4.22.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
ROMANCE INÉDITO DE MARIO BENEVIDES
2005-2006

EPÍLOGO

“[Olga] Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as casas, as igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do Campo [de Santana, Rio de Janeiro]... Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.”


Para quem não sabe ou não se lembra, é assim que Lima Barreto conclui sua biografia de Policarpo Quaresma.

Destacar o encontro no palácio presidencial em 2017 para lembrar a marcante mudança na mentalidade dominante brasileira que se deu naquele ano foi apenas porque lá estava um descendente de Ricardo Coração dos Outros.

Contar episódios havidos desde então até 2017 como se estivéssemos em 2020, quando o ano é 2053, teve a intenção de mais uma vez demonstrar que a modernidade é sempre passageira. Se isso é óbvio é porque a modernidade o é. Surpreendemo-nos com a tecnologia e, no entanto, ela apenas realiza algo que desejamos, precisamos ou vamos precisar. Quando surge uma novidade tecnológica, pensamos, Afinal nunca precisamos disso, para que diabos isso serve? - e, pouco depois, nos fazemos outra pergunta: Como foi que vivemos tantos anos sem essa coisa? Foi assim com os barcos, o automóvel, o avião, as hidro e termelétricas, o petróleo e sua substituição, a pipoca e o micro-ondas e a pipoca de microondas, o computador de sala, mesa, mala, mão e cérebro, o celular e as células-combustíveis. Hoje, mais que nunca, vivemos do Hidrogênio. E nos perguntamos ainda Para que diabos? e cultuamos o diabo tanto quanto a Deus, em suas variadas manifestações e principalmente na ausência delas.

Ora, a origem da chamada revolução de mentalidade foi o interior do Brasil; foi especialmente o interior de Goiás que deu origem a um movimento sem liderança conhecida, primeiro de boicote quase destrutivo para depois construir algo de realmente inovador, movimento surgido de anseios seculares da história do Brasil e que produziu a grande transformação do país, sem mortes, ameaças ou imposição. Tanto assim que foi motivo de destaque do noticiário mundial a participação ativa e teatral daqueles jovens estudantes de Minaçu dos primeiros anos deste século XXI, que faziam peças teatrais na cidade naqueles tempos, e que levaram adiante silenciosas dramatizações em Brasília na dita Revolução Brasileira de 2017.

Hoje é um dia de sol de 2053 e a distribuição da renda nacional permite uma vida razoavelmente tranqüila em sociedade, ainda que sofrimento, injustiça e desacesso ocorram e sejam noticiados, tal como alienações químicas. Mas a massificação da desgraça e o terror do tráfico aliciando a infância excluída e aprisionando adolescência e vida adulta desesperadas e despreparadas se foram. A indiferença diminuiu, o desaforo do desdém pela coisa pública costuma ser logo conhecido e execrado, a competência supera o estrelismo; aliás, no mundo inteiro a competência passou a ser percebida como talento. As desavenças estão aí, parece que são entranhadas na condição não só humana quanto de todo na de estar vivo em um planeta teimoso, a girar em torno do sol curando males das transformações causadas muito principalmente e não só pelos seus homens e suas mulheres, que hoje o habitam em praticamente iguais proporção e força transformadora e produtiva.

Aquela família de que tanto se falou, a ponto de se a descrever como dinastia, e seus mais próximos, em 2020 ficaram assim.

A que vivia com uma pessoa fazia igual a tantas outras, a viver com uma pessoa, embora isso, naquele tempo, mais antes de 2020 que propriamente naquele ano, a expressão “aquela pessoa” tivesse propósitos de escondê-la – a pessoa – sabe-se lá de que preconceitos.

Ricardo IV seguiu como brilhante advogado e episódico imperador em seu roupão caseiro.

O General continuou a exibir sua nudez à sua indiferente empregada e ao amigo Almir. Ela – a empregada do General - escreveu um livro: “A vista da Avenida Atlântica do Rio de Janeiro”; ele – Almir - enlouqueceu um pouquinho.

Muitos que residiam em Minaçu de lá se mudaram; outros, para lá é que se foram.

Sérgia tornou-se membro permanente da ONU, casada com Ricardo IV só de vez em quando.

A médica que foi amante de Ricardo IV, bem, não se pode revelar seu nome.

Rita e Ricardo V continuaram casados - ele, escritor, ela, incansável pesquisadora das etnias – não só das silvícolas do Brasil como também das do mundo árabe. Secretamente ainda buscava saber de que irlandês terá vindo o “Shaw” do sobrenome materno. Já sua mãe passou a permanecer em Orlando o mínimo possível, visitando Rita onde ela estivesse, Rio, Bagdá, Cavalcante, Minaçu, Xingu.

A irmã da que sempre foi vista como a viver com “uma pessoa”, que costumava não se fixar a nenhuma companhia, casou-se; com uma pessoa.

Da minha parte, enquanto meus pais se mudaram para o Rio, preferi freqüentar a Universidade Federal de Santa Catarina a fazer qualquer curso à distância. Agradam-me mais temperaturas mais amenas, passei por muito calor onde nasci. É em Florianópolis que vivo, até hoje. De 2020 até hoje, ora, alguns morreram, outros continuam neste planeta, que permanece a enlouquecer um pouco a cada dia. Florianópolis, 22 de abril de 2053, Ricardo Coração dos Outros VI.

- FIM -

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