tinha sido sistêmica. Fato ou mito, como saber? Ficamos sabendo da  sistemática da corrupção por meio da combinação de alguns fatores, alguns deles recentes em nosso país. No mundo inteiro, a investigação de práticas criminosas se torna a cada minuto mais dotada de ciência e tecnologia; no Brasil, a liberdade de comunicação e o jornalismo investigativo só foram ressuscitados entre 1985 e 1988, anos que ficaram marcados pelo fim do regime militar e ditatorial iniciado em 1964 e pela promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil; e foi em 2013, há poucos sete anos, que entrou em vigor a Lei  nº 12.850, que define organização criminosa, e enuncia, em seu artigo 3º, que, em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, determinados meios de obtenção da prova - entre eles o da colaboração premiada (sim, colaboração e não propriamente delação, que deve ser compreendida como uma das espécies da primeira). Tecnologia, liberdade e método de investigação permitiram que conhecêssemos tamanho, abrangência e profundidade da corrupção em nosso país. A operação Lava Jato fez uso intensivo e extensivo dessa combinação.

O mérito da Lava Jato, uma operação policial, foi desbaratar esquemas e permitir à Justiça investigar, julgar e  - finalmente, e com base na Lei, algo próprio da democracia - punir corruptos. Infelizmente, esse mérito teve a empaná-lo o sensacionalismo, a vaidade e a falta de limites de alguns, a generalização conceitual em relação à política e a necessidade de muitos de acreditar em mitos. Promotores, procuradores e juízes não se confundem com heróis, e via de regra, heróis são mitos.

Agora, o gosto amargo da desilusão e decepção com respeito à Lava Jato bate na boca dos que acreditaram na mitologia que se criou em torno dela, que foi e é nada mais, nada menos que uma operação policial de investigação de suspeitos de corrupção.

II – O “Mito”

A disputa entre razão e emoção tem um dos seus momentos mais acirrados e perigosos nas eleições. A avaliação de riscos e oportunidades se fragiliza diante de verdades daquelas que cada um tem a sua, de raivas, medos e preconceitos, dos truques do marketing político e do estresse de um noticiário que se vale disso tudo, desde o racionalismo da avaliação até a exaustão da emoção, que também invade corações e mentes de quem dá as notícias.

Um dos mitos fabricados para nos diminuir como povo e enfraquecer nossa democracia é: o brasileiro não sabe votar. Ora. O mundo não sabe votar e por isso todo mundo vota, essa é a lógica da escolha, que se baseia como sempre na humana mistura de razão e emoção, a mesma lógica da democracia e do voto. Assim não se deve julgar o voto de ninguém. Nem por isso devemos deixar de analisá-lo, pelo menos para tentar evitar repetições muito perigosas.

As eleições de 2018 no Brasil foram mitológicas. A começar pelo “mito”. Mito é aquilo ou aquele que não existe, mas que se materializa na mente de algumas e às vezes de muitas pessoas. Há os que se identifiquem com o presidente eleito, mas mostram as pesquisas que não são a maioria. A bem da verdade, a com V maiúsculo, a omissão e mesmo a pusilanimidade de algumas lideranças políticas foram a causa mais importante e revoltante do que aconteceu em outubro de 2018. Mas outra de decisiva importância foi uma série de mitos capazes de iludir a maioria.

Meu partido é o Brasil, como se o Brasil fosse um único ser, de pensamento uníssono. Quem pautou sua vida pelo desrespeito seria o bastião da ética. Um expulso do Exército por indisciplina seria um disciplinado. Um evangélico que prega matai-vos uns aos outros e ama o torturador como a ti mesmo. Existiria uma nova política. Os militares seriam mais capacitados que as outras classes  – sim, para a defesa, mas para governos, que se visite a história, daqui e do mundo. Todo político é corrupto, todos os partidos são corruptos, habitados cem por cento por corruptos. Um partido que tenha membros corruptos é e será um partido corrupto. Houve aparelhamento do Estado – como se houvesse alguma agremiação política que ao chegar ao poder não fizesse isso. Um outsider, com sete mandatos de deputado. Um economista de quem nunca se tinha ouvido falar seria um gênio, um superministro. Militares seriam partidários do liberalismo econômico. O liberalismo e o Estado mínimo seriam a solução para o Brasil - mito morto infelizmente junto com mais de uma centena de milhares de pessoas, até o momento (e o presidente diz, E daí?). O defensor e enaltecedor de ditaduras, ditadores, tortura e torturadores não traria nenhum risco à democracia (e não diria “E daí?”), ou a ditadura seria melhor que a democracia, exceto a cubana e a venezuelana – pois veja-se o que está acontecendo aqui e agora: há suspeitas de cooptação de membros da justiça e do judiciário, exatamente como aconteceu na Venezuela. A ditadura foi boa para o Brasil – logo ela, que, entre outras sequelas, deixou uma colossal dívida externa e inflação sem controle, só derrotadas, a duras penas, pela democracia. O patriotismo, liderado, desde a campanha, por um fiel seguidor do presidente dos Estados Unidos.

Mito é o primo rico da mentira e fato o primo pobre da verdade. Nas próximas eleições, optemos todos pelos fatos, ainda que a fúria das nossas emoções se esforce a nos fazer perdê-los de vista.

8.25.2020

DILEMAS

 

Quando não cai a ficha, é o orelhão que cai (principalmente quando o orelhão nem existe mais). O Brasil é um país pobre. Não adianta ter o oitavo produto interno bruto do mundo com metade da população vivendo com menos da metade do salário mínimo (não se sabe como). Essa constatação poderia sugerir que políticas estruturantes associadas a outras assistencialistas por tempo determinado seriam capazes de aumentar o PIB e diminuir a pobreza. O atual governo optou por outra combinação: privatizar, deixar o mercado trabalhar e, por si, resolver; e destruir – respeito, ambiente, educação, saúde, cultura, inteligência, livro, diplomacia, instituições, democracia, laicidade... Agora, vive o impasse. Para conseguir a reeleição, terá que combinar assistencialismo com algo que não conhece, mas que guarda em sua composição quem pense que conhece: construir. Para essa nova combinação, terá que aumentar a dívida com dinheiro de quem foi convencido por ele, governo, de que a outra combinação é que estava certa (pensar em pedir dinheiro a quem se acusou de destruir florestas, por quem alegou que isso autorizaria a destruir a nossa, nem pensar, ainda mais quando todos estão mergulhados em resolver seus próprios problemas e dilemas - diria Sherlock Holmes, saudoso do sagaz Watson, a esses superintelectos governamentais). O “e agora, José” do nosso gauche Drummond, o ser ou não ser shakespeariano, tudo fichinha perto do que se vive hoje, nessa terra em que se plantando tudo dava. Do lado de cá, do povo, o dilema é: acorda, Rodrigo, ou empurra com a barriga, Rodrigo. Saudades do orelhão.

Mario Benevides, 25/8/2020. @cidadãomario, mariobenevides.blogspot.com / facebook.

8.15.2020

O VEEMENTE

 

A infância é mesmo para se ter saudade. Na minha, por exemplo, Gilmar era goleiro da seleção.

Deve ter sido alegado que o Queiroz é mesmo do grupo de risco. Mas vários outros são, a diferença é que ele é amigo do rei. Sim, não estamos em Pasárgada, mas ele sim. O Brasil deixou de ser império para continuar sendo.

Ah, você queria fechar o STF, não é? Nesse caso, a mídia, já ou ao mesmo tempo, teria sido calada, e nem saberíamos de mais esse episódio, não é? Um conforto só.

Nada como um dia depois do outro, nada como uma menção ao genocídio depois de um outro seja-o-que-for. Um Queiroz, por exemplo. Serei preso por isso?

Quando William Waack disse que a buzina insistente que o incomodava antes de entrar no ar era coisa de preto, postei uma foto de Pixinguinha com Louis Armstrong, e achei que não era necessário dizer: Sim, WW, esses pretos e suas buzinas. Como as notícias insistem em teimar, era sim.

Mas tudo faz sentido, juízas e juízes têm sempre razão. Pior seria sem. A humanidade é mesmo errática, sempre haverá um erro a corrigir outro. Um dia, pode ser que a justiça seja para todos, a começar pela oportunidade de estudar e trabalhar. Pois ora dirão que isso seria um erro, não é mesmo?

Jerônimo, que já foi herói do sertão, hoje é um cachorro. Se houvesse sindicato de cachorros, ele seria o presidente. Ontem à noite, esse cão alado voou do sofá à poltrona e latiu aos seus dezoito pulmões contra um estrondoso trovão. Jerônimo, que inveja da tua veemência.

5.23.2020

APENAS MAIS UM 22 DE ABRIL


Eles sabiam que estavam sendo gravados e por isso cada um deu o melhor de si, ao seu jeito. De um, o clamor pela liberdade de não ter que respeitar leis e magistrados. Melhor prendê-los. Ódio. Muito ódio. Outro convida aos demais para que compartilhem da sua esperteza. É hora de aproveitar a tragédia para que tudo passe sem que se perceba, como se fosse uma boiada. A bajulação quase unânime ao que vocifera para mostrar que é macho e que fala do povo para mostrar que é bom e que deixa claras suas intenções de armá-lo. Ao seu lado, um silêncio que não esconde o sorriso de quem somente espera sua vez, quem sabe, para um sonhado autogolpe. Apenas uma surpresa, não com o alinhamento moral (ou amoral), que já era notório, com o que fez questão de dizer que leu Keynes três vezes e que demonstra com toda clareza que não entendeu nada do que leu. Finalmente uma surpresa. Afinal, era 22 de abril, 520 anos depois da descoberta pelos portugueses dessa terra, em que se plantando, tudo dá.

4.13.2020

CIDADÃO KEYNES


Cidadão Kane foi criado e vivido por Orson Welles. Espécie de precursor no século XX das fake news. O cidadão John Maynard Keynes, se aparecesse hoje no Brasil com superpoderes, juntaria em uma mesma esquina a CEF, o Banco do Brasil e o BNDES. Vindos de uma via secundária, os desenvolvimentistas diriam: melhor poupar para ter quando precisar. Na preferencial estariam os liberais, que diriam: melhor ter para usar quando precisar.

3.23.2020

NOS 26 ANOS DE MARIA LUÍZA


Maria Luiza faz 26 anos hoje. Amanhã é dia de continuar seu terceiro ano de residência atendendo a quem precisar. Que a ciência médica invente um novo complexo B que, em vez de mosquitos, exale um cheiro que afaste vírus. Que a farmacêutica descubra um hidratante que, de tão perfumado e emoliente, mande o vírus tomar banho (bem longe de nós). Que os liberais de plantão compreendam de uma vez por todas que a ação humana movida pelo egoísmo, nada mais que o egoísmo, nada cria, nada transforma, somente afasta. Que os defensores do estado máximo se deem conta de que essa ideia surgiu para justificar monarquias absolutistas, muito mais perversas que paternalistas, de um paternalismo falso quanto falso é todo moralismo. Que em breve cabelereiros voltem a nos cortar os cabelos e os garçons a nos servir cafezinhos quentes e chopes gelados. Que essa pandemia logo se vá, mas deixe a certeza de que a vida pode ser mais convivência e menos campeonato. Que a solidariedade esteja sempre presente e não apenas em salas de espera com flores murchas. Que você, minha filha, continue sendo essa pessoa imensa de alma e de carinho, até mesmo na escolha e no exercício da sua profissão. Um beijo, do papai.

3.19.2020

DÚVIDAS E UMA SÓ CERTEZA



A única certeza é: precisamos de ar, comida, água, álcool, sorrisos, enfermeiros e médicos (e um pouco de vinho, se não for pedir muito).

Algumas dúvidas:

O que representaria maior risco para nossa vã democracia? Manutenção do titular? Substituição pelo seu vice? Ou a reeleição do titular e/ou do seu vice?

No momento, quem dá as cartas e começa a perder o jogo é um vírus. E depois, quem dará as cartas no Brasil? Donald Trump? Edir Macedo? Homo Sapiens? Ou papagaius imbecilis?

Adquirir com poderosos tostões o estoque de produtos nas prateleiras de mercados e farmácias é precaução? Ou egoísmo?

Não fosse a dúvida, ou não a havendo, seria a Terra ainda plana?

A única certeza é: precisamos de ar, comida, água, álcool, sorrisos, enfermeiros e médicos. E um pouco de vinho, se não for pedir muito.