4.01.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 - 2006


TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- CINCO –

Ricardo V apresentou-se à mesa, deixando Rita e Dona Eduarda na primeira fileira do anfiteatro do palácio de governo, onde algumas poucas pessoas já se encontravam, provavelmente tão inesperadas e inexpressivas para a maioria como as duas.

Foi dada a palavra a Ricardo V:

- Acredito que este fenômeno silencioso, de apatia popular em relação à mídia e à política no Brasil, possa ser melhor explicado por Dona Eduarda, a quem gostaria de apresentar a todos e passar a palavra.

Houve alguns protestos. Alguém disse a Ricardo V que seu atraso havia-lhe impedido de acompanhar importantes debates, que uma lista de pontos de consenso já fora estabelecida e que o fenômeno do silêncio e apatia coletivos já havia sido compreendido pelo grupo de notáveis presentes, pelo menos em tese.

- Pois o que estou propondo é que Dona Eduarda o explique na prática.

- Quem é Dona Eduarda? – quis saber um dos que protestaram contra o atraso e as companhias de Ricardo V.

- Uma residente num dos assentamentos agrários do norte de Goiás.

Depois de algum silêncio, Ricardo V convidou Dona Eduarda a subir no palco e acessar o palanque ao lado dele.

- A palavra é sua, Dona Eduarda – ele disse.

- Boa tarde – ela disse, com seu sotaque característico da sua região. Meu nome é Eduarda das Neves, moro em Cavalcante, município do Estado de Goiás, em assentamento com mais vinte e três famílias, perto da comunidade kalunga. Vivemos ali por um tempo com muito pouca água, depois instalaram pra nós uma irrigação que precisava pagar pela energia, depois nós fizemos um sistema por gravidade com ajuda de uns engenheiros que moram por lá. Hoje temos água e energia. Temos a tele-multi-mídia e as redes, tratamos da nossa água, cada lote de terra, cada residência paga por sua luz e energia ao nosso condomínio. Nossa associação paga pelo acesso à água que é canalizada, paga pela luz, pela eletricidade. Temos bateria solar também, temos desses cata-ventos que também geram energia, temos uma fábrica de utensílios pra nossa lavoura, temos bons equipamentos de aragem. Temos um contrato pra vender nossa produção no comércio local, temos de um tudo por lá.

- Não falta nada, então? – perguntou alguém, com alguma ironia.

- Respeito. O que falta por lá é respeito.

- Da parte de quem? – quis saber o General.

- Tão fazendo pouco da nossa inteligência. Qualquer pessoa acessa qualquer das duas redes, lê os noticiários que chegam em papel, vê as notícias na tele-multi-mídia e é tudo igual. Tudo repetido, e parecem que querem alegrar a gente ou então entristecer, como se nós fôssemos idiotas. Nós temos escola, temos livros, temos tudo que a cidade tem.

- As cidades também estão em silêncio e sem acessar nem as redes nem a tele-multi-mídia – explicou Sérgia.

- Ninguém agüenta mais. Depois não dá pra entender como é que ainda tem tanto pobre no Brasil, muita coisa já evoluiu, eu tô com sessenta e cinco anos, já vi foi coisa. Aí os políticos visita nós, às vezes vão lá, outras vezes aparecem de repente na tele-multi-mídia, nos mandam mensagem com a cara deles nas telas de bolso e de mesa, no banheiro, na sala, no quarto, na lavoura, e dizem sempre a mesma coisa, tudo falando empolado, tudo agora tem diploma e nós também tem, tudo é profissional, treinado, e ainda tem muita miséria no Brasil, tá errado, não é justo nem é certo nem inteligente.

- O que que a senhora pensa dos índios? – perguntou o Presidente da República.

- Dos índios? Onde eu moro não tem.

- Posso falar? – ofereceu-se Rita, levantando-se.

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